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A alienação fiduciária em garantia interpretada à luz das disposições do Código de Defesa do Consumidor
Belinda Pereira da Cunha
Mestre e doutoranda em Direitos Difusos e
Coletivos pela PUCSP, Professora de Direito do Consumidor da PUC/SP, dos cursos
de pós-graduação lato sensu da PUC-COGEAE, da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP
e da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo.
Professor de Direito dos cursos de
especialização da COGEAE/PUCSP, Mestrando pela Universidade de São Paulo e
Magistrado em São Paulo.
Sumário: I – Introdução. II – Os
princípios constitucionais no CDC e seu sistema de proteção contratual. III – A
aplicação do Código de Defesa do Consumidor como norma cogente. IV – A cobrança
de dívidas no CDC. V – As cláusulas abusivas e os contratos de adesão. VI – A
alienação fiduciária em garantia no âmbito do Decreto-Lei n. 911/69. VII – O
Código de Defesa do Consumidor e a alienação fiduciária em garantia.
I – Introdução
Inicialmente, é
mister ressaltar que o contrato de alienação fiduciária em garantia, no âmbito
do Direito brasileiro, encontra-se regulamentado, sobretudo, pelo Decreto-Lei
n. 911, de 1o de outubro de 1969, sendo, portanto, este diploma
legal de existência anterior ao atual ordenamento constitucional brasileiro,
desencadeado a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. Nesse
aspecto, surgem, a nosso ver, algumas indagações de extrema importância prática
e teórica, concernentes ao fato de saber se o aludido dispositivo regedor da
alienação fiduciária em garantia foi, em rigor e efetivamente, recepcionado
pela Constituição Federal em vigor. Tais indagações ganham sentido se levarmos
em consideração que a Carta Magna atual estabeleceu a proteção ao consumidor de
maneira absoluta, constituindo-se tal proteção em princípio orientador da
própria ordem econômica do País.
Em princípio,
formulando-se uma leitura apressada e objetiva do aludido decreto-lei, não se
vislumbra nenhuma anormalidade ou inconstitucionalidade quanto ao mesmo, visto
que as normas lá inseridas mostram-se em consonância com os ditames jurídicos
aplicados em regra por nossos operadores do Direito.
Porém, tal
matéria acaba não se evidenciando de modo tão simplista, tal como se apresenta,
em face fundamentalmente da normatização efetivada pelo Código de Defesa do
Consumidor, consubstanciado pela Lei n. 8.078/90, que concretiza, em nível
infra-constitucional, toda a proteção jurídica do consumidor implantada pela
Constituição Federal.
O Código de
Defesa do Consumidor consagra princípios que têm por escopo primordial a
salvaguarda dos direitos do consumidor, partindo-se da premissa de que o
consumidor, em regra quase que absoluta, põe-se como a parte mais frágil, em
termos jurídicos, da relação de consumo mantida com o fornecedor.
Em sendo assim,
a nossa grande preocupação, neste breve estudo, consiste em saber se, de fato,
em termos interpretativos atuais, o Decreto-Lei n. 911/69, com suas disposições
espelhadas em certo momento político de exceção no Brasil, marcado pela edição do
denominado Ato Institucional n. 5, que suprimia vários direitos constitucionais
inerentes ao exercício regular da cidadania, ainda pode ser aplicado em uma
realidade constitucional que foi implementada para, justamente, romper o modelo
jurídico correspondente ao período citado e relacionado com a edição de tal
decreto-lei.
Será, destarte,
esse o nosso objetivo neste artigo, consistente em tentar constatar a eficácia
do Decreto-Lei n. 911/69, em cotejo com a atual ordenação consumerista,
expressa por dispositivos constitucionais e pelo Código de Defesa do
Consumidor, para, na parte final do mesmo, respondermos à seguinte indagação:
De fato, dentro do rigor lógico normativo-constitucional atual, o mencionado
decreto-lei teria eficácia e validade jurídica?
II – Os
princípios constitucionais no CDC e seu sistema de proteção contratual
A Constituição
Federal de 88 ressaltou os direitos fundamentais, individuais e coletivos,
elevando-os à categoria de garantias constitucionais, procurando, com isso,
assegurá-los de tal forma que não possam ser total ou parcialmente modificados,
senão por outro processo constituinte.
