Ações judiciais para impedir o corte
do fornecimento de energia elétrica – Alguns apontamentos sobre sua natureza e
a autoridade competente para julgá-las
Demócrito
Reinaldo Filho
Juiz de Direito em PE
e-mail:
demo@infojus.com.br
A questão do
corte de fornecimento de energia elétrica tem ocupado os debates nas cortes
judiciárias. Diante do inadimplemento do consumidor, parte da jurisprudência
inclinou-se por inadmiti-lo, ao argumento da essencialidade do bem em questão e
da característica de continuidade do serviço de fornecimento de energia
elétrica, com apoio no art. 22 do CDC (Lei 8.078/90), que consagra o princípio
da continuidade dos serviços públicos essenciais. O Poder Público ou seu
delegado só ficaria autorizado a proceder à cobrança executiva do débito, sob
pena de infringir o art. 42 do mesmo diploma, que proíbe o uso de expedientes
constrangedores na cobrança de dívidas a consumidores. Essa corrente prevaleceu
durante algum tempo na Primeira Turma do STJ, tendo o Min. José Augusto Delgado
sido o relator do acórdão padrão que resultou no assentamento desse
entendimento (ver o acórdão proferido no ROMS 8915-MA, unânime, j. 12.05.98, DJ
17.08.98).
Mesmo antes da
superação dessa jurisprudência, sempre me manifestei contrário a ela, em
julgamentos que tive a oportunidade de participar (a exemplo do Proc. n.
01.002916-9, 21a. Vara Cível da Capital, decidido em 19.02.01). Como
ressaltei naquelas oportunidades, o direito à continuidade do serviço
público, como está assegurado ao consumidor no art. 22 (bem como no § 1o
do art. 6o, da Lei 8.987/95), não significa que não possa haver
corte do fornecimento, mesmo na hipótese de inadimplência do consumidor. A
continuidade, aqui, tem outro sentido, significando que, já havendo execução
regular do serviço, a Administração ou seu agente delegado (concessionário ou
permissionário) não pode interromper sua prestação, sem um motivo justo, a
exemplo das excludentes de força maior ou caso fortuito. O dispositivo nem
sequer obriga a Administração a fornecer o serviço, mas, desde que implantado e
iniciada sua prestação, não poderá ser interrompida se o consumidor vem
satisfazendo as exigências regulamentares, aí incluído o pagamento da tarifa ou
preço público. O art. 6o, par. 3º, inc. II, da Lei
8.987/95 ("Lei das Concessões dos Serviços Públicos"), deixa isso bem
claro, ao dizer que "não se caracteriza como descontinuidade do serviço a
sua interrupção em situação de emergência ou após aviso prévio", em caso
de "inadimplemento do usuário, considerado o interesse público" (1).
Como se vê, o corte de
energia elétrica é um direito que assiste ao Poder Público ou a seu
concessionário, no caso de inadimplência do usuário. Decorre de disposição
legal e, por isso mesmo, jamais poderia ser considerado um expediente
constrangedor ou qualquer tipo de ameaça ou infração a direitos do consumidor (2).
Essa questão, no
entanto, encontra-se superada, diante do novo posicionamento do STJ,
considerando legítimo o corte no caso de inadimplemento do usuário, não
caracterizando descontinuidade do serviço essa hipótese (ver, e.g., o
acórdão proferido no REsp 363943-MG, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 10.12.03,
DJ de 01.03.04 (3)).
A única hesitação
perdura em relação aos casos em que o consumidor é pessoa jurídica de direito
público (ou prestador de serviços públicos). Em alguns julgados encontramos um
impedimento direto ao corte, baseado no argumento de que traz repercussões
sobre a comunidade dos administrados:
“ADMINISTRATIVO. ENERGIA
ELÉTRICA. CORTE DE FORNECIMENTO. MUNICÍPIO INADIMPLENTE. IMPOSSIBILIDADE.
O corte de energia
elétrica em prédio do Município atinge não somente aquele ente público, mas o
próprio cidadão, porquanto a inviabilidade da utilização do prédio e a
conseqüente deficiência na prestação de serviços decorrentes, atinge
diretamente todos os munícipes.
O corte de
energia, utilizado pela Companhia para obrigar o usuário ao pagamento de
tarifa, extrapola os limites da legalidade, existindo outros meios para buscar
o adimplemento do débito (STJ-1ª Turma, Resp 278532-RO, rel. Min.
Francisco Falcão, j. 16.11.00, DJ de 18.12.00).
Em outro
julgamento, a Corte Superior tem entendido não poder haver corte
indiscriminado de energia elétrica, mormente quando provoca prejuízos a
toda uma comunidade, pela privação de serviços próprios da Administração e que
depende desse bem para seu funcionamento. Aqui, o direito à suspensão do
serviço (corte da energia), quando o usuário deixa de efetuar o pagamento da
contraprestação ajustada, não é em princípio refutado, até porque decorre de
previsão legal. O que se procura impedir são os resultados gravosos decorrentes
do corte quando efetuado de forma indiscriminada, assim considerado o que é
realizado sem que a concessionária tome as providências necessárias no sentido
de preservar os serviços essenciais à população. Desde que essas precauções
sejam tomadas, o corte pode ser efetivado. Bem expressivo dessa última corrente
é o aresto abaixo ementado:
“ADMINISTRATIVO. RECURSO
ESPECIAL. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. MUNICÍPIO INADIMPLENTE. SUSPENSÃO
DO SERVIÇO. PREVISÃO LEGAL. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.
1.
1. A interrupção no fornecimento
de energia por inadimplemento do usuário, conforme previsto no art. 6o.,
par. 3o., II, da Lei n. 8.987/95, não configura descontinuidade na
prestação do serviço para fins de aplicação dos arts. 22 e 42 do CDC.
2.
2. Demonstrado nos autos que a
fornecedora, ao suspender o serviço de energia elétrica, teve o cuidado de
preservar os serviços essenciais do município, não há que se cogitar tenha o
corte afetado os interesses imediatos da comunidade local.
3.
3. Destoa do arcabouço
lógico-jurídico que informa o princípio da proporcionalidade o entendimento de
que, a pretexto de resguardar os interesses do usuário inadimplente, cria
embaraços às ações implementadas pela fornecedora de energia elétrica com o
propósito de favorecer o recebimento de seus créditos, prejudicando, em maior
escala, aqueles que pagam em dia as suas obrigações.
