A Informação como Bem de Consumo[1]

 

 

Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho

Juiz de Direito, Coordenador-Geral e Professor Titular  do Mestrado da Universidade Estácio de Sá, Doutor pela UERJ e Mestre pela PUC-RJ

 

 

1) Alguns casos de informação supostamente ilícita

No dia 15/03/98, o jornal o Dia  publicou uma série de reportagens intitulada Órfãos do Vício, em que um casal teria se deixado fotografar cheirando cocaína em cima de uma Bíblia e na frente de um filho de 8 anos. O filho apareceria na foto segurando o prato em que a droga teria sido esquentada. Posteriormente, denunciou-se que a família recebeu dinheiro do jornalista para posar.

No dia 14/05/98, o canal de televisão a cabo Travel Channel, exibiu uma polêmica reportagem sobre o Brasil. Entre tantos erros que foram imputados à emissora, estavam: que a alimentação do brasileiro é baseada em aipim que, se comido cru, provoca a morte; que o mercado Ver-o-peso, de Belém, destina-se ao comércio de objetos de magia negra; que o melhor hotel da Bahia cobra a diária de US$10,00; que o Pelourinho é freqüentado por crianças sujas e animais soltos; que a praia de Boa Viagem é repleta de micróbios; que a praia de Jericoacoara é habitada por cobras. Segundo os jornais e revistas que divulgaram os fatos, alguns dos equivocados comentários foram feitos com boa dose de ironia.

No dia 06/05/98, a emissora SBT teria feito uma reportagem sobre imigrantes e sobre os países que falam a língua portuguesa em todo o mundo. Segundo o jornal O Globo, a chamada da reportagem insinuava que os repórteres da rede teriam dado a volta ao mundo para conhecer todos os países e para elaborar a matéria, mas, na verdade, a equipe somente teria ido até Goa, na Índia, e os demais entrevistados o teriam sido em São Paulo.

No dia 07/10/98, a rede de televisão Record teria transmitido uma reportagem ao vivo, retratando um grupo de traficantes em plena ação no interior do Cemitério do Caju. Um deles teria até dado entrevista ao vivo. A reportagem visava a denunciar a falta de policiamento nos cemitérios. Imediatamente, uma equipe de policiais militares invadiu o cemitério para prender os traficantes, mas não os encontrou. Posteriormente, denunciou-se que a matéria fora forjada e, em vez de traficantes, filmaram-se pessoas da produção do programa. Segundo o Jornal do Brasil, o delegado da área afirmou que três testemunhas teriam visto membros da equipe de reportagem gravando a cena como se fossem traficantes.

Finalmente, o caso mais rumoroso foi divulgado durante os meses de outubro e novembro de 1998. A rede SBT foi acusada de pagar pessoas necessitadas para interpretarem dramas fictícios como se fossem verdadeiros e de exibir cenas de agressão verbal ou física, além de cenas de pessoas deficientes fisicamente, no Programa do Ratinho.

No dia 13/1/99, o Brasil foi surpreendido com boatos acerca da instabilidade de sua economia, causada pela decisão do governo de alterar a banda cambial e de substituir o presidente do Banco Central. No mesmo dia, a Agência Reuters divulgou uma fotografia mostrando uma imensa fila na porta de um banco brasileiro, o que, segundo a agência, retrataria uma corrida da população aos bancos por causa da crise da economia. Ocorre que a fila era para pagamento de um imposto automotivo - IPVA -, pois se tratava do último dia para pagamento sem multa.

E para demonstrar que o problema não é só brasileiro: a rede americana CNN divulgou uma reportagem do famoso jornalista Peter Arnett sobre o uso do gás venenoso sarin, pelo Pentágono, contra soldados americanos que desertavam na guerra com o Vietnam. A informação era comprovadamente falsa, conforme reconheceu a própria CNN.

