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O cheque pré-datado e o direito do consumidor

 

Rizzatto Nunes

 

Mestre, Doutor e Livre-Docente em Direito pela PUCSP, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unimes/Santos, Juiz de Direito do Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo e autor de diversos livros, dentre os quais Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, editado pela Saraiva.

 

1.      Do Cheque

O cheque está regulamentado no Brasil pela Lei Federal n. 7.357, de 2 de setembro de 1985, que normatiza uma série de disposições relativas ao cheque, tais como sua emissão, sua transmissão, a garantia (o aval), a apresentação, o pagamento e a quitação etc. Essa norma, inclusive, incorporou num texto escrito algumas práticas comerciais relativas ao cheque, como, v.g., a do cheque cruzado.

A questão que nos importa está estabelecida no art. 32 e seu parágrafo único dessa lei e que trataremos mais à frente.

2.      Do Cheque Pré-Datado

2.1. Origem

O cheque pré-datado é invenção típica do mercado brasileiro1. Sua origem enquanto práxis está relacionada a circunstâncias tipicamente econômicas engendradas pela crescente intervenção do governo federal no mercado. Com efeito, a partir do início da escalada inflacionária, há cerca de 25 anos (em 1973 a inflação estava em dois dígitos ao ano), o governo iniciou o período — sem fim até hoje — de regulação direta do mercado. Foram efetuadas dezenas de tentativas com, inclusive, algumas reformas econômicas e monetárias. Umas das fórmulas ortodoxas de controle do processo inflacionário sempre foi o da contenção do crédito (que, aliás, atualmente, em tempos de Real, ainda se vive). A crença no controle de crédito é a de que, com isso, se controla a demanda, especialmente a das grandes faixas populacionais de menor poder aquisitivo, mas também a da classe média, que precisa do crédito para aquisição de bens duráveis de valores mais elevados, como, por exemplo, automóveis de primeira linha. Com isso, sistematicamente, as oportunidades de compra a prazo foram refreadas.

Aos poucos o mercado — entenda-se aqui, para nosso estudo, o conjunto de comerciantes de produtos, os prestadores de serviços e os consumidores — foi buscando alternativas, que, de maneira contínua, possibilitassem a compra e venda no varejo, apesar da falta de oferta de crédito.

E foi assim que acabou surgindo o cheque pré-datado. Ele representou a saída mercadológica para o impasse criado pelas intervenções. Ele veio, ficou e até já atingiu sua maioridade, no aspecto da legitimidade, além da legalidade, como se verá. É que dadas suas peculiaridades, ele se tornou um excelente instrumento de fechamento dos negócios, especialmente no que tange à forma de pagamento.

2.2. Características

O “cheque pré”, como é conhecido, nada mais é, de fato, do que um financiamento direto do lojista (ou credor) ao consumidor. Mas com várias vantagens: não há qualquer burocracia, pois não se assinam contratos, títulos etc.; não há acréscimo de impostos, vez que não é matéria regulada pela legislação fiscal ou tributária (ele está caracterizado apenas quanto à forma de quitação do preço e não como meio de financiamento); sua operacionalidade é excelente, visto que só precisa ser levado ao banco.

Nenhum outro tipo de financiamento conhecido é tão prático e ágil (com exceção do cartão de crédito, que, também, por ter cobrança de juros excessivos, é praticamente um cartão de compra).

2.3. Credibilidade

Além disso, o cheque pré conseguiu resgatar em parte um pouco da credibilidade para o instrumento cheque no País.

Todos sabem das dificuldades para pagamento com cheque e como ele não era — nem é — bem visto ou, pelo menos, é visto com desconfiança pelos comerciantes. Pois bem. Acontece que, apesar disso, o cheque pré é amplamente aceito em milhares de transações efetuadas todos os dias no Brasil.