4.
4. Se a empresa deixa de ser,
devida e tempestivamente, ressarcida dos custos inerentes às suas atividades,
não há como fazer com que os serviços permaneçam sendo prestados com o mesmo
padrão de qualidade (STJ-2a. Turma, Resp 302620-SP, rel. p/ o
acórdão Min. João Otávio de Noronha, j. 11.11.03, DJ 16.02.04).
Como se observa dos termos
da ementa, e conforme consta do voto e relatório que integram o acórdão acima
transcrito, a empresa concessionária teve o cuidado, ao promover a interrupção
no fornecimento de energia elétrica, de preservar os serviços essenciais do
município, limitando o corte apenas a alguns prédios da administração pública,
resguardando, desse modo, os interesses imediatos da comunidade local. Essa foi
a circunstância decisiva para o reconhecimento da legitimidade do corte.
Da leitura da ementa desse
julgado, de certa maneira, sobressai a idéia de que a adoção de medidas para amenizar
os efeitos do corte não é somente obrigação do Poder Público local ou do
Executivo Estadual, mas também da própria concessionária (fornecedora de
energia elétrica). Por força do art. 17 da Lei 9.427/96, a suspensão do
fornecimento a consumidor que preste serviço público está subordinada
unicamente à comunicação prévia (15 dias de antecedência) ao Poder Público
local ou ao Poder Executivo Estadual, que “adotará as providências
administrativas para preservar a população dos efeitos da suspensão do fornecimento
de energia elétrica” (4). O julgado
empresta um novo sentido a essa disposição, na medida em que considera a ação
direta da própria concessionária, na preservação da energia aos serviços
públicos prestados pelo órgão municipal ou estadual inadimplente.
Um outro julgado podemos
incluir nessa segunda corrente, que admite a suspensão (ainda que subordinada a
certas condições) do serviço prestado a pessoa jurídica de direito público ou
consumidor que preste serviço público. Trata-se de acórdão da relatoria do
Ministro Franciulli Neto, onde o eminente relator destacou expressamente sua
visão de que, em razão de expressa previsão normativa, é possível a suspensão
do fornecimento de energia elétrica ao usuário que deixa de efetuar o
pagamento, depois de regularmente notificado. O impedimento ao corte, no
entanto, ficou decidido em função de circunstância particular relacionada ao
caso em julgamento, configurada na existência de uma pluralidade de contratos
com diversos órgãos municipais, sendo inviável a suspensão de todos eles na
ausência de meios para identificar aquele em que ocorreu a efetiva
impontualidade. Ao fundamentar o voto do acórdão, o relator destacou que o
corte alcançaria tanto os serviços próprios da Administração quanto a
iluminação pública do Município. A ementa desse julgado está vazada nos
seguintes termos:
“RECURSO ESPECIAL –
ALÍNEAS “A” e “C” – ADMINISTRATIVO – ENERGIA ELÉTRICA – CONCESSÃO DE SERVIÇO
PÚBLICO – FALTA DE PAGAMENTO – SUSPENSÃO DO SERVIÇO – NECESSÁRIA
INDIVIDUALIZAÇÃO DAS UNIDADES CONSUMIDORAS INADIMPLENTES – CORTE INDISCRIMINADO
DA ENERGIA ELÉTRICA – IMPOSSIBILIDADE.
Há expressa previsão
normativa no sentido da possibilidade de suspensão do fornecimento de energia
elétrica ao usuário que deixa de efetuar a contraprestação ajustada, mesmo
quando se tratar de consumidor que preste serviço público (art. 6º,
par. 3º, da Lei n. 8.987/95 e art. 17 da Lei n. 9.427/96).
Na hipótese vertente,
contudo, verifica-se que, embora exista débito da Municipalidade para a
concessionária, a autorizar, em princípio, o corte, a medida ocorreria de forma
a prejudicar toda a população da localidade. Ilegal, portanto, a interrupção
indiscriminada do serviço, tanto para os serviços próprios da
Administração, quanto no que se refere à iluminação pública do Município,
porque não especificada na demanda a que unidades consumidoras se refere o
débito.
Ausência de similitude
fática entre os acórdãos confrontados (STJ-2ª Turma, Resp 400909-RS,
rel. Min. Franciulli Netto, j. 24.06.03, DJ 15.09.03) (grifo nosso).
Diante desse conjunto jurisprudencial, podemos assinalar as
seguintes conclusões:
a) a) o
direito da concessionária de suspender o fornecimento de energia elétrica não é
absoluto, estando subordinado ao interesse da coletividade, nos termos
do art. 6º, II, da Lei n. 8.987/95, que configura uma restrição
legal à exceptio non adimpleti contractus;
b) b) o
interesse da coletividade pode ficar revelado sempre que o corte
implicar em deixar sem energia ruas, escolas,
hospitais, repartições públicas ou quaisquer unidades do serviço público que,
efetivamente, não podem deixar de funcionar;
c) c)
nos casos em que ficar configurado o interesse da coletividade,
deve o credor (concessionária de energia elétrica) buscar a satisfação de seu
crédito pelos meios executivos convencionais ou pela via da negociação;
d) d) o
art. 17 da Lei n. 9.427/96 (Lei das concessões do setor de energia elétrica)
deve ser interpretado em combinação com o art. 6º, par. 3º,
da Lei n. 8.987/95 (Lei Geral das Concessões), de maneira a se conceber que o
corte de energia a consumidor prestador de serviço público está condicionado ao
interesse da coletividade em preservar o funcionamento de unidades
essenciais;
e) e) em
se tratando de consumidor pessoa privada (física ou jurídica) não prestadora de
serviço público, a concessionária tem direito de proceder à suspensão diante de
inadimplemento, sendo suficiente a notificação prévia, pois em tal situação o
corte (em regra) não tem relação com nenhum direto interesse da coletividade;
f)
f)
o interesse da coletividade, que impede a suspensão do
fornecimento de energia, pode excepcionalmente ficar configurado mesmo na
hipótese de consumidor privado (pessoa física ou jurídica), caracterizado por
circunstâncias peculiares que o distinguem da comunidade dos usuários (5).
Essas são, em linhas gerais, as premissas que se podem
extrair dos dispositivos legais relativos ao corte de energia elétrica a
consumidor inadimplente e da análise deles que o STJ - que tem a missão
institucional de uniformizar a interpretação da legislação federal – tem feito
até o momento.
