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A nulidade da cláusula que prevê cobrança extrajudicial de honorários

Leonardo Roscoe Bessa é  Promotor de Justiça do MPDFT, Mestre em Direito pela UNB, Professor de Direito do Consumidor (FGV e UNB), 1o Vice-Presidente do BRASILCON.


As entidades de defesa do consumidor têm recebido diariamente reclamações concernentes à cobrança extrajudicial de honorários advocatícios em caso de mora do consumidor no pagamento da prestação pecuniária.

Há, basicamente, duas situações. O consumidor celebra com o fornecedor contrato de trato sucessivo com previsão de pagamento de parcelas mensais. Havendo atraso na quitação de determinada prestação, o débito, após cinco ou dez dias, é encaminhado para escritório de advocacia que só recebe o pagamento se houver o acréscimo de juros de mora, multa e honorários advocatícios que variam de 10 a 20% do valor devido. Nesta primeira hipótese, cuja ilegalidade foi demonstrada em artigo anterior, o contrato entre o fornecedor e consumidor não faz qualquer previsão de pagamento dos honorários advocatícios.


Na segunda situação, que é abordada nas linhas seguintes, o contrato firmado entre o fornecedor – normalmente uma financeira ou estabelecimento de ensino – e consumidor possui cláusula prevendo o pagamento da verba honorária em caso de mora do consumidor. Tal disposição é abusiva, além de caracterizar fraude à lei.


O Código Civil, no artigo 920, estipula que a cláusula penal - seja moratória, seja compensatória - não pode ultrapassar o valor da obrigação principal. Inúmeros diplomas legais posteriores à Lei Civil, entretanto, com o objetivo de afastar uma nítida desigualdade material entre os contratantes, limitou, em contratos típicos, a cláusula penal moratória a 10% (dez por cento) do valor devido. Citem-se, ilustrativamente, o Decreto Lei 58/37, a Lei 6.766/79 e a conhecida Lei de Usura (Decreto 22.626/33).


Esta tendência, inserida em movimento denominado de dirigismo contratual, foi acompanhada pela Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), que dispôs, no artigo 52, p. 1o , que, no fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento, as multas de mora não poderão ser superiores a 10% (dez por cento) da prestação. Posteriormente, a Lei 9.298, de 1º de agosto de 1996, alterou o referido dispositivo para reduzir a multa moratória ao valor máximo de 2% (dois por cento) da prestação.


Assim, configurada relação de consumo, há norma de “ordem pública e interesse social” (art. 1º), limitando expressamente o valor da multa moratória. Além da multa, o ordenamento jurídico permite, em caso de atraso no pagamento da prestação, a cobrança de juros de mora que não podem ultrapassar 12% ao ano.


Isto quer dizer que, limitando a liberdade contratual das partes, o Estado, com a edição de normas jurídicas, objetivou impor limites aos encargos decorrentes de mora do consumidor. Assim, qualquer expediente utilizado pelo fornecedor que vise, direta ou indiretamente, a afastar o objetivo da norma jurídica configura indubitavelmente o que a doutrina denomina de fraude à lei (fraus legis).


Marcos Bernardes de Mello (in Teoria do Fato Jurídico; plano de validade, 3a ed., São Paulo: Saraiva, 1999), com precisão, assim delimita a fraude à lei: “procedimento que, por meios indiretos, viola norma jurídica cogente, permitindo que se obtenha resultado por ela proibido (norma jurídica cogente proibitiva) ou impedindo que fim por ela imposto se realize (norma jurídica cogente impositiva)”.


É exatamente a hipótese. Sob o rótulo de “honorários advocatícios” impõe-se ao consumidor ônus financeiro acima do limite estabelecido legalmente (juros de mora de 1% ao mês e multa em 2% do valor devido). Com o procedimento, uma prestação vencida acaba tendo uma majoração próxima a 25%. A sanção para a cláusula que consubstancia a fraude à lei é a nulidade.


Há, ainda, outros argumentos a serem superados. Uma análise apressada da própria lei de proteção ao consumo poderia levar à conclusão equivocada de que o artigo 51, inciso XII, permite, indiretamente, a previsão de cobrança da parcela dos honorários advocatícios. O dispositivo estipula serem nulas de pleno direito cláusulas contratuais que “obriguem o consumidor a ressarcir os custos da cobrança de sua obrigação, sem que igual direito lhe seja conferido contra o fornecedor”.