Para não ficarmos apenas no presente, lembremo-nos de um acontecimento grave e polêmico do jornalismo brasileiro. No dia 30/04/81, uma bomba explodiu no Riocentro, no interior do carro de dois militares, por ocasião de um show comemorativo do dia do trabalho. Logo após a explosão, uma equipe da televisão Globo teria filmado e divulgado em edição extraordinária o interior do carro, captando a imagem de uma possível segunda bomba em seu interior, o que mudaria inteiramente a versão oficial. Mas o Jornal Nacional, da mesma emissora, que passou à noite, não exibiu a parte do filme em que aparecia aquela imagem. Hoje já está comprovado que no carro dos militares havia mais armas e explosivos.

Em 1996 o TJSP proibiu uma mensagem publicitária em que uma famosa apresentadora de TV induzia crianças a destruírem tênis usados para obrigar os pais a comprarem novos, da marca usada pela apresentadora.

 Em 1997 os laboratórios de análises clínicas foram acusados de transmitirem diretamente aos planos de saúde os resultados de exames de doenças graves, como o objetivo de protegê-los contra o credenciamento de tais doentes.

Nas últimas eleições de outubro de 1998, os institutos de pesquisa de opinião eleitoral foram acusados por candidatos, partidos e órgãos da imprensa de terem errado muitos dos resultados oficiais em várias regiões do Brasil. Caso ficasse demonstrado ter havido falsidade nas pesquisas ou omissão injustificável de apurar com realismo as opiniões eleitorais dos eleitores, o instituto incidiria em responsabilidade perante a coletividade, por violar o valor de verdade e imparcialidade que deve existir, além de influir de modo artificioso e fraudulento no comportamento das pessoas, que, cientes da situação de seu candidato, passariam a votar em outro o que constitui o denominado voto útil.

 Próximo à virada dos anos 1999/2000, o Ministério da Previdência veiculou na televisão uma mensagem objetivando supostamente esclarecer a opinião pública sobre a necessidade de reforma da Previdência e, especificamente, de igualar funcionários públicos e privados.  Nela o locutor dizia que os funcionários públicos se aposentam com vencimentos integrais enquanto os da iniciativa privada não. Ora, se trata de informação oficial do governo, ela haveria de ser completa, transparente, verdadeira. Deveria, portanto, esclarecer todas as diferenças entre o sistema público e o privado e não só uma deles, como, por exemplo, a inexistência de fundo de garantia para os funcionários públicos, entre tantas outras.

Em dezembro 1998, a FEEMA divulgou informação, amplamente publicada nos jornais, segundo a qual o programa de despoluição da Baía da Guanabara apresentara progressos significativos, inclusive fornecendo dados científicos que comprovariam a redução em 90% do potencial poluidor das indústrias vizinhas. No dia seguinte, grupos ambientalistas constestaram veementemente a informação oficial, alegando que a quantidade de lixo tóxico lançado nos últimos dez anos chegou a triplicar.

Se as acusações acima se confirmarem, logo se percebe que a qualidade da informação que recebemos ou de que somos objeto não é satisfatória.

Alguma coisa há de errada no processo informativo. E, se está errada, é de indagar-se se a informação é um bem jurídico merecedor da tutela do direito.

 

 

2) A informação como bem jurídico[2]

Não há sociedade sem comunicação de informação. A história do homem é a história de sua comunicação com os demais; é a história da luta entre as idéias; é o caminhar dos pensamentos. O pensar e o transmitir o pensamento são tão vitais para o homem como a liberdade física.

Enquanto a informação circulava lentamente, enquanto a informação não ocupava tanto os afazeres do homem, enquanto a informação quase nada alterava o curso normal da vida em sociedade, enquanto a informação era recebida por pequena parcela da população, enfim, enquanto a informação não era determinante para traçar o rumo da vida em sociedade, era natural que a doutrina não se preocupasse mesmo com o seu aspecto jurídico. Na medida em que o avanço tecnológico permite uma inacreditável rapidez na sua circulação, ao mesmo tempo em que massifica a sua divulgação, a informação passa a ter uma relevância jurídica antes não reconhecida.