Outra questão, no entanto, tem aparecido nesses
embates entre consumidores e concessionárias de energia elétrica, esta de ordem
processual. É que os usuários têm vindo a juízo, buscando o impedimento ao
corte, pela via do mandado de segurança. A concepção é a de que o
dirigente da empresa concessionária desses serviços está enquadrado no conceito
de autoridade pública, para fins de impetração da segurança.
Nesse ponto, em particular, temos algumas
considerações a fazer.
Como se sabe, as concessionárias de
serviço público podem ser de direito público ou de direito privado (6). Adquirem o direito à
prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica quando vencem
licitação aberta pela Administração para o fim de outorga desse serviço. O
vencedor da licitação celebra com o Poder público um contrato de concessão
de serviço público. Esse contrato de concessão tem a natureza de contrato
tipicamente administrativo, regido, portanto, pelas normas do Direito Público. Mas,
paralelamente a ele, o concessionário estabelece, por força da execução dos
serviços concedidos, outros contratos com os usuários finais dos serviços (consumidores),
estes de natureza privada (7). Assim, o
serviço prestado em forma de concessão pública dá lugar a duas relações
contratuais distintas: de um lado, a que envolve o próprio contrato de
concessão, em que são partes o Poder concedente e a concessionária, relação
esta submetida ao regime de direito público, e, de outro, o liame contratual
que se estabelece entre o usuário e a concessionária, sujeito ao direito
privado.
A própria Lei das Concessões (Lei 8.987/95) deixa
entrever que, à exceção da relação direta entre o Poder concedente e o
concessionário (contrato administrativo), todas as demais relações contratuais
que este termine envolvido por conta da execução do contrato de concessão são
regidas pelo direito privado. Com efeito, prescreve o parágrafo único do seu
artigo 31:
“As contratações, inclusive de mão-de-obra, feitas
pela concessionária serão regidas pelas disposições de direito privado e pela
legislação trabalhista, não se estabelecendo qualquer relação entre os
terceiros contratados pela concessionária e o poder concedente.
O contrato de fornecimento de energia elétrica, já que se estabelece
entre o concessionário e outro particular (usuário final), é essencialmente
privado, apenas com os condicionamentos decorrentes do poder regulamentar que
Administração exerce sobre a atividade transferida. O poder regulamentar da
Administração fica revelado pela circunstância de que: a) os reajustes e
revisões das tarifas dos serviços obedecem a prescrições legais e parâmetros e
diretrizes específicas determinadas pelo órgão fiscalizador e regulador
competente; b) o Poder concedente pode fiscalizar permanentemente a prestação
do serviço concedido, aplicar penalidades ao concessionário e intervir na
prestação do serviço, dentre outros poderes (art. 29 da Lei 8.987/95).
A presença de uma
regulamentação do Poder Público sobre a prestação do serviço concedido não
implica em desnaturar a relação contratual do concessionário com o usuário. Mesmo
quando privados, estabelecidos entre particulares, certos contratos sofrem, em
diferentes graus, a influência do poder regulamentar estatal, limitando a
liberdade contratual das partes. Assim ocorre em função do interesse social que
acompanha esses contratos, dos quais são exemplos marcantes os contratos de
trabalho, os contratos de locação e os contratos de consumo em geral (contratos
de planos de saúde, de prestação de serviços educacionais, de serviços de
telefonia), só para citar alguns, que recebem uma estrita regulamentação legal,
limitando a liberdade dos contraentes a um campo bastante reduzido. Tal
fenômeno, apropriadamente chamado de dirigismo contratual, surgiu em
contraposição ao princípio clássico da plena autonomia da vontade dos
contratantes, que já não oferecia respostas satisfatórias à nova realidade social
pós-revolução industrial.
Ainda, é importante registrar que a
eventual presença de uma pessoa jurídica de direito público, na condição de
usuário dos serviços de fornecimento de energia elétrica, também não desnatura
a natureza privada do contrato. Nessa hipótese, ela assume posição de simples consumidor,
destinatário final dos serviços contratados em relação (privada) de consumo (8). Como se sabe, nem sempre
uma pessoa jurídica de direito público celebra contratos tipicamente
administrativos. Em boa parte de suas relações contratuais, vincula-se despida
da potestade estatal, do poder de império que caracteriza a sua atuação,
igualando-se ao particular. É o que ocorre quando adquire bens e serviços de
consumo, a exemplo de energia elétrica, posicionando-se em relação ao
concessionário (fornecedor) como simples consumidor.
Em sendo privada a relação
contratual entre o concessionário e o usuário, é admissível por este último o
manuseio do remédio constitucional do mandado de segurança, para dirimir controvérsia
entre eles acerca da prestação do serviço de fornecimento de energia elétrica? Contra
a prática de atos do concessionário (ou seu representante), o consumidor pode
se valer de instrumento próprio para invalidar atos de autoridade pública? Especificamente
contra o corte de energia elétrica, pode o consumidor impetrar segurança
visando à invalidação do ato?
A resposta a essas perguntas passa
necessariamente pelo exame da legitimatio ad causam do dirigente de
empresa concessionária do serviço de energia elétrica para o mandado de
segurança.
Em princípio, como delegatário do serviço público, os atos do
concessionário são passíveis de mandado de segurança, a teor da Súmula 510 do
STF, verbis:
“Praticado o ato por autoridade, no exercício de competência delegada,
contra ela cabe o mandado de segurança ou a medida judicial” (grifo nosso).
Essa súmula (9) foi editada em torno da interpretação o parágrafo 1o. do art.
1o. da Lei 1.533, de 31.12.51 (Lei do Mandado de Segurança), que já
indicava a legitimidade passiva do delegatário do serviço público, ao dizer que
“consideram-se autoridades, para os efeitos desta lei, os representantes ou
administradores das entidades autárquicas e das pessoas naturais ou
jurídicas com funções delegadas do Poder Público, somente no que entender
com essas funções” (10).
Sabendo-se que a concessão é espécie da delegação de
serviços públicos (11), o concessionário se apresenta, para efeitos do mandado de segurança,
como autoridade pública. Mas é imperioso ressaltar que nem todos os atos
que pratica são compreendidos na delegação pública (ao menos para fins do
mandado de segurança). No desempenho de suas atividades, o concessionário
pratica atos outros, não propriamente relacionados com a delegação. É da
análise da natureza do ato que se pode aferir se o concessionário está
investido (ou não) na qualidade de autoridade pública por delegação.
