Agências regulatórias, consumidor e cultura
ético-jurídica
Luiz Otávio O. Amaral
Advogado
militante há mais de 25 anos e professor de Direito há mais 23 anos. Já
lecionou na UnB e UDF. Ex-Diretor de Faculdade de Direito em Brasília. Atualmente
leciona na Universidade Católica de Brasília-UCB. Foi assessor de Ministros da
Justiça; do Min.da Desburocratizarão/P. Rep. Secret. Nacional de Dir.
Consumidor. Autor de “Relações de Consumo” (04 v.); “O Cidadão e Consumidor”
(co-autor); “Comentários ao Código Defesa do Consumidor, coord. Prof. Cretela
Junior (Ed.Forense) e “Legislação do Advogado”, MJ, 1985. Autor de “Lutando
pelo Direito” (Consulex, 2002); e de “Direito e Segurança Pública -
juridicidade operacional da Polícia” (Consulex 2002, no prelo) e ainda de
“Teoria Geral do Direito” (Forense, no prelo). (lamaral@conectanet.com.br)
Queremos
aqui analisar rapidamente a atuação das agências regulatórias em nosso
ambiente, sobretudo à luz do Direito do consumidor e da moralidade
administrativa, tudo a partir do caso-lider da “tarifa telefônica” que é bem
emblemático.
Em Direito e na melhor técnica jurídica temos dois
verbos distintos que teimam em provocar confusões e impropriedades técnicas: regular e regulamentar.
Regular (do Latim regulare,
relativo às regras, norma) é estabelecer o regime legal de uma situação
jurídica, é legislar. Regular é normatizar, regrar por meio de lei. E lei é
regra de ordem geral emanada do Poder Legislativo, na forma indicada
pela Constituição. O Decreto nº 3.191 de 7/1/1899, que reorganizou o Ministério
da Justiça, definiu lei como sendo "resoluções do Congresso Nacional que
contiverem normas gerais e dispositivo de natureza orgânica ou que tenham por
fim criar direito novo". Em
sentido amplo e atécnico lei pode significar direito, justiça, contrato,
direito escrito, direito
consuetudinário, direito legislado, cláusula contratual, direito objetivo,
direito positivo...
Como se vê o povo não distingue justiça, direito, lei, decreto, regulamento... Mas em Direito não se
confunde a lei, a regulação com o regulamento, com a regulamentação.
Cabe ao poder executivo a expedição de normas para a boa aplicação das leis ou
fiel execução das leis. O legislador não pode prever as minúcias que se
apresentarão nos casos concretos em que a lei será invocada, as circunstâncias
de fato que serão enquadradas dentro da lei, cabendo ao governo como
administrador em sentido amplo, a tarefa de facilitar a solução das
situações imprevisíveis da vida prática. Essa a função do regulamento que entre nós é baixado, veiculado por meio de
decreto. Nem toda lei precisa de regulamentação, podendo ser executada desde
logo, o que todavia não impede o executivo de usar da sua faculdade-dever de
regulamentá-la. Mas, por outro lado, se o legislador determinou ao poder
executivo que faça a regulamentação, a lei só será exeqüível depois de
publicado o regulamento. Esse tem de obedecer estritamente aos dizeres da lei,
não podendo ampliar o seu alcance. Assim é que não se admite possa um
regulamento estabelecer penas, criar cargos públicos, majorar tributos,
aumentar vencimentos, perdoar dívidas ativas, conceder isenções tributárias,
autorizar alienações de bens públicos, alterar o estado das pessoas, restringir
direitos e liberdades, criar enfim obrigações que não constam da lei.
Assim,
é de boa técnica que se diga que a lei regula e decreto regulamenta. O regular
é ato autônomo de quem tem competência constitucional para legislar: o
Congresso Nacional; só ele assim pode restringir a liberdade, os direitos do
indivíduo, porque delegamos isso a ele. O regulamento, ao contrário, é ato
derivado da lei e que só tem força normativa (impositiva) se e quando circunscrito
à lei respectiva. O Poder Executivo (o governo, a Administração) pode baixar
regulamento autônomo, sem lei respectiva, mas apenas para fins internos, para a
organização de seus serviços públicos, isso é ato inerente a sua função
governativa; tudo segundo a tábua de atribuições legais de cada poder e de cada
autoridade previstas no Ordenamento Jurídico (Constituição, leis...). A rigor,
o regulamento, o decreto, só interfere na situação jurídica dos próprios
serviços e servidores públicos. È findo o tempo em que qualquer decreto,
portaria e circulares, usurpavam as funções do Congresso Nacional.
