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A
permanência dos apontamentos no Cadastro de Cheques Sem Fundos (CCF) do Banco
Central. Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor e do Novo
Código Civil
Ricardo
Ramos Baldi
Advogado
em Porto Alegre (RS)
O CCF Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundos é um
sistema de informações instituído pelo Conselho Monetário Nacional e operado
pelas instituições bancárias, que serve ao registro dos emitentes de cheques
devolvidos pelos bancos, por insuficiência de fundos. Essas informações são
utilizadas pelos setores bancário e comercial, principalmente para o
deferimento de crédito, constituindo também - a propósito - um importante
instrumento para a moralização do instituto do cheque, hoje tão desacreditado
em nossa sociedade. A Resolução 1682/90, editada pelo Banco Central do Brasil,
estabeleceu o prazo de cinco anos para a permanência dos cheques no referido
cadastro.
Pois bem, recentemente, a
partir da entrada em vigor do novo Código Civil Brasileiro, algumas vozes tem
sustentado que esses apontamentos devem perdurar não mais por cinco, senão que
por apenas três anos, contados da apresentação do cheque. Com esse
entendimento, as pessoas têm batido às portas das instituições bancárias e do
próprio Banco Central, pretendendo fazer valer esse direito.
O argumento em favor da tese, em
síntese, é o seguinte. O CCF constitui um cadastro restritivo de crédito, na
acepção do Código de Defesa do Consumidor. Deve, então, conformar-se ao que
preconiza o art. 43, § 5 da Lei 8.078/90, ou seja: "Consumada a prescrição
relativa à cobrança de débitos do consumidor, não serão fornecidas, pelos
respectivos Sistemas de Proteção ao Crédito, quaisquer informações que possam
impedir ou dificultar novo acesso ao crédito junto aos fornecedores". O
novo estatuto civil, de sua parte, diz que prescreve em três anos a pretensão
para haver o pagamento de título de crédito, a contar da data do seu
vencimento. O cheque, documento a que se vincula o registro no CCF, é, a toda
evidência, um título de crédito. Ora, a partir dessas quatro constatações,
deduzem que os apontamentos no CCF não mais poderão perdurar além do prazo de
três anos, contados da emissão dos correspondentes cheques, devendo, nesse
termo final, ser necessariamente excluídos.
A tese, entretanto, não pode
prosperar.
O entendimento de que o Código do
Consumidor se aplica ao Cadastro de Cheques sem Fundos parte de uma premissa
falsa: a de que os cheques, em geral, apontados no CCF derivam de uma relação
de consumo. Isso é apenas uma presunção, que até pode ser estatisticamente
razoável, mas não é uma verdade necessária. Se, por exemplo, o cheque tem causa
no pagamento que o patrão faz ao empregado, na aquisição do veículo de fulano
por beltrano e em tantas outras situações da vida, ninguém reconhecerá aí uma
hipótese fática que reclame a aplicação do direito consumerista. O cheque,
afinal de contas, é um título de crédito abstrato, que não revela a relação
material subjacente. Assim as pretensões à baixa do CCF, em nome das
disposições do Código do Consumidor, devem, no mínimo, ser decididas caso a
caso, e esse julgamento evidentemente não compete aos bancos ou ao Banco
Central. Eis porque a pretensão não pode ser dirigida diretamente a essas
instituições. Alguém poderia, numa leitura apressada do CDC, sustentar que
bastaria a simples alegação do interessado, suposto consumidor, perante aquelas
instituições, para que a elas coubesse fundamentar a recusa, invertido o onus
probandi. O argumento não tem a mínima sustentação legal. A Lei 8078/90 (art.
6, VIII) concede, de fato, ao consumidor "a facilitação da defesa de seus
direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor,.. .".
Mas para a aplicação desse dispositivo é necessário que esteja já assente, pelo
menos, de que se trata de um consumidor. A relação de consumo é elemento da
hipótese de incidência da norma, constitui um prius que evidentemente escapa à
regra. Esse favor, de resto, tem lugar apenas no âmbito do processo judicial.