A jurisprudência antiga já exigia essa diferenciação entre os atos do
delegado do serviço público, de maneira a firmar sua (i)legitimidade para a
ação de segurança, como indica o aresto abaixo ementado:
“Não cabe mandado de segurança contra ato de dirigente de empresa
pública, que tem personalidade de direito privado, salvo quando praticado no
exercício de função delegada do poder público” (RTFR 126/361).
É preciso distinguir os atos do delegado (concessionário) que importem
em atos de polícia daqueles que constituem meramente atos de gestão.
Aquelas práticas que correspondam a uma ação administrativa de efetuar
condicionamentos (legalmente previstos) à propriedade das pessoas (os
consumidores finais dos serviços delegados), tais como atos de fiscalização
(como inspeções, vistorias e exames) e atos repressivos (aplicação de
multas, embargos, interdição de atividade, apreensões), decorrem do poder de
polícia público (12). Exclusivamente esses atos devem ser entendidos, para fins de mandado
de segurança, como incluídos nas atividades delegadas do concessionário de
energia elétrica (do serviço de distribuição), de forma a dar interpretação
correta à parte final do parágrafo 1o. do art. 1o. da Lei
1.533/51, que ressalva a utilização do mandamus “somente no que entender
com essas funções [delegadas]”. Todos os demais atos do concessionário que não
sejam atos jurídicos expressivos de poder público (13) devem ser atacados pelas
vias procedimentais comuns (a exemplo das medidas cautelares e outros tipos de
ações). Assim, cobranças de débito (aos consumidores) e todos os atos que o
concessionário esteja legitimado a fazer, não porque imbuído do poder de
polícia, mas por decorrência de direitos originados de contratos celebrados com
terceiros, estranhos à relação contratual de concessão (do serviço
público), configuram apenas atos de gestão da sua atividade, não
passíveis de impugnação pela via mandamental.
Essa diferenciação entre atos de polícia executados pelo
concessionário, estes passíveis de sanação pela via do mandado de segurança, e
os atos de mera gestão negocial é importante para evitar a confusão que
atualmente domina as unidades da Justiça dos Estados. Para evitar o corte de
energia elétrica em suas residências e estabelecimentos comerciais,
consumidores inadimplentes se socorrem do mandado de segurança. Nas Capitais,
isso ainda causa maior confusão, pois as ações de segurança são distribuídas
para as varas cíveis, que somente atuam na esfera dos litígios entre
particulares, e o mandado de segurança, por sua natureza específica de
solucionar conflitos na esfera do direito público, em princípio só poderia ser
ajuizado nas varas dos feitos da Fazenda Pública. A suspensão do
fornecimento de energia, em razão do inadimplemento do usuário, é ato de mera
gestão negocial, não podendo ser combatido pela via mandamental. O direito
do concessionário ao corte (suspensão do serviço), nessa hipótese, não decorre
do poder de polícia que lhe é transferido pelo Estado, mas tem origem no
contrato (privado) que assina com o particular (consumidor), por força da exceptio
non adimpleti contractus, que autoriza a qualquer contratante deixar de
adimplir sua obrigação quando o outro deixa de cumprir com a sua própria
prestação. Nesse sentido, qualquer pretensão de impedimento ao corte deve ser
veiculada por meio de procedimentos cautelares ou por via de pedido de tutela
antecipada de obrigação de (não) fazer, ou qualquer outro expediente processual
que se mostre hábil a solucionar os interesses particulares em conflito; nunca
pela via estreita e especial da ação de mandado de segurança.
Essa parece ser uma conclusão de fácil aceitação, mas como explicar,
então, que as cortes judiciárias, inclusive o Superior Tribunal de Justiça,
ainda continuem admitindo o manejo do mandado de segurança por consumidores
inadimplentes? Isso em parte pode ser explicado na circunstância de a
jurisprudência ter se firmado anteriormente ao processo de privatização das
empresas concessionárias de energia elétrica. Como se sabe, a fase mais intensa
do processo de privatização de empresas estatais no Brasil teve início durante
a primeira gestão de Fernando Henrique Cardoso, no ano de 1995, quando foram
incluídas empresas públicas não só da área de eletricidade, mas também de
mineração, ferrovias, portos, rodovias, telecomunicações, água e esgotos e bancos
(14). Antes da privatização, as
empresas concessionárias de energia elétrica assumiam a forma de sociedades
de economia mista, controladas pelos respectivos Estados-membros da
Federação. A aceitação do cabimento de mandado de segurança contra ato de dirigente
de concessionária de energia elétrica adquiriu força nesse contexto, em razão
de que a sociedade de economia mista tem natureza (para)estatal e, portanto,
seu dirigente pode ser considerado autoridade pública.
No âmbito do STJ, um julgado considerado verdadeiro leading case,
por ter influenciado a formação da jurisprudência a partir dele, foi firmado em
maio de 1996, sob a relatoria do Ministro Demócrito Reinaldo, assim ementado:
“PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA ATO PRATICADO POR SOCIEDADE
DE ECONOMIA MISTA. POSSIBILIDADE. CONCEITO DE AUTORIDADE – ART. 1O. DA
LEI N. 1.533/51.
O conceito de autoridade para justificar a impetração do “mandamus” é o
mais amplo possível e, por isso mesmo, a lei ajuntou-lhe (ao mesmo conceito) o
expletivo: “seja de que natureza for”.
Os princípios constitucionais a que está sujeita a administração direta
e indireta (incluídas as sociedades de economia mista) impõem a submissão da
contratação de obras e serviços públicos ao procedimento da licitação, instituto
juridicizado como de direito público. Os atos das entidades da administração
(direta ou indireta) constituem atividade de direito público, atos de
autoridade sujeitos ao desafio pela via da ação de segurança. “In casu”, a
companhia estadual de energia elétrica – CEEE – na medida em que assumiu o
encargo de realizar a licitação pública para efeito de selecionar pessoas ou
entidades para a realização de obras e serviços do maior interesse da sociedade
praticou atos administrativos, atos de autoridade, já que regidos por normas de
direito público e que não poderão permanecer forros à impugnação através do
mandado de segurança” (15).