Assim, bastaria, para legitimar a cláusula de honorários advocatícios, que houvesse previsão, em favor do consumidor, de disposição semelhante. Anote-se, entretanto, que o dispositivo não deve ser interpretado isoladamente. O Código de Defesa do Consumidor norteia-se pelos princípios da boa-fé e equilíbrio nas relações contratuais (art. 4º, III, 6º, V, art. 39, V, art. 51, IV c/c o p. 1º), objetivando especialmente vetar obrigações que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada.


Ora, é justamente o caso. São as financeiras e as escolas que, em regra, utilizam da cláusula de honorários advocatícios. Qual seria a situação que o consumidor necessitaria dos serviços de um advogado para exigir o cumprimento extrajudicial da obrigação do banco ou da escola? O contrato de mútuo, por ser real, só se configura a partir da entrega do dinheiro. Depois deste ato, o banco não tem qualquer obrigação relevante que justifique eventual intervenção extrajudicial de profissional da advocacia. Também, não se consegue imaginar hipótese em que determinado aluno estaria a exigir extrajudicialmente, por meio de advogado, o cumprimento da obrigação de determinado estabelecimento de ensino.


Dessa forma, parece ser clara que a possibilidade real da cobrança dos honorários só se dá em favor do fornecedor, ainda que formalmente exista cláusula prevendo o pagamento de honorários advocatícios para o consumidor. Assim, a cláusula ofende o princípio fundamental do equilíbrio contratual, mostrando-se excessivamente onerosa para o consumidor, “considerando a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso” (art. 51, p. 1º, III).


Por fim, algumas palavras são necessárias para comentar a Portaria nº 04/98, da Secretaria de Direito Econômico (Ministério da Justiça), que considera nulas de pleno direito as cláusulas que “obriguem o consumidor ao pagamento de honorários advocatícios sem que haja ajuizamento de ação correspondente”. Argumenta-se, equivocadamente, que, como a portaria teria invadido área destinada à disciplina legal (princípio da reserva legal), o ato seria nulo e, em consequência, os honorários poderiam ser previstos e cobrados. A primeira assertiva está correta; a conclusão, todavia, equivocada. O Secretário de Direito Econômico, de fato, não possui poder para aumentar e/ou interpretar o rol de cláusulas abusivas inserido no artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor. Mas isto não leva, necessariamente, a conclusão que o ato, por ser nulo, admite a situação que se quis proibir. Como dito, o resultado interpretativo decorre da análise sistemática e teleológica da Lei 8.078/90 e do Código Civil, não tendo qualquer influência na conclusão a validade legal da Portaria 04/98.


Ressalte-se: não se propugna que o profissional não deva receber pelo seu trabalho, mas apenas que quem deve pagá-lo é a pessoa que o contratou que, ao final, acabará incluindo no preço do produto ou serviço o custo com a cobrança. Neste sentido foi o voto proferido pelo ilustre Desembargador Valter Xavier, ao julgar a Apelação Cível 46.451/97, verbis: “Insiste a apelante na possibilidade de cobrar honorários advocatícios sem a propositura de demanda judicial. Com todas as vênias, seria o mesmo de admitir que estivesse o candidato comprador de imóvel obrigado a arcar, diretamente, com os custos de manutenção da empresa. Os honorários advocatícios percebidos pelos advogados da empresa antes do ingresso em juízo, tem característica de salário, de contraprestação por serviço realizado com objeto definido. Tanto quanto os demais encargos da empresa com seus empregados, o repasse somente pode acontecer pela via indireta. (...) A cobrança extrajudicial é problema do advogado e de quem o contrata, não daquele que já estará onerado pela pagamento da multa e de eventuais juros. A pretensão mal dissimula a vontade de aumentar o valor da multa, expressamente limitada pela legislação regente”.


Por fim, a admissão da cobrança extrajudicial dos honorários acaba por criar um cenário incongruente e até esdrúxulo: o consumidor pagando para que o advogado trabalhe contra ele, cobrando-lhe dívidas em atraso.

 

 

Retirado de: http://www.brasilcon.org.br/exibir_artigos.asp?codigo=4