O progresso tecnológico transformou a informação em um bem jurídico capaz não só de satisfazer a necessidade do saber, como de influir decisivamente no seu uso. Mas não de um saber científico, compartimentalizado ou especializado, mas um saber genérico, simples conhecimento do que está acontecendo ao redor do homem para que ele possa tomar as decisões que lhe competem como integrante obrigatório de uma sociedade. Aí reside o interesse jurídico da informação: saber para melhor decidir, para melhor escolher os rumos a dar à sua vida, à vida de sua família, ao seu país, à sua empresa, à sua função, à sua sociedade, ao seu partido político, à sua religião etc.

A opulência da informação, o grande poder de persuasão que a reiteração da informação exerce sobre o homem, é o que o torna objeto de proteção, para que o homem não seja levado a assumir comportamentos que não correspondam a uma perfeita compreensão da realidade, nem a ter sentimentos que também não se apóiem na situação fática real.

A informação não teria qualquer valor jurídico se não estivesse visceralmente vinculada à capacidade de discernimento e de comportamento do homem. É justamente para proteger a sua capacidade de reflexão que se propõe do Direito de Informação.

A essência da informação é a realidade, a objetividade, não a ilusão. Sobre a informação o homem reflete e decide. Na ilusão sua reflexão é viciada, é falsa, sua vontade é deturpada. O direito cuida para que isso não aconteça, para que o homem disponha de instrumentos seguros para receber informação real, de modo a poder refletir e decidir com segurança.

 

 

3) Informação e Expressão de Idéias devem merecer o mesmo tratamento?

Se a informação é um bem jurídico, devemos compreender em que consiste. Mais especificamente, se há alguma diferença entre informação e manifestação de idéias? Devem elas ser tratadas da mesma forma?

O artigo 10 do Convênio Europeu de Direitos Humanos e o artigo 19 do Pacto Internacional de Direitos Civis englobam na liberdade de expressão a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de comunicar informações, tratando-as do mesmo modo.

A maior parte da doutrina estrangeira também caminha no mesmo sentido: Ekmekdjian, Antonio Aguilera Fernandez, Campoamor, Badeni e Pilar Cousido.

Ao contrário da maioria da doutrina e da disposição do Convênio e do Pacto, o Tribunal Constitucional da Espanha adota solução melhor inspirada, pregando uma disciplina diferente entre a expressão e a informação, com base no artigo 20 da Constituição espanhola que cuida dos institutos em disposições distintas.

Todos os doutrinadores citados, mesmo os que, em maioria, adotam uma disciplina comum entre expressão e informação, deparam-se com, pelo menos, uma distinção importante entre os dois institutos: a veracidade e a imparcialidade da informação. E é, justamente, em razão dessa distinção fundamental que se deve pensar em um direito de informação que seja distinto em sua natureza da liberdade de expressão. Enquanto que a expressão de uma idéia, uma opinião, um pensamento, não encontra, necessariamente, qualquer apego aos fatos, à veracidade, à imparcialidade, atributos que não lhe cumpre preencher, a informação, como bem jurídico que é, não pode ser confundida como simples manifestação do pensamento. Quem veicula uma informação, ou seja, quem divulga a existência, a ocorrência, o acontecimento de um fato, de uma qualidade, ou de um dado, deve ficar responsável pela demonstração de sua existência objetiva, despida de qualquer apreciação pessoal.

Por que isso deve acontecer? Por que se afigura imprescindível distinguir informação de expressão? Porque o recebedor da informação necessita do fato objetivamente ocorrido para estabelecer a sua cognição pessoal e para que possa elaborar a sua percepção sobre o mesmo fato, de modo a formar sua convicção sem qualquer interferência. Já a divulgação de uma opinião é necessariamente parcial, pessoal, impregnada de uma cognição já realizada pelo seu emissor, de modo que o recebedor da opinião deve recebê-la, não como matéria prima para seu pensamento, mas como matéria já trabalhada por outrem, já resolvida à luz dos fatos objetivamente recolhidos pelo conhecimento daquele. No primeiro caso, o recebedor elaborará seu próprio pensamento; no segundo, aderirá ou não ao pensamento já formulado.