Nesse julgado acima transcrito, a Corte Superior foi instada a se manifestar sobre o cabimento (ou não) do mandado de segurança para impugnar ato da diretoria coletiva de uma companhia de energia elétrica, que julgou a fase de concorrência pública, no processo licitatório por ela aberto, para construção de uma usina hidráulica. A discussão era se tal decisão constituía ato administrativo, emanado de autoridade pública, ou mero ato de gestão, regido por regras do direito privado, e por isso mesmo impossível de impugnação pela via da segurança. O Ministro Demócrito Reinaldo, com a prudência que sempre caracterizou sua atuação judicante, destacou que os atos praticados pela Administração indireta, nos procedimentos licitatórios, são atos administrativos e, portanto, atos de autoridade vinculados ao direito público. Recorrendo ao art. 37, XXI, da CF, que exige a submissão, mesmo da Administração indireta ou fundacional, ao processo de licitação pública na contratação de obras e serviços, concluiu que “é instituto juridicizado [o processo de licitação] como de direito público. Os atos das entidades da Administração, neste campo, são atos de direito público, atos essencialmente administrativos, atos de autoridade”. No seu voto, o Ministro Demócrito Reinaldo não só não estendeu o uso do mandado de segurança além do campo dos atos administrativos em procedimentos licitatórios, como teve a preocupação de destacar o relevante interesse público envolvido no caso, já que o ato da sociedade de economia mista importava na “construção de obras do maior interesse da sociedade, dado o vulto dos dinheiros públicos nelas empregados e o bem estar que ensejam à coletividade” e, portanto, não se poderia deixar esses atos “imunes à fiscalização da própria sociedade, pela via daqueles remédios judiciais” (16).
O problema é que, ao admitir o mandado de segurança
contra ato de dirigentes de sociedade de economia mista, esse julgamento
terminou por influenciar outro subseqüente, também da mesma Turma do STJ (a 1a.
Turma), onde se discutiu especificamente se o corte de energia elétrica é ato
(delegado) de autoridade pública, sujeito ao mandado de segurança. O relator,
Min. José Delgado, terminou por concluir que sim, assentando na ementa do
acórdão (17):
“RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE
SEGURANÇA. ATO PRATICADO POR DIRIGENTE DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. CORTE DE
ENERGIA ELÉTRICA. POSSIBILIDADE DE IMPUGNAÇÃO PELA VIA MANDAMENTAL. RECURSO
PROVIDO.
1. É impugnável, por Mandado de Segurança, o ato de
autoridade dirigente de Sociedade de Economia Mista, quando praticado com abuso
e de forma ilegal.
“In casu”, trata-se de ato do Superintendente de
Distribuição Norte das Centrais Elétricas de Goiás (CELG) e seu representante
local, que visando a compelir o recorrente ao pagamento de contas em atraso,
determinou a supressão do fornecimento de energia elétrica em outras unidades
ao mesmo pertencentes, que estavam com o seu pagamento em dia, constituindo tal
prática, medida passível de impugnação pela via mandamental.
2. Tem-se, atualmente, procurado emprestar ao
vocábulo autoridade o conceito mais amplo possível para justificar a impetração
do Manado de Segurança, tendo a lei adicionado-lhe o expletivo “seja de que
natureza for” (REsp 84. 082/RS,
rel. Min. Demócrito Reinaldo)” (18).
Esse último julgado, embora da relatoria de um dos
mais eminentes juristas que já integraram o STJ, não emprestou a melhor
interpretação quando se trata de definir a natureza do ato do delegado do
serviço público, para fins de mandado de segurança (19).
A posição nele expressa, admitindo o mandado de segurança como via de impugnação
do corte de energia elétrica (com fundamento no inadimplemento) tem perdurado
na 1a. Turma daquela Corte (20),
bem como tem deitado influência sobre outros órgãos fracionários do tribunal (21).
Esses
julgados, como se disse, talvez ainda influenciem advogados e o próprio
Judiciário, levando-os a admitir a impetração de mandados de segurança contra o
ato de corte (suspensão do fornecimento) de energia elétrica. Mas é preciso
alertá-los para a inconciliável circunstância de que a construção dessa
jurisprudência apoiou-se em premissas e situações completamente distintas da
atual, quando as companhias distribuidoras de energia elétrica ainda
permaneciam sob a égide estatal, adotando a forma de sociedades de economia
mista sob o controle dos Estados-membros da Federação. Em razão do
subseqüente processo de privatização, com o controle dessas companhias passando
para o setor privado, uma nova jurisprudência há de ser erigida em torno da
matéria. Ato de dirigente de empresa privada concessionária de energia elétrica
não pode ser considerado como delegado do Poder estatal, a não ser naquilo que
expressa verdadeiro ato jurídico expressivo de autoridade pública, o que
não é o caso do simples corte (suspensão) do fornecimento de energia elétrica a
usuário inadimplente com suas obrigações contratuais.
Esse novo caminho jurisprudencial já começou a ser
traçado dentro da própria 1a. Turma do STJ, num dos seus mais
recentes pronunciamentos, conduzido por um dos seus mais modernos integrantes,
o Min. Teori Albino Zavascki, que afastou a incidência do mandado de segurança
para se atacar ato de empresa privada concessionária de energia elétrica. O
relator original, Min. Francisco Falcão, havia fundamentado seu voto
apoiando-se nos dois outros precedentes relatados pelo Min. José Delgado (REsp
174085-GO e Resp 430783/MT), mas foi vencido diante da argumentação do Min.
Teori Albino Zawascki no sentido de que o ato de empresa privada de energia
elétrica, ainda que formado em procedimento licitatório, é ato de mera gestão,
de interesse interno e particular da empresa, não correspondendo a ato de
autoridade pública para fins de mandado de segurança. A ementa desse mais novo
julgado está assim expressa:
“MANDADO DE SEGURANÇA. ATO DE EMPRESA PRIVADA CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO. DESCABIMENTO.
1. As empresas privadas, embora concessionárias de serviço público, não estão obrigadas a submeter suas compras ou a contratação de serviços ao regime de licitação. Se os submetem, o fazem por interesse próprio, mas os atos assim praticados não se transformam em ato administrativo, e o contrato que daí resulta não será um contrato de direito público. Continua, como é da sua natureza, um simples ato particular de gestão, típico ato jurídico privado. Não sendo ato de autoridade, não há como supor-se presente a viabilidade de atacá-lo pela via do mandado de segurança.