A partir do
princípio isonômico, a Constituição garantiu direitos fundamentais, trazidos
como verdadeiros pilares em que devem basear-se o direito à própria vida, ao
próprio corpo e imagem, liberdade, dignidade, saúde, segurança, educação,
informação, entre outros destes decorrentes.
Refletindo
esses princípios constitucionais, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor,
também instituído a partir da Magna Carta, art. 5o, XXXII, e art.
170, II, foi erigido sobre leis principiológicas, assim estabelecendo a
Política Nacional das Relações de Consumo tratar-se de normas dessa natureza,
que trazem expressos princípios nos quais se fundam.
Assim é que, o
art. 4o da Lei n. 8.078/90 estabelece a Política de que tratamos,
trazendo como princípio primeiro o reconhecimento da vulnerabilidade do
consumidor no mercado de consumo, correspondente ao princípio constitucional da
igualdade, reconhecendo o desequilíbrio dos contratos de consumo que visa
tutelar, para estabelecer desigual tratamento aos desiguais, na medida de sua
desigualdade, a fim de ser atingida a igualdade real a que se propõe.
A esse
princípio basilar seguem-se aqueles dos próprios arts. 4o e 6o,
estes últimos também tratados como direitos báscicos do consumidor, que são: a
boa-fé-objetiva nas relações jurídicas de consumo, o que significa que,
diferentemente da regra de boa-fé dos contratos civis a ser inserida como
cláusula entre as partes, nas relações jurídicas de consumo tuteladas pelo
Código do Consumidor a regra é a da boa-fé havida de ambas as partes, ou seja,
o fornecedor, ao colocar no mercado produto ou serviço e, de outro lado, o
consumidor, ao usá-lo ou adquiri-lo, como destinatário final.
Outro princípio
é o da responsabilidade civil objetiva, segundo o qual o forncedor responde
civilmente pelos danos causados ao consumidor em razão do objeto da relação
jurídica, vale dizer, estabelecido o nexo causal, será o fornecedor responsável
pela prevenção e reparação dos danos que possa sofrer o consumidor em razão de
usar ou adquirir os produtos colocados no mercado, é o que se depreeende da
inteligência do art. 6o, VI, do diploma legal – “efetiva prevenção e
reparação de danos patrimoniais e morais, individuais e coletivos, causados ao
consumidor”.
Temos, ainda, o
princípio da proibição das cláusulas contratuais abusivas, que são aquelas que
trazem ao consumidor onerosidade excessiva em benefício exclusivo do
fornecedor; desse princípio decorre o da conservação dos contratos de consumo,
segundo o qual, mesmo diante de uma abusividade a ser necessariamente afastada,
poderá ser mantido o contrato, desde que não se atinja a essência do objeto
contratual com a abusividade referida.
Como se vê, já
quanto aos princípios que atingem os contratos de consumo, propriamente ditos,
o Código de Defesa do Consumidor instituiu verdadeira revisão no seu sistema de
proteção, levando-se em conta o Código Civil de 1916, que trazia a prevalência
da autonomia da vontade das partes contratantes, vale dizer, acreditava-se que
as cláusulas contratuais fossem elaboradas de maneira a refletir o que
realmente desejavam os envolvidos na relação jurídica e, por essa razão,
fundavam o princípio do pacta sund servanda, assim prevalecendo como lei
entre as partes que contrataram.
Convém, ainda,
ressaltar entre os princípios que notadamente interessam ao presente trabalho o
da transparência, informação correta e precisa, o da pré-oferta vinculante,
além da proibição da publicidade enganosa ou abusiva. Quanto a esses cumpre
destacar que transparência não significa estampar restrições ou denúncias, ou
ainda qualquer outro conteúdo que não possa ser tolerado pelo novo sistema, em
cláusulas contratuais que deixam de “fazer lei entre as partes”,
independentemente do que pudessem trazer em seu conteúdo.