 

 

4) Conceito, espécies e conteúdos

Daí podemos conceituar o direito de informação como sendo um sub-ramo do direito civil, com assento constitucional, que regula a informação pública de fatos, dados ou qualidades referentes à pessoa, sua voz ou sua imagem, à coisa, a serviço ou a produto, para um número indeterminado e potencialmente grande de pessoas, de modo a poder influir no comportamento humano e a contribuir na sua capacidade de discernimento e de escolha, tanto para assuntos de interesse público, como para assuntos de interesse privado mas com expressão coletiva.

O direito de informação desdobra-se, portanto, em quatro espécies relevantes de mensagens: a informação publicitária, a informação oficial ou governamental, a informação de dados pessoais automatizados ou não e a informação jornalística.

Seus conteúdos são o dever de informar, o direito de informar, o direito de ser informado, a faculdade de receber informação e a faculdade de investigar (não só o fato mas a própria informação), que são os responsáveis por transformarem o recebedor da informação de mero espectador para sujeito de direitos.

 

 

5) A Informação como Bem de Consumo

Quais são esses direitos e qual a natureza deste bem jurídico?

Se a informação é realmente um bem jurídico distinto da expressão de idéias, é preciso agora examinar se há alguma confluência entre ela e as relações de consumo.       

É importante sublinhar que a informação publicitária encontra regra no Código do Consumidor, o mesmo acontecendo com a informação de dados, ainda pouco utilizada no Brasil. Esta somente recebeu tratamento legal no mesmo Código, relativamente aos bancos de proteção ao crédito, próprio das relações de consumo, circunstância, entretanto, que não limita a aplicação de tais regras àquele setor diante da absoluta inexistência de outras regras. Além do mais, nesse particular, o Código seguiu toda a doutrina existente sobre a informação de dados, em geral, não havendo motivo para sustentar sua aplicação apenas aos serviços de proteção ao crédito.

A conseqüência de uma tal vinculação é que ambas as formas de informação recebem a influência, também e fundamentalmente, daquele sistema legal, vale dizer, de seus institutos básicos, de seus princípios, de suas sanções, etc. E, por isso, convém transitar por ele, ainda que de modo singelo, para investigarmos a compatibilidade do direito enunciado neste trabalho com o sistema das relações de consumo.

Segundo José Augusto Garcia de Souza[3] o Código se move orientado por sete princípios: da vulnerabilidade do consumidor, da ordem pública, da dimensão coletiva, da boa-fé objetiva, da transparência, da qualidade dos produtos e serviços e da efetividade da tutela processual. Vejamos as explicações do autor. A vulnerabilidade é a própria razão de ser do Código: ele existe porque o consumidor é vulnerável sob o aspecto técnico, embora no mais das vezes o possa ser sob o aspecto econômico. Em um Estado que se afirma social, a opção legislativa foi de proteger o consumidor em razão de sua posição inferior. O princípio da ordem pública implica na aplicação dos dispositivos do Código, cogentemente, ainda que ocorram transformações político-econômicas e independentemente de a relação jurídica ter se originado em data anterior à sua vigência. O princípio da boa-fé objetiva difere da subjetiva porque a primeira é regra de conduta geral que incide sobre toda a coletividade, enquanto que a segunda tem a ver com o indivíduo em um determinado negócio jurídico. O princípio da transparência fala por si só: significa correção, proceder sem subterfúgios, agir sem falsidade. O princípio da qualidade tem a ver com a boa e eficaz utilização do produto no fim a que se destina. A efetividade da tutela processual implica em que as normas do Código são dotadas de instrumentos capazes de obrigar a seu cumprimento; o processo está comprometido com os fins do Código, com a sua aplicação prática. Nesse sentido, promove-se a facilitação da defesa do consumidor, inclusive com a inversão do ônus da prova. O princípio da dimensão coletiva, segundo o autor, é de importância capital e permeia todo o Código: “os conflitos gerados por uma sociedade de massa devem ser enfrentados de maneira congruente, ou seja: coletivamente”[4].