As
agências ditas reguladoras, são, de fato e na melhor técnica, apenas
regulamentadoras. Com efeito, elas não criam direito, não impõem obrigações,
não interferem na situação jurídica de terceiros (que não sejam seus
servidores) salvo quando na estrita derivação da lei regente. É claro, que há
uma margem de bom senso em que as agências devem e precisam atuar no vácuo
legislativo. Contudo essa prerrogativa excepcional, discricionária, com muito mais e exigente razão há de estar
lastreada no interesse público, na melhor moralidade administrativa. È preciso,
ao tratar-se do tema agências governamentais, ter-se bem presente que a força e
o poder (certa autonomia, jamais soberania) que elas detêm pressupõe uma sólida
e bem incorporada cultura do interesse público, em que não haja possibilidades
de hesitação e conflitos em torno do que consulta ao bem comum e ao interesse
privados de poucos (ainda que do próprio governo ou de poderosa empresas). Num
ambiente em que tal cultura esteja ausente a autonomia das agências será tão
danosa quanto a entrega da gerência do banco de sangue ao vampiro.
No Brasil já temos essa cultura sólida? Aqui é raro vermos autoridades
públicas flagradas na odiosa inversão do bem público pelo bem particular. A
condução do interesse privado nos bastidores e corredores estatais por
autoridades estatais não é fato corriqueiro entre nós? E quando aparecem são
imediatamente tolhidos e punidos. Por outro lado, nossos legisladores não
padecem da preguiça mental que impede uma boa e aprofundada análise das
matérias legislativas. As leis que em vinte e quatro hora de vigência já se
mostram absurdas e inviáveis, ou pior favorecentes de interesses não-públicos,
são exceções no Brasil. A “indústria de leis prefabricadas” nos escritórios dos
interessados, não viceja por aqui. Nem temos fortes veículos de imprensa que
também dissimulam razões jurídicas e políticas para aviar interesses outros que
não o público, ou será que esse interesse não coincide com o do país.
O Brasil é campeão em inverter e subverter boas idéias e bons projetos. Ora,
tivemos escola superior antes de escola primária; tivemos Banco do Brasil antes
de termos economia; tivemos escola de belas artes antes de termos artes ou
belas... E transplantamos uma arvore frondosa e secular (as tradicionais
agências americanas) dos EUA para nosso solo, sem qualquer preparação, abrupta
e estouvadamente; sequer percebermos as diferenças de solo e ambiente em geral,
ou seja, de pressupostos lógicos da boa recepção de modelos.
Um grande jornal de um grande Estado, um “estadão”, há dias em editorial
pouco afinado com a melhor orientação ético-jurídico de nosso país veio
profligar as razões de quem se pôs contra o aumento astronômico, para a
situação atual do povo brasileiro, das tarifas telefônicas, aprovadas in pectoris pela agência regulatória
ANATEL. Ora, até o Ministro coordenador político da área ficou ao lado do
interesse econômico, não das empresas, mas sim do povo, da população
consumidora de serviço público tão essencial. Fato esse raro, senão inédito na
história recente do país. E o que traz o editorial do “jornalão”? Traz somente
indisfarçável dissimulação e deturpação de conceitos jurídicos. Assim, ali
fala-se em “atos jurídicos perfeitos, baseados em leis legítimas e cumpridos
por um órgão federal plenamente habilitado para tal, são alvo da fúria de um
ministro de Estado cujo preparo para o cargo varia na razão inversa de suas
ambições eleitorais e postos em xeque por alguns juizes cuja prontidão para
conceder liminares indiscriminadas parece também inversamente proporcional à
sua familiaridade com a matéria em questão.” Nem tão jurídico, nem tão prefeito
o ato da Anatel, aliás enquanto ato administrativo é antes injurídico e
imperfeito já por diversos ângulos. Primeiro porque cabe ao Estado a defesa do
consumidor entre nós, na forma da lei e essa é o CDC cujas normas têm caráter
de ordem pública e interesse social, inderrogáveis por ato de agências, por
decretos... Ademais, é princípio (princípios são normas das normas)
constitucional norteador da ordem econômica no Brasil, a defesa do consumidor. Com
efeito, o interesse empresarial há de estar harmonizado com tal imperativo. Há
ainda outro imperante princípio, aqui e alhures, que é o da modicidade no preço
público de todos os serviços públicos.