Além de outros
princípios que aqui não detalharemos, como o da facilitação do acesso à
justiça, com a inversão do ônus da prova se, a critério do juiz, for o
consumidor considerado hipossuficiente, o da prestação dos serviços públicos
adequada e eficaz, o da educação para o consumo1, temos no sistema
da proteção contratual do Código de Defesa do Consumidor um rol
exemplificativo, estampado no art. 51, das cláusulas contratuais abusivas,
sempre complementado pelo dispositivo do próprio § 3o, que
estabelece que são abusivas todas aquelas que puderem ensejar a onerosidade
excessiva já referida.
Com isso,
poderemos verificar a medida da compatibilidade entre o Código de Defesa do
Consumidor – a ser obrigatoriamente aplicado para as relações de consumo que
define – e o Decreto-lei n. 911/69.
Nosso objetivo
é a percepção e conseqüente compreensão se ambos – o CDC e o decreto – poderiam
ser concomitantemente aplicados aos contratos de venda financiada, considerados
os princípios constitucionais que regem o CDC, com o decorrente sistema próprio
de proteção contratual e os “instrumentos” utilizados de forma particular pelo
decreto, que teria a mens legis de promover a venda financiada de bens
móveis.
III – A
aplicação do Código de Defesa do Consumidor como norma cogente
Tendo seu
sistema de proteção previsto constitucionalmente, a partir dos direitos
fundamentais do art. 5o, além do Princípio da Ordem Econômica do
art. 170, a Lei 8.078/90 tem previsto em seu primeiro artigo tratar-se de norma
de ordem pública e interesse social, vale dizer, norma cogente, portanto de
aplicação obrigatória.
Nesse sentido,
toda vez que estivermos diante das relações jurídicas de consumo tuteladas pelo
Código de Defesa do Consumidor não poderemos deixar de aplicá-lo.
As relações
jurídicas de consumo abarcadas pelo Código do Consumidor são aquelas em que
estejam presentes consumidor,de um lado, e fornecedor,de outro.
O conceito de
consumidor está insculpido por definição no art. 2o – “pessoa física
ou jurídica, que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”
– e seu parágrafo único – “coletividade de pessoas determináveis ou não que
haja intervindo nas relações de consumo” – e, por equiparação, nos arts.
17 – “vítimas do acidente de consumo” – e 29 da Lei – “todos os expostos
às práticas comerciais e contratuais”.
De outro lado,
fornecedor é todo aquele que, em razão de sua atividade econômica, coloque no mercado
produto ou serviço, o que inclui os de natureza bancária, securitária,
excluindo somente os de caráter trabalhista, nos termos do art. 3o
do Código do Consumidor.
Encontrando-se
presentes consumidor e fornecedor no Código, deverá ser aplicado esse microssistema,
com exclusão de qualquer outro diploma, devendo, ainda, ser afastado qualquer
procedimento do Processo Civil tradicional, que tenha correspondente ou próxima
aplicação na parte da “defesa do consumidor em juízo” do Código de Proteção e
Defesa do Consumidor.
Assim é que,
para que se atinja a efetividade real prevista não somente no Código do
Consumidor, mas também na própria Constituição Federal, as relações jurídicas
de consumo que têm previsão no Código do Consumidor merecem a necessária e obrigatória
aplicação do respectivo microssistema, devendo ser afastado qualquer outro
diploma legal que passou a ser excluído da proteção dos Direitos abarcados pelo
Código.
IV – A cobrança
de dívidas no Código do Consumidor
Em
compatibilidade com o microssistema principiológico em estudo, o Código de
Proteção e Defesa do Consumidor previu dentre as “Práticas Comerciais”,
disciplinadas no Capítulo V do Título I, a seção “Da Cobrança de Dívidas”
(seção V).
Dispôs, assim,
o Código, dentre as práticas rechaçadas como métodos dessas cobranças, como a
que permitisse a perturbação no momento de lazer, exposição a situações
vexatórias durante o trabalho, junto aos supervisores hierárquicos, propondo a
intimidação do consumidor dito inadimplente, além da utilização de recursos
audiovisuais como bandas, fanfarras, auto-falantes, performances
circences etc.