Como se percebe, alguns desses princípios conformam o cerne do direito de informação. Por acaso não é de coletivização, interesse público (ordem pública), qualidade (verdade), transparência que vimos escrevendo todo esse tempo? Será que, apesar disso, tratam-se de princípios que devem ter aplicabilidade compartimentalizada em cada seara? Definitivamente, não! Todos eles são princípios de um tipo de direito diferente, que está surgindo no final deste século e que promete afirmar-se inteiramente no próximo: o direito coletivo. O direito coletivo não se traduz apenas em um conjunto de regras que o consagrem expressamente. Antes, conformam todas as regras de direito coletivo apesar de estas regras não o dizerem expressamente. Ele é extraído do ordenamento jurídico como um todo, da ciência jurídica, e se espraia pelas leis esparsas que, apesar de cuidarem de situações individuais, têm nítido compromisso coletivo.

Daí porque os demais princípios do Código se aplicam, mutatis mutandis, em todas as emanações do direito coletivo: onde houver conflitos de massa, “devem ser enfrentados de maneira congruente: coletivamente”[5]. Portanto, a boa-fé objetiva, a efetividade do processo, a vulnerabilidade, enfim, todos os princípios e subprincípios, em tese, são exercitáveis plenamente.

Em outras palavras, não é imprescindível que a relação jurídica seja de consumo para aplicar-se o sistema do Código: basta que a relação jurídica seja de caráter coletivo, ou seja, que verse, influa, congregue uma coletividade de pessoas. Não é possível continuar aplicando regras jurídicas individualizadas, soluções homeopáticas, quando o conflito é um macroconflito, uma relação jurídica que envolve toda a coletividade, além das pessoas que queiram ou não participar dela. A propósito, e extraindo apenas o que interessa, o artigo 2º, parágrafo único do Código atesta que “equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”. Podemos traduzir: a coletividade de pessoas, que haja intervindo em relações de direito coletivo, é sujeito de direitos. No fundo, é titular do direito de exigir o cumprimento dos princípios gerais do direito coletivo: a verdade, a transparência, a boa-fé objetiva, a efetividade do processo, a vulnerabilidade de sua situação, o tratamento coletivo, o respeito à ordem pública e qualquer outro condizente ou deles decorrentes.

A conclusão a que se chega é que os princípios gestores do Código do Consumidor podem ser aplicados ao direito de informação, pois há verdadeira confluência e pertinência entre as situações jurídicas.

Já tive ocasião de afirmar isso com um enfoque bem mais limitado[6]. Sustentei que a informação jornalística por meio do rádio e da televisão insere-se na disciplina do Código, por força do seu artigo 6º, X e 22[7], considerando tratarem-se de serviços públicos, concedidos, permitidos ou autorizados. Hoje, não tenho dúvida de acrescentar também, na mesma disciplina, a informação por jornal. Afinal de contas, não se trata de uma prestação de serviço, mediante remuneração, consistente no oferecimento de um produto (a transmissão da informação)? Basta ler os artigos 2º e 3º[8] do Código para constatar a justeza daqueles conceitos ao jornal. E porque não sua inteira aplicação também ao rádio e à televisão, além daquele outro fundamento antes examinado? De todos os requisitos, o único que não se faz presente, sempre, é a remuneração (artigo 3º, parágrafo 2º). Mas, no caso, a remuneração é indireta: a remuneração pelo serviço não vem sempre do receptor, mas do anunciante, que, para ter a atenção do receptor, remunera o órgão de informação, para que este possa manter um bom serviço e, com isso, angariar cada vez mais receptores. O anunciante substitui, portanto, o receptor no pagamento da remuneração. Mas esta existe e é a mola mestra do sistema informativo.