A segunda observação relevante,
que sem refutar a tese, evidencia a sua inoportunidade, é a de que o Código
Civil nada mudou com respeito à prescrição dos cheques. Observe-se a ressalva
constante na parte final da regra que dispôs sobre a prescrição trienária: diz
o artigo 206, § 3, inc. VII, que é de três anos a prescrição da "pretensão
para haver o pagamento de título de crédito, a contar do vencimento,
ressalvadas as disposições de lei especial". Ora, é de todos sabido que a
Lei 7357/85, a Lei do Cheque, já dispõe sobre prescrição Portanto, o próprio
Código remete à lei especial, onde continuarão a ser buscados os prazos
prescricionais de ações e/ou pretensões relacionadas com esses títulos de
crédito.
A Lei do Cheque estabelece três prazos que apresentam
interesse nesta discussão: a) o da apresentação do cheque (art. 33):
"trinta dias quando emitido no lugar onde houver de ser pago, ou 60 dias
quando emitido em outro lugar" contados da data de emissão; b) o da
prescrição da especialíssima execução cambiária (art. 59): "seis meses,
contados da expiração do prazo de apresentação" e, finalmente, c) o da
prescrição da ação de enriquecimento ilícito (art. 61): "dois anos,
contados do dia em que se consumar a prescrição prevista no artigo 59".
Computadas as parcelas, verificar-se-á que a prescrição maior, a dessa última
ação, ocorre no máximo em dois anos e oito meses. Os que sustentam, a partir da
entrada em vigor do novo Código Civil, a redução do prazo de permanência no CCF
para três anos, incorrem, pelo menos, em dois erros: a) não reconhecer que não
é o Código Civil que regula a prescrição em matéria de cheques, mas sim a lei
já referida e b) que essa lei, se for aplicável no que concerne à permanência
de cheques no CCF, desde há muito tempo já estaria determinando prazo menor do
que os tais três anos.
Mas há mais um obstáculo, esse
definitivo, à aceitação da tese. É que a permanência dos apontamentos no CCF,
mesmo admitindo-se a incidência do Código do Consumidor, não está sujeita aos
prazos prescricionais dos títulos de crédito, sejam os determinados no Código
Civil, sejam aqueles estabelecidos pela Lei do Cheque. E isso é fácil de
entender. Veja-se que o CDC, no já transcrito artigo 43, dispõe que a restrição
creditícia deve ser anulada, uma vez "consumada a prescrição relativa à
cobrança de débitos do consumidor". Ora, a pretensão à cobrança do débito
não se confunde com a pretensão ao recebimento do cheque correspondente. São
coisas faticamente conexas, mas juridicamente diferentes. O cheque é um meio de
pagamento, tem uma função apenas pro solvendo. A sua entrega ao credor
(fornecedor) não substitui a obrigação material subjacente (o pagamento do bem
ou serviço fornecido). Assim que a prescrição para haver o cheque não faz
prescrever a pretensão relacionada com a obrigação de fundo. Se o cheque não é
honrado, o credor poderá exercer a competente ação de cobrança, enquanto essa
não estiver prescrita. O cheque, nessa hipótese, constituirá mera prova da
obrigação existente.
Assim, tratando-se de pretensões
diversas, poderá mesmo ser que ao devedor assista o direito de liberar-se da
restrição creditícia até antes do alardeado prazo de três anos. Isso ocorrerá –
mas sempre em processo judicial, provada a relação de consumo - quando a
pretensão ao crédito caducar antes da pretensão ao pagamento do cheque, como no
caso, por exemplo, da "pretensão dos hospedeiros ou fornecedores de
víveres destinados a consumo no próprio estabelecimento, para o pagamento da
hospedagem ou dos alimentos" (NCC, art. 206, inc. I), que prescreve em
apenas um ano.