Pretende, com
isso, a disciplina do Código do Consumidor, impedir que sejam utilizados
métodos de cobrança de dívida que, ainda eficazes aos credores – aqui fornecedores
–, exponham o consumidor em sua dignidade, incolumidade psíquica e, portanto,
resvalando em seus direitos fundamentais assegurados constitucionalmente e
reiterados pela Lei n. 8.078/90.
Quanto a isso,
dispôs de maneira muito diversa o Decreto-Lei n. 911/69, que procurou proteger
de maneira evidente o primeiro vendedor, depois alienado, atribuindo-lhe, além
das garantias de readquirir o bem que primeiro alienou, nota promissória que
lhe passasse o alienante, as possibilidades de buscar e apreender o bem diante
do inadimplemento, além da prisão civil do correspondente devedor-depositário
do bem alienado.
Ora, os
instrumentos que o Decreto-Lei n. 911/69 assegura ao credor-alienado, em
verdade fornecedor, seja do contrato de crédito, seja do próprio bem financiado
e, em muitos casos, de ambos, são sui generis, por permitirem a
propositura de uma ação atípica de busca e apreensão que se converte em ação de
depósito em poucos dias, ao não ser realizado o crédito ou entregue o bem.
Note-se que,
mesmo com a entrega do bem, objeto do contrato, o crédito não se extingue,
prosseguindo o contrato com todas as incidências moratórias a que teria aderido
o consumidor-alienante.
Teríamos de
abandonar os princípios dos contratos de consumo do Código do Consumidor, para
podermos minimamente suportar a aplicação do Decreto-Lei n. 911/69, já
decadente do ponto de vista de todo ordenamento jurídico positivo brasileiro.
V – As
cláusulas abusivas e os contratos de adesão
Como referimos
anteriormente, o sistema de proteção contratual do Código do Consumidor não se
coaduna com os princípios gerais dos contratos do Código Civil.
O sistema de
nulidade das cláusulas contratuais abusivas é forte indicador dos princípios
norteadores desse microssistema, uma vez que, enquanto no Código Civil a
possibilidade de cláusula “leonina” chega a ser tolerada, podendo ensejar de
outra feita a rescisão do contrato, no Código do Consumidor a onerosidade
excessiva ao consumidor enseja a nulidade, que não é aceita, podendo, por outro
lado, ser conservado o contrato, após o afastamento ou a declaração de nulidade
dessa cláusula.
Os chamados
contratos de adesão são aqueles em que já se espera o conjunto de cláusulas
gerais, que não permitem discussão entre fornecedor e consumidor e, por isso,
apresentam conteúdo intrínseco de onerosidade ou, ao menos, benefícios trazidos
unicamente ao fornecedor.
Esses contratos
de adesão, mesmo suportados pelo Código do Consumidor, porque concebidos como
contratos de massa, vale dizer, para uma parcela significativa da população,
por vezes com alcance mundial, não toleram a inclusão das cláusulas abusivas
elencadas no rol exemplificativo do art. 51, não podendo estabelecer restrição
ou renúncia a direitos, outorga de poderes em prejuízo do consumidor, além das
onerosidades excessivas já estabelecidas como nulas, por isso proibidas no
sistema de proteção contratual da Lei n. 8.078/90.
Isso significa
dizer que, sendo toleráveis os contratos de abertura de crédito, de compra e
venda de bens móveis ou imóveis, dos chamados planos ou seguros saúde, de
matrícula e freqüência nas escolas, de cartões de crédito, dentre outros,
quanto a suas cláusulas padronizadas, chamadas cláusulas gerais, não é aceita
pelo Código do Consumidor a inclusão de excessiva onerosidade ao consumidor
para benefício exclusivo do fornecedor, devendo ser afastadas e declaradas
judicialmente nulas.
Quanto a isso,
não se poderia pensar em mitigar a força de um sistema principiológico, a
Constituição Federal e o Código do Consumidor, diante de decretos ou mesmo leis
que pudessem pretender tratar com especialidade determinado assunto, para os
fins de atribuir práticas, instrumentos ou restrições a direitos, não mais
aceitos ao menos em certas relações jurídicas, como aquelas abarcadas pelo
Código do Consumidor.