3.      Da Lei do Cheque

Das Disposições Legais pertinentes e sua Interpretação

3.1. A previsão legal

Conforme já dissemos, o cheque está regulamentado na Lei n. 7.357. O art. 32 e parágrafo único dessa Lei dispõem in verbis:

“Art. 32. O cheque é pagável à vista. Considera-se não escrita qualquer menção em contrário. 

Parágrafo único. O cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação”.

3.2. A interpretação

À primeira vista, lendo-se apenas o caput do artigo 32, pode-se pensar que um cheque pré será considerado um título que tenha uma condição não-escrita. Contudo, o parágrafo único do mesmo artigo não permite essa interpretação, como se verá. Mas, ainda que assim não fosse, e se se tivesse que interpretar a data previamente fixada no cheque como não-escrita, tal fato não desnaturaria de forma alguma o título, que ainda poderia ser cobrado.

Aliás, é o que expressamente diz a jurisprudência. Por exemplo, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em Recurso Especial, cujo relator foi o Ministro Gueiros Leite, já decidiu: “a cláusula que torne à ordem, e não à vista é considerada não-escrita, de modo que pode desnaturar o cheque, mas não o título em si” (Boletim AASP n. 1.661, p. 253).

Porém, é mais que isso. É que há uma outra forma de interpretar que nos parece ser a mais adequada e que patenteia melhor ainda a possibilidade de emissão do cheque pré-datado. É que o parágrafo único do art. 32 prevê expressamente que o cheque possa ser emitido com outra data que não à vista. Leia-se: “o cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação”.

Ora, se a própria lei prevê que o cheque pode ser apresentado antes da data de emissão, significa logicamente que ela sabe que o cheque foi emitido para data posterior. A questão é de lógica básica.

Portanto, a interpretação do art. 32 com seu parágrafo único nos diz que não só o cheque pré-datado pode ser emitido, como se for apresentado ao banco antes, ele vale, só que nesse caso a data da apresentação passa a ser considerada como se a data da emissão fosse.

Contudo, além desse aspecto de legalidade, existe ainda outro que protege o emitente do cheque pré, determinando que este somente possa ser apresentado na data combinada. É o elemento contratual que envolve a transação, que é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, conforme ver-se-á a seguir.

4.      A Transação é Regulada pelo Código de Defesa do Consumidor

4.1. Contrato verbal

Inobstante, o fato de a evidência da legitimidade desse tipo de título como meio de pagamento saltar aos olhos, há ainda outro elemento importante: o pagamento com cheque pré normalmente é, do ponto de vista jurídico, um contrato verbal em que o comprador, ao adquirir um produto ou serviço, paga o preço com um ou mais títulos (cheques), sendo certo que o vendedor se compromete a somente resgatar o título (isto é, apresentar o cheque pré no banco) nas datas acertadas entre ele e o comprador. Tudo verbal, mas tudo rigorosamente legal. (Por vezes, acompanhado de recibo ou pedido discriminando os cheques e/ou nota-fiscal, fazendo o mesmo).

As garantias são recíprocas: o comprador promete que terá fundos por ocasião do saque; o vendedor promete que só apresentará o cheque na data acertada.

Na verdade, se nessa transação houver alguma quebra, ela será de dois tipos: ou o comprador não terá fundos na data aprazada; ou o vendedor quebrará a promessa e apresentará o cheque antes. Em ambos os casos a quebra é contratual e, assim, está dentro do sistema jurídico, e não fora.

4.2. A oferta

Além disso tudo, a partir de 11 de março de 1991, com a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), a transação efetuada entre o vendedor e o comprador, firmando a forma de pagamento através do cheque pré-datado, passou a ter regulação expressa em lei, mediante a figura da oferta.

Com efeito, estabelece o art. 30 da legislação protecionista das relações de consumo, in verbis:

“Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado”.