No caso da informação de dados, também ocorre a remuneração seja de maneira direta ou indireta. Direta quando o banco de dados cobra pelo acesso ao seu sistema. Indireta quando alguém paga pelos dados para destiná-los ao público. É o caso dos dados estatísticos, em que os institutos de pesquisas vendem o resultado para alguém, que tem interesse em divulgá-la ao público. Exemplo marcante são as pesquisas eleitorais. Partidos, candidatos, órgãos de informação são clientes assíduos desses institutos, que trabalham remuneradamente para informar dados relativos à opção eleitoral dos eleitores. É indireta também quando os usuários suportam os custos para da informação usufruírem, como acontece com os bancos de dados das relações comerciais (SPC, por exemplo).

A única modalidade que não se ajusta com inteira perfeição às regras específicas de conceito, relação jurídica e sujeitos dos artigos 2º e 3º Código é a informação oficial. Sua base não é uma relação de consumo de um serviço informativo, mas um direito político de cidadania. A circunstância em nada prejudica as idéias básicas traçadas. Apenas a disciplina específica da informação oficial é diferente das demais, mas, de todo o modo, aplica-se o restante da disciplina proposta, naquilo que for pertinente, como ocorre com o artigo 22 do mesmo Código: informações adequadas, eficientes, seguras e contínuas, porque assim o exigem, também, as regras de direito público.

A confluência, portanto, entre o direito do consumidor e o direito de informação é tão intensa que atinge ao vértice de ambos: o direito coletivo.

 

 

6) A responsabilidade pela informação ilícita

O Direito se preocupou durante séculos com os conflitos intersubjetivos. A sociedade de massas, a complexidade das relações econômicas e sociais, a percepção da existência de outros bens jurídicos vitais para a existência humana, deslocaram a preocupação jurídica do setor privado para o setor público; do interesse individual para o interesse difuso ou coletivo; do dano individual para o dano difuso ou coletivo. Se o dano individual ocupou tanto e tão profundamente o Direito, o que dizer do dano que atinge um número considerável de pessoas? É natural que o Direito se volte, agora, para elucidar as intrincadas relações coletivas e difusas e especialmente à reparação de um dano que tenha esse caráter.

Ora, quando se protege o interesse difuso - que é um interesse de um número indeterminável de pessoas, que é de todos e de cada um ao mesmo tempo, mas que não pode ser apropriado por ninguém - o que se está protegendo, em última instância, é o interesse público. Não se trata da soma de interesses privados, particularizados, fracionados, pois cada pessoa é titular de todo o bem, sem que possa se opor ao gozo por parte dos demais titulares do mesmo direito. Inegavelmente, portanto, trata-se de um interesse público, não titularizado pelo ente público.

Tal interesse público pode ser tutelado pelo modo clássico de tutela dos interesses públicos, tipificando-se a conduta do agente causador do dano como crime e sancionando-se com uma pena criminal. Mas, pode ocorrer que o ordenamento jurídico, por qualquer razão, até mesmo por uma letargia legislativa, não tipifique tal conduta como crime, ficando inviável a aplicação de qualquer sanção penal. Nesse caso, não fica o legitimado inibido de lançar mão dos instrumentos de tutela próprios para a proteção dos interesses privados, assumindo tais instrumentos nítida função substitutiva da sanção penal.

Pode ocorrer que o ordenamento preveja a tutela penal de tais interesses, criminalizando as condutas violadoras, mas, mesmo aí, não se pode deixar de reconhecer um nítido interesse privado a preservar, consistente em usufruir o interesse difuso convenientemente, como bem jurídico, com as qualidades essenciais e naturais para a adequada satisfação de uma determinada necessidade. Nesse caso, a tutela se dará com a natureza da tutela civil, com caráter eminentemente reparatório, mas sem afastar a marca sancionatória implícita em toda a reparação civil, exceto no caso do dano não-antijurídico.