Diferentemente,
talvez, pudéssemos tratar as relações jurídicas de consumo alcançadas pelo
Código Civil, se pudéssemos pensar que possam, ainda, manter-se
compatibilizadas com o Decreto-Lei n. 911/69, por exemplo.
Já não é, data
venia, certamente o caso do mesmo Decreto-Lei e as “regras” que foram
estabelecidas para o que se chamou alienação fiduciária, e o Código de Proteção
e Defesa do Consumidor: as vendas a prazo podem ser feitas, as cláusulas de
retrovenda estabelecidas e as garantias prestadas sem abusos, onerosidades ou
renúncias a direitos já não toleradas.
Partindo-se do
reconhecimento de que os contratos, verbais ou não, são, de há muito,
instrumentos pré-elaborados, que atendem às necessidades – geralmente –
mercadológicas, econômico-financeiras, entre outras, da parte mais forte da
relação jurídica, o “contratante” meramente adere, aceita as condições que lhe
são impostas, sob pena da não-realização do “negócio jurídico” em amplo
sentido.
Na dinâmica do
mundo atual não há espaço para as contratações, os acertos de gres a
gres que, de maneira geral, não estejam submetidos às grandes regras de
cláusulas maiores, às quais o consumidor participa, como mero aderente.
III – A
alienação fiduciária em garantia no âmbito do Decreto-Lei n. 911/69
O Decreto- Lei
n. 911/69, em seu art. 1o, modificando o art. 66 da Lei n. 4.728/65,
estabelece a seguinte configuração jurídica para a alienação fiduciária em
garantia:
“A alienação
fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse
indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem,
tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas
as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal”.
Segundo Maria
Helena Diniz2, a alienação fiduciária em garantia é um negócio
jurídico subordinado a uma condição resolutiva, já que a propriedade fiduciária
cessa em favor do alienante, com o implemento dessa condição, ou seja,
com a solução do débito garantido, de modo que o alienante que transferiu a
propriedade fiduciariamente a readquire com o pagamento da dívida.
A alienação
fiduciária em garantia consiste, desse modo, em um contrato acessório que
garante a regular execução de um outro contrato celebrado pelo devedor
(alienante) em relação ao credor, que é a parte que recebe o bem alienado, a
título da chamada propriedade resolúvel, a qual cessa no momento em que o
devedor quitar seu débito junto ao respectivo credor. Por conseguinte, no que
tange à dinâmica jurídica da alienação fiduciária em garantia, percebe-se que o
devedor, o alienante, transfere ao credor um bem já de sua propriedade ou que
esteja sendo objeto de aquisição, assim como ocorre nos contratos de aquisição
de veículos nas concessionárias em geral, para garantir o pagamento de seu
débito; quando se verificar a quitação do débito, implementada pelo devedor,
este retoma o bem e o exercício regular de seu domínio. Este, portanto, o cerne
do domínio resolúvel que surge com a celebração da alienação fiduciária em
garantia.
O Decreto-Lei
n. 911/69 traz ainda outras disposições relativas ao desenvolvimento e
regramento do contrato de alienação fiduciária. Dentre tais disposições, existe
a previsão para a hipótese de inadimplemento contratual da obrigação garantida
por parte do devedor. Nesta hipótese, prevê o art. 1o, § 4o,
da norma em análise que o proprietário fiduciário (o credor) pode vender a
coisa a terceiros e aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das
despesas decorrentes da cobrança, entregando ao devedor o saldo porventura
apurado, se houver. O proprietário fiduciário não tem o permissivo legal para
permanecer com a coisa alienada em garantia, se o débito não for pago no
vencimento, sendo nula a cláusula contratual em sentido contrário.
Ainda no caso
de inadimplemento ou mora do devedor, no tocante às obrigações contratuais
garantidas pela alienação fiduciária em garantia, segundo o art. 2o
do Decreto-Lei em questão, o credor poderá vender a coisa a terceiros,
independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra
medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição contratual em contrário.
Havendo
necessidade de o credor postular em juízo a busca e apreensão do bem alienado,
o devedor será citado para em três dias apresentar contestação ou, se já tiver
pago 40% do preço financiado, para purgar a mora. Contestado ou não o pedido e
não purgada a mora, o juiz prolatará a sentença em cinco dias, após o decurso
do respectivo prazo para a defesa, independentemente de avaliação do bem.
