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O conceito de consumidor padrão - artigo 2.º, caput, do Código de Defesa do Consumidor

 

Mirella D'Angelo Caldeira

 

Mestre em Direito do Consumidor pela PUC/SP e doutoranda em Direito do Consumidor pela PUC/SP e Professora de Direito do Consumidor e de Direito Civil da UNIB, UNIP, UNISA e UNIRP

 

Seguindo a esteira do posicionamento adotado pela teoria dos maximalistas (extensiva), temos as seguintes considerações a tecer acerca do conceito de consumidor.

Entendemos que uma interpretação possível do termo “destinatário final” seria analisar não o produto adquirido, mas sim a atividade exercida pelo adquirente, bem como sua responsabilidade perante a relação que se estabelecerá com o consumidor. Por exemplo: o dono de um restaurante que adquire um fogão industrial para sua cozinha. A atividade que o adquirente exerce é totalmente diversa da exercida pelo fabricante do fogão. Decerto, a relação que se irá estabelecer entre o restaurante e o consumidor será decorrente da comida oferecida. O fogão adquirido não entra na cadeia de produção, ou melhor, não retorna ao mercado de consumo.

Se por ventura um consumidor passar mal em razão do prato que consumiu, na relação  restaurante/cliente, o fogão utilizado não tem nenhum reflexo, nenhuma importância. Para o consumidor, pouco importa se a comida foi preparada num fogão industrial ou convencional.

O dono do restaurante é, portanto, o destinatário final desse bem, na medida em que ele o utiliza e não o repassa na relação cliente/consumidor.

Acreditamos que pensar de outro modo seria prejudicar o adquirente e fechar as portas para uma relação tipicamente de consumo. O dono do restaurante, ao adquirir um bem durável, o faz acreditando que tal bem irá atender às suas expectativas, ou seja, funcionar a contento, dentro de um parâmetro adequado a que se destina. Se ele está adquirindo um fogão convencional ou industrial pouco importa, desde que o produto esteja em perfeitas condições de uso.

Analisando a relação de consumo apenas sob o aspecto do bem oferecido ao mercado, à disposição de qualquer pessoa, poderíamos, por exemplo, negar a aplicação do CDC se, porventura,  o dono do restaurante quisesse ter um fogão industrial na sua residência, vez que não poderia ser considerado destinatário final do bem.

O mesmo raciocínio já não vale em relação aos alimentos adquiridos pelo dono do restaurante. Nesse ato, o adquirente deixa de ser destinatário final do bem, e passa a ser responsável solidário pela qualidade e segurança desses produtos, vez que o alimento, sim, interessa na relação cliente/consumidor.

Da mesma forma, não será considerada relação de consumo quando o adquirente exercer a mesma atividade que o fabricante do produto. Por exemplo, um comerciante que resolve abrir um pequeno estabelecimento para venda de produtos alimentícios. Ao adquirir os produtos num hipermercado e repassá-los ao consumidor, o comerciante torna-se responsável solidário, entrando no ciclo da cadeia de produção e fornecimento do produto, de tal sorte que o consumidor poderá pleitear eventuais danos em face do comerciante,  fabricante, fornecedor etc.

Ao adquirir os produtos e recolocá-los no mercado de consumo novamente, o comerciante está, de forma automática, assumindo o risco da atividade, e será responsável solidário, nos termos dos arts. 13 e 18 do CDC.

Assim, o que distinguiria um destinatário final de um fornecedor  seria a sua atividade – que tem de ser distinta da do fornecedor do bem ou serviço – ligada à responsabilidade que o adquirente assume ao colocar o produto no mercado. Queremos dizer, um dos princípios que regem a relação de consumo é o da responsabilidade solidária (art. 7.º, parágrafo único). Quando a pessoa que adquiriu um bem o recoloca no mercado  de consumo novamente, torna-se responsável solidária, respondendo por eventuais danos causados ao consumidor, o destinatário final desse produto ou serviço.

Tanto isso é verdade que, ao ser demandada pelo consumidor, essa pessoa terá de indenizá-lo, porém terá direito de regresso em face do eventual responsável.

Quando, por exemplo, o consumidor aciona um restaurante em razão de uma comida estragada que lhe fez mal, terá o restaurante que indenizá-lo, porém, poderá entrar cm ação de regresso em face do supermercado que lhe forneceu o produto e não contra o vendedor do fogão industrial.

Ainda que se rate de um bem típico de produção, o produto em si – dependendo da atividade do adquirente – não será recolocado no mercado novamente, servindo apenas como meio para que se chegue ao produto final, este sim colocado no mercado de consumo e que vai dar origem a uma relação jurídica entre consumidor e fornecedor.

Ressalte-se que no caso de haver transformação do produto antes de ser recolocado no mercado, não estará configurada a relação de consumo. Por exemplo, a compra de chocolates para fazer ovos de páscoa.

O milionário que adquire um avião para viajar nos fins de semana é típico destinatário final do bem, ainda que o bem não esteja à disposição no mercado de consumo. O mesmo  já não ocorre se esse milionário passar a oferecer viagens para o público, cobrando por elas, porque, neste caso, ele passa a ser responsável solidário, vez que recolocou o produto no mercado de consumo. Caso haja um acidente pelo fato do produto, ele poderá acionar o fabricante do avião após indenizar as vítimas.

A pessoa jurídica que adquire um avião para transportar seus empregados não será destinatária final do bem. Ela torna-se responsável, pois, embora não haja relação com a atividade que exerce, ao oferecer um benefício aos seus empregados ela assume o risco dessa atividade, ainda que não cobre nada por isso (é o mesmo exemplo do estabelecimento que oferece estacionamento gratuito aos seus clientes). 

Concluindo, devemos entender por destinatário final aquele que utiliza o bem – quer pessoal, quer profissionalmente – e não o recoloca no mercado de consumo novamente. Ou seja, o destinatário final do produto ou do serviço:

1.    não exerce a mesma atividade que o fornecedor do produto ou serviço;

2.    não recoloca o produto ou serviço diretamente no mercado;

3.    não se torna responsável solidário juntamente com o fornecedor do produto ou serviço;

4.    em eventual demanda, não poderá entrar com ação de regresso contra o fornecedor do produto “X”.

 

 

Retirado de: www.saraivajur.com.br