2. Recurso especial a que se nega provimento. (RESP nº 429849-RS, DJ. 10/11/2003, pp. 159)”.
Essa parece ser a tendência doravante no STJ, de
definir que uma relação obrigacional bilateral privada, consistente no
fornecimento de determinado serviço e a respectiva contraprestação, não envolve
interesse da Administração pública (nem mesmo indireto), já que o fornecedor,
nesse caso, nem mais é uma empresa com participação do capital estatal. Como
muita propriedade, e nesse sentido, explicou o Min. Teori Zavascki que “...as
empresas privadas, embora concessionárias de serviço público, não estão
obrigadas a submeter suas compras ou a contratação de serviços ao regime de licitação,
como ocorre com a administração pública. Se os submetem, o fazem por interesse
próprio, apenas como método de melhor gerenciar seus negócios. Portanto, não
se pode ver, nessa espécie de atos de concessionárias (que sequer têm a
participação do capital estatal), um ato de autoridade, nem mesmo delegada.
O contrato que surge dessa licitação não se transforma em contrato de Direito
Público e a forma de selecionar o contratado não se transmuta em procedimento
ou ato administrativo. Continua, como é de sua natureza, um simples ato
particular de gestão, típico do ato jurídico privado. Não sendo ato de
autoridade, não há como supor-se presente a viabilidade de atacá-lo pela via do
mandado de segurança” (grifo nosso).
Essa mais nova vertente da jurisprudência do STJ,
como se disse, tende a prosperar, evitando que questões relacionadas ao corte
de energia de usuário (consumidor) inadimplente sejam veiculadas pela via
imprópria da ação mandamental, preterindo-se os procedimentos cautelares
comuns, estes sim admissíveis quando se trata de resolver situações contratuais
e toda espécie de relações jurídicas de ordem privada.
Diga-se, por fim, que a preferência pelo uso dos
procedimentos cautelares, atende também a uma razão de ordem prática.
Explico: como eram pessoas jurídicas (sociedades de economia mista) sob o
controle (indireto) dos Estados que prestavam os serviços públicos de
fornecimento de energia elétrica, os mandados de segurança contra atos de seus
dirigentes costumavam ser resolvidos na Justiça comum. Desaparecida a ligação
com os Estados-membros, as impetrações de ações de segurança têm que recair
obrigatoriamente na Justiça Federal, em virtude de o Poder concedente (dos
serviços de distribuição de energia elétrica) ser a União Federal (22). Ora, se se concebe que o ato que corta o
fornecimento de energia elétrica é ato administrativo, atacável via mandado de
segurança, a autoridade pública nesse caso age por delegação do Poder Público
Federal (a União Federal), sujeitando-se, por conseguinte, à competência da
Justiça Federal (23). Para evitar que
disputas (causas) meramente privadas, sem qualquer interesse direto da União ou
do seu órgão regulador (a ANEEL), deixem o seu leito natural - que é a Justiça
estadual (as varas cíveis) - para ter lugar no âmbito dos órgãos da Justiça
Federal, é desaconselhável a jurisprudência que admite o manuseio do mandado de
segurança.
A continuar-se entendendo cabível o mandado de
segurança contra o corte de energia elétrica e, por conseqüência, o seu
processamento junto aos órgãos da Justiça Federal, simplesmente viola-se o
comando do art. 2o. da Lei 1.533/51 (Lei do Mandado de Segurança),
que somente considera autoridade federal, para definição de competência da
Justiça Federal, quando “as conseqüências de ordem patrimonial do ato contra o
qual se requer o mandado houverem de ser suportadas pela União Federal ou pelas
entidades autárquicas federais”. Pelo corte (suspensão) de energia,
exclusivamente responde o concessionário e, sendo constatada a abusividade, e
concedida a segurança, somente ele (pessoa jurídica de direito privado) arca
com as conseqüências desse ato, não refletindo, ainda que indiretamente, sobre
o Poder concedente (a União Federal). Não há, portanto, como se justificar o
cabimento da segurança nesses casos e seu processamento pela Justiça Federal.
Ainda que essa regra (art. 2o. da Lei 1.533/51) pudesse ser
temperada, uma questão de política judiciária mesmo deve funcionar não
incentivando a que causas sem qualquer interesse público (da União) afluam no leito da Justiça Federal.
Acreditamos firmemente que já se esboça uma tendência no sentido de
revisar a jurisprudência que admite o manuseio do mandado de segurança contra
ato de suspensão de energia elétrica, praticado por concessionária privada de
serviços públicos. Mesmo no caso de corte fundado na prática de atos
fraudulentos pelo consumidor (usuário), temos que, ainda assim, o ato é de ser
entendido como resolução de interesses meramente privados. Quando o representante
da concessionária serve-se de auto de infração, retira o medidor de
eletricidade e nele faz perícia, concluindo pela ocorrência de fraude, esses
atos não representam a consecução de nenhum interesse público, eis que
objetivam em última análise apenas fundamentar a exigência do pagamento da
(eventual) dívida (correspondente ao valor estimado do consumo desviado) e
justificar o não cumprimento de sua própria obrigação contratual (24). Nesse ponto, nunca é demais
esquecer a lição de CASTRO NUNES, sobre o descabimento do mandado de segurança
para se resolver relações e interesses privados:
“A essa ordem de relações jurídicas é alheio o mandado de segurança,
impróprio para resolver situações contratuais, assegurar pagamento de dívidas
e, de um modo geral, dirimir questões de direito privado. Nesta conformidade
está a jurisprudência da Corte Suprema e das Cortes locais. O que se resolve
pelo mandado de segurança é relação de direito público, definido pelo dever
legal da autoridade e pelo direito correlato de se lhe exigir o cumprimento
desse dever” (Do M. de Segurança, págs. 76/77).
Quanto mais se puder
interpretar que o ato (de corte de energia) é de mera gestão, praticado pela
concessionária por sua própria conta e risco, evitando, assim, que o
conflito venha a ser apreciado por órgãos da Justiça Federal, mais se atenderá
ao sentido de uma política judiciária voltada a preservá-la rigidamente para a
resolução de demandas que envolvam atos e interesses públicos (da União).
Notas:
(1) O par. 3o. do art. 6o.
da Lei 8.987/95 tem a seguinte redação:
“§ 3o Não se
caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de
emergência ou após prévio aviso, quando:
I - motivada por razões de ordem
técnica ou de segurança das instalações; e,
II - por
inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade”.