Estas são, em
síntese, as principais características jurídicas do contrato de alienação
fiduciária em garantia, bem como as suas principais peculiaridades
procedimentais no âmbito das disposições do Decreto-Lei n. 911/69.
IV – O Código
de Defesa do Consumidor e a alienação fiduciária em garantia
O Código de
Defesa do Consumidor, consubstanciado pela Lei n. 8.078/90, espelhado nas
diretrizes constitucionais que priorizaram a defesa integral do consumidor,
trouxe profundas inovações, sobretudo nas disciplinas contratuais pertinentes
ao consumo.
Nesse aspecto,
na relação de consumo clássica e geral, temos duas figuras centrais, quais
sejam, o consumidor e o fornecedor. O consumidor é toda pessoa física ou
jurídica, ou ainda qualquer coletividade de pessoas, que adquire ou utiliza
produto ou serviço como destinatário final. Já o fornecedor seria também
qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou
estrangeira, que, de qualquer forma, contribui para o fornecimento de bens ou
serviços para os consumidores; percebe-se que a relação de consumo está
inserida na base das atividades capitalistas de produção, centrada na
preponderância das atividades voltadas para a satisfação das necessidades
básicas das pessoas, consideradas como cidadãs-consumidoras.
Em atenção a
certo pressuposto histórico, o conceito jurídico de consumidor, estabelecido
pelo Código de Defesa do Consumidor, expressa a noção de hipossuficiência
associada à noção de que, em regra, o consumidor ocupa uma posição de alcance
jurídico menos privilegiada na relação jurídica de consumo, considerando-se que
o fornecedor é aquele que detém a titularidade sobre as técnicas de produção
dos bens em geral, tendo, por conseguinte, amplo acesso às formas de produção;
por sua vez, o consumidor não possui tais conhecimentos técnicos sobre a
atividade produtiva, o que irá dificultar bastante sua defesa perante o
fornecedor. Essas noções são muito importantes, aliás fundamentais, para o entendimento
acerca dos conceitos jurídicos estabelecidos pelo Código de Defesa do
Consumidor.
Desse modo, em
todo contrato, no qual houver, de um lado, o fornecedor e, do outro, o
consumidor, adquirindo do primeiro, como destinatário final, bens ou serviços,
haverá por conseqüência uma relação de consumo, que receberá toda a proteção
jurídica inserta no diploma consumerista.
No âmbito do
Código do Consumidor, temos um conjunto de regras que protege, notadamente, o
consumidor, enfocado como a parte mais vulnerável nessa relação jurídica. Por
essa razão, a responsabilidade do fornecedor pelos danos causados ao
consumidor, em regra, é objetiva, prescindindo da prova da culpa do primeiro,
havendo um elenco de cláusulas contratuais consideradas abusivas e declaradas,
por essa razão, como nulas de pleno direito. Além disso, toda a principiologia
disposta em tal codex se encaminha para o enfoque de uma ampla proteção
jurídica do consumidor.
Postas essas
premissas, é imperioso que se insira a seguinte questão, objeto de nossa
principal preocupação neste momento: Seria a alienação fiduciária em garantia
um contrato de consumo? Se tal indagação gerar uma resposta positiva, estaria
aberto o caminho para a defesa da integral aplicação do Código de Defesa do
Consumidor à alienação fiduciária em garantia, o que contribuiria para afastar
totalmente a aplicação respectiva do Decreto-Lei n. 911/69 da órbita de tal
relação contratual.
Passemos, a
seguir, concretamente a procurar a resposta plausível a tal indagação, a fim de
nos encaminharmos para a conclusão deste estudo.
Conforme
exposto acima, pode-se perceber que a alienação fiduciária em garantia consiste
em contrato acessório, que serve de suporte para ocorrer a efetivação de um
contrato de venda e compra, que tem por objetivo a transferência concreta de um
bem de consumo do credor para o devedor. Este concorda em manter o bem
adquirido ou outro bem de sua propriedade alienado ao credor, enquanto perdurar
o cumprimento da sua obrigação.