Ora, verbal ou escrito, o contrato foi celebrado, e pelo menos a operação de compra e venda foi efetuada. Como a oferta é parte integrante do contrato por força expressa de lei, isto é, pelo estabelecido no art. 30 do CDC, e como tanto o preço quanto a forma de pagamento são parte da oferta do vendedor, eles integram o negócio realizado. Daí conclui-se que, se o vendedor oferece ao comprador como forma de pagamento a entrega de cheque que ele (vendedor) só vai levar ao banco em determinado dia futuro, isso é verdadeira cláusula contratual, que não pode ser por ele (vendedor) quebrada, sem que seja responsabilizado pelo rompimento.

4.3. A quebra da promessa

Assim, um outro aspecto de bastante relevo deve ser tratado. É o da quebra da promessa e dos danos dela proveniente.

Se o cheque for apresentado pelo vendedor na data combinada e não tiver fundos, ele tem a seu dispor as alternativas legais para tentar receber seu crédito (civis e penais) e que são por demais conhecidas, não necessitando desenvolvimento aqui, posto que usuais e corriqueiras.

Contudo, é importante que abordemos a questão dos danos relativos a quebra da promessa por parte do vendedor ou, em outras palavras, pergunta-se: o que acontece se o vendedor descumpre o pactuado e apresenta o cheque pré, antes do dia combinado? Não sofre ele nenhuma sanção, além do natural repúdio do consumidor?

Claro que a resposta somente pode ser a da responsabilização do vendedor pelos eventuais danos que sua quebra de promessa venha a acarretar ao consumidor. A responsabilidade do vendedor é evidente. Vejamos.

Na apresentação do cheque pré, antes da data aprazada, duas coisas podem acontecer: a) o cheque ter fundos e ser pago; b) o cheque não ter fundos e ser devolvido pelo banco. Em ambos os casos o consumidor é prejudicado.

No caso da hipótese “a” ele sofre: a.1. Um prejuízo material direto e imediato, pois passa a não dispor de dinheiro que era seu, isto é, que lhe pertencia; a.2. Simultaneamente, ou logo após, o consumidor pode sofrer uma série de outros danos, tais como não ter mais o dinheiro para arcar com outros compromissos, o que lhe pode gerar outros tantos danos diretos; a.3. Outros cheques de sua emissão podem vir a ser devolvidos por falta de fundos, na medida em que podem eles estar já em circulação, e o estavam porque o consumidor sabia que tinha suficiente provisão de fundos na sua conta corrente; a.4. O consumidor pode, também, sofrer danos materiais e morais como decorrência dos fatos narrados em a.2. e a.3.

No caso da hipótese “b” ele sofre o dano de pronto, já que terá cheque devolvido com todas as conseqüências negativas que isso acarreta: perda de credibilidade; anotações no prontuário bancário; fechamento da conta, se o cheque for devolvido de novo. Danos materiais (relativos a despesas cobradas pelo banco) e morais, portanto.

Em todas essas hipóteses a responsabilidade do vendedor é objetiva e decorre do descumprimento da oferta.

5.         Conclusão

À vista do exposto, forçoso é concluir que não só não há impedimento legal para a emissão do cheque pré-datado, isto é, emissão do cheque para apresentação ao banco em data futura diferente da do dia real (momento histórico-fatual da emissão), bem como a operação da compra e venda de produtos ou serviços, que tem por forma de pagamento do preço a entrega de cheque pré-datado, é transação lícita, legal e expressamente regulada pelo CDC.

A quebra da promessa oriunda dessa transação dá-se por duas formas: ou o cheque pré na data da apresentação (correspondente ao dia em que o vendedor prometeu fazê-la) não tem fundos; ou o vendedor apresenta o cheque antes da data acordada, prejudicando o consumidor. Em ambos os casos as formas de ressarcimento são garantidas legalmente. Na primeira hipótese o vendedor pode cobrar a dívida pela via de execução ou, caso previsto, e ele queira, pode desfazer o negócio; e no outro caso o consumidor pode pleitear indenização por perdas e danos materiais e morais ou, se possível e/ou queira, propor o desfazimento do negócio com devolução das importâncias pagas em valores atualizados.


 

1. Na realidade deveria ser “pós-datado”.

 

retirado de: www.saraivajur.com.br