(2)
Advertimos para a circunstância de que usamos indistintamente os conceitos de consumidor
e usuário. É certo que este último termo (usuário) deve ser utilizado
sempre que se faça referência ao consumidor de serviços públicos, até porque é
o termo técnico que a Lei (8.987/95) emprega. O usuário deve ser entendido como
uma categoria específica de consumidor, aquele que faz parte da relação
jurídica contratual de serviço público. Mas essa relação contratual é uma
típica relação de consumo. Nesse sentido, divergimos do Prof. Antônio
Carlos Cintra do Amaral, para quem não se confunde o usuário do serviço
público com o consumidor. Afirma ele que “a relação contratual entre
concessionária e usuário, mediante a qual uma parte se obriga a prestar um
serviço, recebendo em pagamento um preço público (tarifa), tem como pressuposto
uma outra, entre a concessionária e o poder concedente”. Por essa razão, ou
seja, a existência de verdadeiros contratos “coligados”, o Poder Público
(concedente) tem responsabilidade solidária perante o usuário, “na
medida em que mantém a titularidade do serviço”, diz ele (“Distinção entre
usuário de serviço público e consumidor”, artigo publicado na Revista Diálogo
Jurídico, n. 13, abril/maio 2002). Com a devida vênia, o concessionário é quem
tem o encargo imediato da prestação e adequação do serviço público, respondendo
pelos danos que causar a terceiros. Como se diz na doutrina, o concessionário
age em nome próprio e por sua conta e risco, sendo perante ele
que os usuários demandam em relação ao serviço. Por outro lado, a circunstância
de o art. 27 da Emenda Constitucional n. 19/98 ter determinado ao Congresso
Nacional a elaboração de “lei de defesa dos usuários dos serviços públicos” não
implica reconhecer que o legislador pretendeu criar uma categoria estanque. A
aplicação subsidiária das normas do CDC (Lei 8.078/90) à defesa do usuário dos
serviços públicos sempre será possível, ainda que se tome de empréstimo aquelas
mais genéricas e de caráter principiológico.
(3) O que
demonstra que o Min. Humberto Gomes de Barros também mudou posição,
acompanhando a reviravolta da jurisprudência da 1ª Turma, pois antes
esposava o entendimento de que “é defeso à concessionária de energia
elétrica interromper o suprimento de força, no escopo de compelir o consumidor
ao pagamento de tarifa em atraso. O exercício arbitrário das próprias razões
não pode substituir a ação de cobrança” (REsp n. 223.778/RJ, Rel. Min.
Humberto Gomes de Barros, DJU 13.03.2000).
(4) O artigo em questão tem a seguinte redação:
Art. 17. A suspensão, por falta de
pagamento, do fornecimento de energia elétrica a consumidor que preste serviço público
ou essencial à população e cuja atividade sofra prejuízo será comunicada com
antecedência de quinze dias ao Poder Público local ou ao Poder Executivo
Estadual.
Parágrafo
único. O Poder Público que receber a comunicação adotará as providências administrativas
para preservar a população dos efeitos da suspensão do fornecimento de energia,
sem prejuízo das ações de responsabilização pela falta de pagamento que motivou
a medida.
(5) Seria o
caso, e.g., da hipótese em que o corte tivesse de recair sobre um
consumidor hipossuficiente ou pessoa jurídica vinculada a grupo de consumidores
hipossuficientes. O STJ ainda não enfrentou essa questão, mas o Min. Franciulli
Neto, ao proferir voto condutor no Resp Resp 510478-PB ( j. 10.06.03, DJ
08.09.03), ressaltou expressamente que “não será o Judiciário entretanto, insensível relativamente às situações
peculiares em que o usuário deixar de honrar seus compromissos financeiros em
razão de sua hipossuficiência, circunstância que não se amolda ao caso em
exame”.
(6)Art. 2o.
da Lei 8.987/95.
(7) No regime legal da concessão de serviço público de
energia elétrica, é previsto que o concessionário se remunere através da
cobrança de um preço pago pela prestação do serviço ao consumidor final (art.
14 da Lei 9.427/96). É a sua contraprestação pela execução dos serviços, que
resulta na necessidade de se envolver em outras relações contratuais (de ordem
privatística) com os destinatários finais do serviço. Essa característica
privatística do contrato de fornecimento de energia tem origem, em princípio,
na própria Constituição Federal, quando admitiu a prestação de serviço público
por particular, em colaboração ao Poder Público, em regime de concessão ou
permissão (art. 175).
(8)
O
art. 2o. do CDC (Lei 8.078/90), ao definir consumidor, inclui também
as pessoas jurídicas adquirentes de produtos e serviços na qualidade de
destinatário final. Como a lei não restringe, é de se concluir que também as pessoas
jurídicas de direito público podem assumir a posição de consumidor
em relação contratual de consumo.
(9) A Súmula é de 03.10.69.
(10) Redação do par. 1o. de acordo com a
Lei 9.259, de 09.01.96. Já havia sido anteriormente alterado pela Lei 6.978, de
19.1.82, art. 12.
(11) O serviço público delegado é aquele transferido
através de ato administrativo bilateral (concessão) ou unilateral (permissão e
autorização). Trata-se de transferência sempre de caráter temporário, podendo
ser revogada, modificada ou anulada. Não ocorre uma transferência da
titularidade do serviço, mas apenas um traspasse da execução.
(12) Há uma discussão doutrinária sobre se a execução
do poder de polícia pode ser transferida ao particular, como acontece no caso
da concessão. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, os atos decorrentes do
poder de polícia, em princípio, não podem ser delegados a particulares,
admitindo apenas a prática de certos atos materiais instrumentais à
prática do ato jurídico de polícia (ver Serviço Público e Poder de Polícia:
concessão e delegação, Revista Diálogo Jurídico Ano I, n. 5, agosto de
2001).
(13) Essa expressão é utilizada por Celso Antônio
Bandeira de Mello, ob. cit.