Assim sendo, a
nosso ver, a alienação fiduciária em garantia constitui-se em autêntico
contrato de consumo, já que o devedor celebra, junto ao credor respectivo, um
contrato, visando à aquisição de um bem determinado, como destinatário final,
sendo a alienação formulada um instrumento para assegurar a eficácia desse
contrato originariamente firmado. Desse modo, a alienação fiduciária é um
contrato que propicia ao consumidor (devedor) a aquisição, na qualidade de
destinatário final, de determinado bem em relação ao credor. Este o cerne da
conclusão pela qual a alienação fiduciária em garantia é um meio contratual,
inserido diretamente em uma relação de consumo.
Tal assertiva
demonstra que o Código de Defesa do Consumidor é aplicável ao negócio jurídico
subjacente à alienação fiduciária, pois essa é uma forma destinada à consecução
de um contrato principal de compra e venda em relação ao qual o devedor
adquire, como comprador, um bem cedido pelo credor, ocupando este a posição de
fornecedor desse bem que está sendo adquirido.
Como resultado
do fato de a alienação fiduciária em garantia ser um contrato configurado como
de consumo, temos que o Código de Defesa do Consumidor é a regra jurídica
aplicável a tal relação jurídica, situação essa que afasta totalmente, em
sentido jurídico, a disciplina inserta no Decreto-Lei n. 911/69. Por força
dessa configuração, o Código de Defesa do Consumidor irá regulamentar na
prática toda a dinâmica da alienação fiduciária em garantia, aplicando-se suas
normas às conseqüências jurídicas do negócio jurídico da alienação fiduciária.
Diante de tal
panorama, percebe-se que a mora do devedor, para poder ensejar a busca e
apreensão do bem alienado, tem de ser formulada de maneira objetiva, devendo de
ser descrita no contrato celebrado. Também, em consonância com as regras dispostas
no Código do Consumidor, não se pode admitir, consoante previsão expressa do
Decreto-Lei n. 911/69, que o credor possa alienar de qualquer forma, sem
avaliação, o bem dado em garantia, exigindo-se, pois, que tal bem seja alienado
judicialmente no âmbito de um processo de execução, com a total garantia de que
tal bem não tenha seu valor depreciado e, por conseqüência, não ocorra
qualquer prejuízo ao devedor. Sendo assim, aplicando-se integralmente as normas
e princípios insculpidos no Código do Consumidor, percebe-se claramente que o
Decreto-Lei n. 911/69 não encontra mais espaço para subsistir em nosso
ordenamento jurídico, seja com relação às suas disposições concernentes à
venda do bem garantido, pelo credor, independentemente de qualquer medida judicial,
seja com relação a se exigir que o devedor purgue a mora, se já tiver pago pelo
menos 40% do preço contratado. Nesse aspecto, na forma jurídica adotada pelo
Código do Consumidor, em que predomina o amplo acesso do consumidor, no que
tange à proteção dos seus direitos, nos termos dos arts. 6o e 51 do
diploma consumerista, o consumidor poderá purgar sua mora em qualquer hipótese,
não importando o valor que já tenha sido pago pelo devedor.
Por essas
razões, esses exemplos demonstram, de forma bastante abrangente, que o Decreto-
Lei n. 911/69 não pode, em tese, ser aplicado às regras atinentes à alienação
fiduciária em garantia, visto que a alienação fiduciária é relação de consumo
de modo estrito, vinculando-se de plano às normas legais e principiológicas
estabelecidas pelo Código de Defesa do Consumidor.
Em face de tais
conclusões, constata-se que a alienação fiduciária é uma relação jurídica de
consumo, o que propicia integral aplicação a ela das normas consumeristas,
restando totalmente afastada a aplicação, a essa hipótese, do Decreto-Lei n.
911/69.
Na realidade,
essa conclusão tem respaldo, de modo fundamental, nas normas constantes do art.
5o, XXXII, e do art. 170, V, da nossa Constituição Federal. Tais
normas, em síntese, ressaltam que o Estado propugnará pela defesa integral do
consumidor, sendo de fato essa proteção um princípio norteador da ordem
econômica brasileira.