Daí porque deve-se admitir uma certa fungibilidade entre as funções sancionatória e reparatória em matéria de tutela de interesses difusos lesionados. A rígida concepção antes examinada, que preconizava a dicotomia entre interesse público-interesse privado e pena-reparação, não é mais recomendável diante de novas categorias de direitos que vão se impondo como realidade incontestável. A separação doutrinária e ideológica entre o público e o privado, que permeou toda a evolução do Direito, não mais se justifica, na medida em que aqueles interesses ganham a companhia de outros como o coletivo e o difuso, impregnados de características públicas e privadas, matizadas, confundidas e emaranhadas, embora nestes não se resumam.

De tudo resulta que os requisitos para fazer surgir a reação do direito à lesão de interesse difuso, os princípios que norteiam o critério de responsabilidade, bem como a própria função da imposição de responsabilidade devem ganhar certa flexibilidade, permitindo-se, com isso, agilidade e praticidade no combate e na reparação de atos violadores de interesses difusos.

Com essa conformação e preocupação, surge o recém denominado dano moral coletivo ou difuso. O dano moral, portanto, deixa a concepção individualista caracterizadora da responsabilidade civil para assumir uma outra mais socializada, preocupada com valores de uma determinada comunidade e não apenas com o valor da pessoa individualizada.

A transformação, portanto, da responsabilidade por dano individual para a responsabilidade por dano difuso, e também para o dano coletivo, impõe a adoção da responsabilidade objetiva para a reparação de todos os direitos difusos lesados.

No caso específico da responsabilidade pela prestação de um serviço consistente em informar, é aplicável o sistema de responsabilidade civil do Código do Consumidor, especialmente o do artigo, que disciplina a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços. Assim, em caso de vício de qualidade na prestação de serviços - má qualidade da informação - o fornecedor deve responder independentemente de culpa. Justifica Sérgio Cavalieri Filho que “se nem o Código Civil exige culpa tratando-se de vícios redibitórios, seria um retrocesso exigi-la pelos vícios do produto e do serviço disciplinados no Código do Consumidor, cujo sistema adotado é o da responsabilidade objetiva”.

A disciplina acima exposta, entretanto, encontra sério óbice legal no tocante à informação jornalística causadora de dano individual enquanto não for revogada a Lei nº 5.250, que prevê a responsabilidade subjetiva. É que esta Lei, apesar de mais antiga, é específica e não pode ser considerada revogada pelo Código. Mas no caso de dano difuso, nenhum óbice pode existir porque a Lei referida só cuida de relações intersubjetivas.

Assim, e concluindo, é perfeitamente possível aos legitimados à ação civil pública postularem a indenização por dano moral difuso/coletivo e/ou a correção da informação ilícita.



[1] Palestra proferida na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro em 19/06/2000.

[2] Excerto adaptado do livro  Direito de Informação e Liberdade de Informação, do autor, publicado pela Editora Renovar, em 1999.

[3] O Princípio da Dimensão Coletiva das Relações de Consumo: Reflexos no Processo do Consumidor, especialmente quanto aos Danos Morais e às Conciliações, in Revista de Direito da Defensoria Pública, volume 8, pgs. 21/76.

[4] Ibidem, pg. 55.

[5] É a mesma citação da nota anterior.

[6] Liberdade de Informação e o Direito Difuso à Informação Verdadeira, pgs 67/70.

[7] Art. 6º - “São direitos básicos do consumidor: X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral”. Art. 22 -”Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”. Parágrafo único - “Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código”.

[8] Art. 2º - “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produtos ou serviço como destinatário final”. Parágrafo único - “Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”. Art. 3º - “Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. § 1º - Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. § 2º - Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.

 

Artigo retirado do site: www.mundojuridico.adv.br