Por
que as concessionárias são induzidas a um comportamento contrário à
concorrência que deveria (e deve) haver entre as operadoras? E a Lei de Defesa
da Concorrência? É mais outra injuridicidade do ato, desorientado
sistemicamente, da Anatel. O poder concedente deve resolver com as
concessionárias as trapalhadas contratuais que há entre eles mesmos e não
trazer os consumidores para o sacrifício econômico, ele que sequer pode influir
nesse relacionamento contratual. São dois relacionamentos jurídicos diversos. Há
a relação jurídica de consumo entre os consumidores e a concessionária e há a
relação jurídico-contratual de Direito Administrativo entre Poder concedente e
a concessionária.
Normas
internacionais (Resolução nº39/248/1985/ONU, item “F”) também orientam a questão, assim os governos
devem garantir oportunidade para as organizações de consumidores participarem/apresentarem seus enfoques no
processo decisório a elas referentes. Ao que se sabe Anatel jamais contou com a
participação de entidades de consumidores. Tendo em vista quiçá a maior
defasagem salarial da história do país, qualquer aumento de tarifas devem
trazer a preocupação da justiça social, devem ser mais módicas que noutros
contextos. Qualquer aumento tarifário muito acima do razoável diante da
situação do população consumidora não consulta aos interesse público, senão
apenas ao privado/particular das empresas concessionárias - que ao se
instalarem aqui deviam saber de nossos imperativos jurídicos e de nossa
fragilidade econômico-social. Um aumento do porte do que foi aprovado pela
agência regulatória, rasca todas essas normas jurídicas, sobretudo descumpre a
norma constitucional da moralidade administrativa. Uma agência, ente estatal,
Administração pública por excelência, tem por função essencial garantir ao
máximo possível o interesse público na sua função regulatória. È o interesse da
população consumidora o norte dessas agências que no país de onde foram
importadas são consideradas a linha de frente da proteção do consumidor. As
agências, assim, são um anteparo às sempre fortes e bem urdidas estratégias de
lucros crescentes do capitalismo que anima as empresas e seus acionistas,
capitalismo esse tanto mais selvagem quanto mais omissa naquele propósito forem
as agências.
Como
se vê não há insegurança jurídica, nem nossos juizes merecem a crítica plantada
pelo Jornal. Pode-se ainda arrematar
que os contratos de concessão como quaisquer outros contratos são instrumentos
jurídicos a serviço de sua própria função social assim como as empresas aqui
estabelecidas. E os juizes por serem a viva vox
iuris, os intermediários entre a vida e norma, já não são mais simples
servidores inertes - nunca o foram
- da vontade das partes contratuais,
mas sim servidores do interesse geral da sociedade. A lei das concessões, por
certo, não autoriza aumentos abusivos, contrários aos interesses sociais ainda que eventualmente defensáveis do
ponto de vista empresarial das concessionarias.
As agências, suas leis e a autonomia (quase soberania) autodefendidas
carecem de revisão e maior grau de acuidade macro-jurídica dos legisladores, um
projeto de lei analisado de modo solto, isoladamente do sistema jurídico, pode
parecer menos danoso ao interesse que deve predominar, do que se analisada
inserida num contexto de harmonia sistêmica (e microsistêmica, o CDC, p. ex.)
que vai para além da Carta Magna. Isso exige até mesmo uma boa formação dos
assessores jurídicos que são os que podem prevenir tais desvios. O Direito e
tudo que há nele são meios de promoção do bem comum, jamais de exploração de
quem quer que seja até do governo.
COMO CITAR ESTE ARTIGO:
AMARAL, Luiz Otavio
O. . Agências regulatórias, consumidor e cultura ético-jurídico.
Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em xx
de xxxxxxxx de xxxx
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