Conforme
salientado no início desta exposição, a ordem jurídica constitucional
brasileira sofreu grande reformulação com a manifestação do Poder Constituinte
Originário em 1987/1988, que resultou na promulgação de nossa atual
Constituição; e essa nova ordem constitucional encampou como dogma fundamental
a proteção incondicional e concreta dos interesses dos consumidores brasileiros.
Daí, é inconcebível que, no tocante à alienação fiduciária em garantia, ainda
haja a aplicação de um diploma legal (o Decreto-Lei n. 911/69) que se mostra
totalmente em discordância com os preceitos constitucionais atuais.
Confirmando
essa nossa orientação dogmática, cite-se o seguinte tópico extraído da obra de
Uadi Lammêgo Bulos3, ao tecer comentários ao art. 5o,
XXXII, da Constituição Federal:
“Com o advento do Código de Defesa do Consumidor (Lei n.
8.078, de 11-9-1990), implementou-se este inciso constitucional, que
incumbiu ao Estado a importante missão de extirpar os danos que eventualmente
atingissem consumidores. Realmente, a vida moderna das sociedades de massa e de
consumo, nas quais o ter substitui, quase sempre, o ser, a preocupação
preponderante é o lucro, a riqueza, o aumento do patrimônio. Nisso, afloram com
maior freqüência os problemas econômicos, que repercutem nas relações de
consumo.
Diante desse quadro o constitucionalismo hodierno procura
acompanhar as novas circunstâncias, incorporando ‘a realidade à norma suprema,
enquanto isto supõe um passo muito qualificado para corrigir deficiências e
situações indevidas. Como o problema dos consumidores não revestira a gravidade
que hoje apresenta até datas relativamente recentes, não havia entrado nas
constituições até a portuguesa de 1976’ (Luis M. Cazorla Prieto, Comentários
a la constitución, Fernando Garrido Falla (coord.), Madrid, Ed. Civitas,
1985, p. 853)”.
Ex
positis,
em sintonia com a nova tônica constitucional brasileira e também estrangeira,
certamente, concluímos nosso breve estudo, formulando as seguintes
considerações:
- Em
razão das normas e princípios constitucionais estabelecidos pela Constituição
Federal em vigor, adotou-se ampla proteção jurídica ao consumidor, havendo a
incidência de tais normas protetivas às relações de consumo em geral, mantidas
entre o consumidor e o fornecedor.
-
Na dinâmica jurídica da alienação fiduciária em garantia, entendemos que ela é
inserida em uma relação jurídica de consumo, vez que o devedor (alienante)
transfere momentaneamente, até adimplir integralmente suas obrigações assumidas
em face do credor, a propriedade de um bem a este último, tendo a intenção de
adquirir esse bem alienado ou outro, eventualmente, na condição de destinatário
final dele: esta a grande característica que embasa a dimensão consumerista
dessa relação jurídica.
- Sendo
a alienação fiduciária um contrato típico de consumo, aplicam-se-lhe as regras
insertas no Código do Consumidor, restando, por esse motivo, afastada a
aplicação das regras do Decreto-Lei n. 911/69, o qual não foi recepcionado pela
Constituição Federal em vigor, em razão de esta introduzir em nosso ordenamento
jurídico preceitos protetivos do consumidor totalmente incompatíveis com as
diretrizes de tal Decreto-Lei.
- Por
fim, consignamos a seguinte conclusão: A alienação fiduciária, por ser
estabelecida no âmbito de uma estrita relação de consumo, recebe toda a
aplicação constante do Código do Consumidor, por imperativo de ordem
constitucional.
Bibliografia
básica utilizada
BULOS, Uadi
Lammêgo. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2000.
COELHO, Fábio
Ulhoa. Código Comercial e legislação complementar anotados. São Paulo:
Saraiva, 2002.
DINIZ, Maria
Helena. Tratado teórico e prático dos contratos. São Paulo: Saraiva,
2002.
1 Nelson Nery
Junior, in Revista Direito do Consumidor, n.3, p. 51 e s.
Retirado
de: www.saraivajur.com.br