(14) O marco do
processo de privatização no Brasil pode ser considerado no momento em que o
Governo Federal, em março de 1990 (durante, portanto, a administração Collor de
Mello), enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória 155 (que se tornou a
Lei 8.031/90), contendo o que viria a ser a base legal do Programa Nacional de
Desestatização (PND). Embora o programa de privatização tivesse outros
objetivos paralelos de política macroeconômica, como o de consolidar o plano de
estabilização econômica que acabara de ser implantado e reduzir a participação
do Estado na economia como forma de atrair o capital estrangeiro, o propósito
fundamental (como não poderia deixar de ser) era o de repassar ao setor privado
a administração de empresas estatais que tinham chegado a um profundo estado de
deterioração da qualidade dos serviços oferecidos aos consumidores.
Na verdade, os primórdios da privatização remontam às
décadas de 70 e 80, mas sem a significação do processo iniciado nos anos 90,
proporcionado pela mudança na "opinião generalizada sobre o papel do
Estado no desenvolvimento econômico". O Estado não deveria executar
atividades que o setor privado fosse plenamente capaz de realizar. Ao
contrário, deveria concentrar seus esforços em áreas como educação, saúde,
segurança e regulação. Esse era o raciocínio usado para justificar as
privatizações, que se tornaram uma das principais prioridades da nova
administração e avançaram sobre setores da indústria do aço, da petroquímica e
de fertilizantes. A fase mais intensa, mais longa e mais difícil do processo de
privatização só teve início, no entanto, durante a primeira gestão de Fernando
Henrique Cardoso, no ano de 1995, quando foram incluídas empresas públicas das
áreas de mineração, eletricidade, ferrovias, portos, rodovias,
telecomunicações, água e esgotos e bancos.
(15) 1a. Turma do STJ, Resp n. 84.082-RS, j. 23.05.96,
DJU 23.05.96.
(16) Note-se, portanto, que, no julgado acima, estavam
envolvidos a preservação do patrimônio público e dos princípios da moralidade e
impessoalidade administrativas, daí o cabimento do mandado de segurança como
via de impugnação de atos de dirigentes de sociedade de economia mista.
(17) REsp
174085-GO, j. 18.08.98, DJ 21.09.98. Nesse
acórdão, o relator apenas acrescentou que o dirigente da companhia de
eletricidade (sociedade de economia mista) “agiu em cumprimento de determinação
de legislação específica do setor de energia elétrica, através do poder
concedente, Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, contida na
Portaria DNAEE n. 22/86, o que demonstra que praticou o ato impugnado no
exercício de função delegada pelo Poder Público”.
(18) Observe-se que, na parte final da ementa, o
julgado repete, ipsis literis, trecho do acórdão anterior, da relatoria
do Min. Demócrito Reinaldo (REsp 84.082-RS).
(19) Reformou acórdão da 2a. Câmara Cível
do TJ de Goiás, que, no nosso entender, tinha atribuído melhor solução a essa
questão, assim ementado:
Mandado de segurança. Sociedade de Economia Mista. Ato
de gestão.
As sociedades de economia mista podem agir, tanto como
entidades públicas, gerindo serviços públicos, quanto como entidades privadas,
editando atos de direito privado. Assim é que, evidenciado que o ato por ela
praticado – corte de energia elétrica -, foi de mera gestão, não podendo ser
tido como de mera autoridade, não pode o mesmo ser atacado por mandado de
segurança”.
(20) No Resp 430783/MT, também da relatoria do Min.
José Delgado, julgado em 17.09.02 (DJ 28.10.02), a Turma manteve o mesmo
posicionamento. Nesse caso, a companhia de energia elétrica também era uma
sociedade de economia mista.
(21) No julgamento do AGA 248297-SE, tendo como relatora
a Ministra Nancy Andrighi, a 2a. Turma acolheu a tese de que cabe
mandado de segurança contra o corte de energia elétrica. A relatora, em seu
voto, utilizou como precedente o REsp 174.085-GO, relatado pelo Min. José
Delgado.
(22) Compete privativamente à União Federal explorar
diretamente ou mediante autorização ou concessão os serviços de instalação de
energia elétrica (art. 21, XII, d, da Constituição Federal).
(23) São inúmeros os acórdãos recentes que estão dando
pela competência da Justiça Federal, para julgar mandados de segurança
impetrados contra o corte de energia elétrica. O entendimento é o de que
“conforme o art. 109, VIII, da Constituição, compete à Justiça Federal
processar e julgar mandados de segurança contra ato de autoridade federal,
considerando-se como tal também o agente de entidade particular quanto a atos
praticados no exercício de função delegada” (CC 37912-RS, rel. Min. Teori
Albino Zavascki, j. 27.08.03, DJ 15.09.03. No mesmo sentido: CC 38875/RS, rel. Min. Luiz Fux, j.
08.10.03, DJ 17.11.03. 1a. Seção; CC 39358-RS, rel. Min. Castro
Meira, j. 24.09.03, DJ 20.10.03). É importante destacar que esses julgados não
adotam diretamente a tese de que o corte de energia elétrica é ato de
autoridade pública e, portanto, sujeito ao mandado de segurança. Eles apenas
destacaram a competência para julgar esses mandados de segurança. Como
destacou o Min. Teori Zavascki ao votar no CC 37912-RS – numa clara indicação
de manter-se fiel ao seu pensamento de que não cabe mandado de segurança nessas
hipóteses, antes esposado no 429849-RS -, “se o ato atacado é ou não ato típico
de autoridade ou ato de mera gestão, é matéria que diz com a admissibilidade do
mandado de segurança, e não com a competência para julgá-lo”. Nesses conflitos
de competência que têm sido julgados pelo STJ, tem-se mantido a competência da
Justiça Federal quando o Juiz Federal do grau inferior se declara competente,
privilegiando-se o enunciado da Súmula 60 do extinto TFR, que prediz: “Compete
à Justiça Federal decidir da admissibilidade de mandado de segurança impetrado
contra atos de dirigentes de pessoas jurídicas privadas, ao argumento de
estarem agindo por delegação do poder público federal".
(24)
Ainda que essas ações sejam amparadas na Portaria n. 222/87 do antigo DNAEE.
COMO
CITAR ESTE ARTIGO:
REINALDO
FILHO, Demócrito. Ações judiciais para impedir o corte do
fornecimento de energia elétrica – Alguns apontamentos sobre sua natureza e a
autoridade competente para julgá-las. Disponível na Internet:
<http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em xx de xxxxxxxxxxx de xxxxx.
(substituir x por dados da data de acesso ao site)
Artigo publicado no Mundo Jurídico (www.mundojuridico.adv.br) em
18.04.2004