Buscalegis.ccj.ufsc.br

 

As ações coletivas e a defesa do consumidor, da ordem econômica e da economia popular

 

Rizzatto Nunes

 

Mestre, Doutor e Livre-Docente em Direito pela PUCSP, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unimes/Santos, Juiz de Direito do Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo e autor de diversos livros, dentre os quais Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, editado pela Saraiva.

 

1. INTRODUÇÃO - O SURGIMENTO TARDIO DO CDC 

O Código de Defesa do Consumidor surgiu tardiamente no Brasil, em 11 de setembro de 1990, em meio a uma sociedade capitalista que se vinha desenvolvendo a partir das evoluções industriais.

Passamos um século inteiro, praticamente, neste país, aplicando o Código Civil, que tem inspiração no Direito Civil europeu do século anterior, do século XIX e parte do século XVIII, em relações que envolviam consumidores e fornecedores, o que foi um equívoco. Isso fez com que nossa cultura jurídica incorporasse uma série de práticas abusivas, na medida em que o Código Civil não foi feito para regular relações jurídicas de consumo.

A título de comparação, anote-se que a primeira lei americana de defesa do consumidor, a Lei Shermann, a chamada Lei Antitruste, é de 1890. O Código de Defesa do Consumidor veio exatamente um século depois da primeira lei do mercado americano, que pretendia proteger os consumidores americanos. Aquela lei foi editada para impedir que as indústrias se unissem para dominar os preços no mercado daquele país. Numa sociedade mais desenvolvida como os Estados Unidos, que criou esse novo adjetivo do imperialismo que se chama globalização, e que se implementou no mundo inteiro, percebe-se, então, uma lei de um século antes da nossa legislação de consumo. Esse é um ponto negativo para a Lei n. 8.078/90.

Todavia, simultaneamente, esse dado negativo acabou fazendo com que a lei incorporasse aquilo que existia e existe de mais atualizado na proteção ao consumidor. Se de um lado a lei consumerista veio atrasada, de outro trouxe para o sistema jurídico constitucional brasileiro normas muito atualizadas de proteção ao consumidor, e delas vamos tratar. São as que definem o direito material do consumidor, a partir do art. 1º até o art. 54, e se refletem na estrutura processual trazida a partir do artigo 81.

Para entendermos o por quê da estrutura, é preciso captar esses fundamentos que a nossa Lei n. 8.078/90 trouxe da Constituição Federal e da história. Precisamos entender, ainda que resumidamente, qual é o modelo jurídico incorporado na sociedade em que vivemos. Claramente a sociedade atual é de massa, de consumo, da produção pensada pelos produtores para ser uniforme, estandardizada, homogeneizada, o que é um processo advindo da Revolução Industrial. A partir dos séculos XVIII, XIX e começo do século XX, antes da Primeira Guerra, foi surgindo uma grande concentração de pessoas nas cidades e a indústria em geral (utilizando aqui a palavra “indústria” num sentido bem amplo) passa, por causa disso, a querer oferecer mais produtos e serviços a maior número de pessoas, o que, diga-se, é legítimo.

Para fazer isso buscou-se um modelo de estandardização da produção, planejando-se um único produto e o reproduzindo milhares de vezes numa escala de produção industrial, porque assim se conseguiria ofertar mais produtos a um menor preço para mais pessoas, atingindo maiores camadas da população.

Esse modelo, que veio crescendo desde o período da Revolução Industrial, a partir do século XX, começa a ganhar implementação muito grande, centradamente na Segunda Guerra Mundial, quando, então, inicia-se a produção de armamentos em larga escala, de forma seriada. Surgem, a partir desse contexto, a tecnologia de ponta, a informática – na época, ainda, cibernética – e os meios de comunicação, que fizeram com que hoje o planejamento de produtos e serviços envolva simultaneamente milhões de compradores, possíveis pessoas que comparecem ao mercado para comprar produtos e serviços.

Esse modelo de sociedade capitalista foi acompanhado por um modelo jurídico. Não tinha sentido que a indústria produzisse um único produto a ser reproduzido de forma idêntica, para ser vendido a milhares de pessoas (uma mesma caneta para milhares de pessoas) e se fizessem milhares de contratos. O Direito, já desde o começo do século XX, vinha produzindo simultaneamente ao modo de produção uma forma de contrato. O planejamento era de um produto pensado no gabinete do fornecedor, do fabricante, do produtor etc., e oferecido ao mercado num sistema de oferta de massa. O contrato, por sua vez, tinha, como tem, a mesma feição: trata-se de um contrato planejado e elaborado unilateralmente pelo fornecedor, em seu gabinete, feito num padrão reproduzido centenas, milhares de vezes na série. É por isso que se fala em Contrato de Adesão: apresentado o contrato, cabe ao consumidor aceitá-lo, aderindo a seu conteúdo. E no Brasil, a primeira vez que uma lei falou em Contrato de Adesão foi em 1990; trata-se do Código de Defesa do Consumidor.

Esse processo, portanto, fazia com que os produtos e serviços fossem oferecidos no mercado mediante um contrato, em que o consumidor podia pura e simplesmente, ao comprar o produto e o serviço, aderir às suas cláusulas previamente estipuladas, planejadas, pensadas pelo fabricante. É claro que isso foi, durante o século XX, edulcorado por um sistema de marketing e de publicidade que acabava iludindo os destinatários, os consumidores, inclusive com a idéia bastante atual de que o consumidor é o rei do mercado.

Na verdade essa história de que o consumidor é quem escolhe produtos e serviços é uma ilusão fabricada pela mídia do fornecedor, exatamente para não permitir que se fizesse um sistema de proteção ao consumidor, que, no caso brasileiro, acabou vindo.

Veja-se a problemática: durante quase um século inteiro, até 11 de março de 1991, tínhamos produtos e serviços fabricados em série, com contratos planejados adredemente pelo fabricante, pelo produtor, sem nenhuma participação do comprador. E durante quase o mesmo período, quando se interpretavam cláusulas contratuais, abria-se o Código Civil, lia-se o contrato e se dizia: “pacta sunt servanda" — o pactuado tem que ser respeitado —, porque no Direito Civil se pressupõe que as partes se sentam à mesa, negociam as cláusulas; e se negociaram e transformaram a vontade subjetiva em elemento objetivo no papel, então, o contrato é válido. No Direito Civil isso ainda é assim, é questionável, mas ainda vale. As partes sentam-se à mesa, por exemplo, os nubentes, quando resolvem casar, negociam a forma do casamento, casam-se, e exercem essa vontade subjetiva transformada em elemento objetivo no contrato, no pacto, no instituto do casamento.

Isso, além de não revelar a relação de consumo, fez com que se interpretassem contratos e práticas durante um século inteiro, no Brasil, de forma absolutamente equivocada. Pensar relação de consumo não é pensar “pacta sunt servanda", porque isso não corresponde à realidade. Na verdade é o contrário, e é disso que vamos tratar.

O Código de Defesa do Consumidor tem, digamos assim, consciência, tanto quanto a Constituição Federal, da maneira como os produtos e os serviços são fabricados. Claro que a produção se dá de forma legítima, visando a receita, porque aquele que fabrica produtos e serviços tem direito à receita, e tem direito ao lucro decorrente da receita e do desconto dos seus custos; mas esses fabricantes estão longe de estarem preocupados com aquilo que o consumidor necessita. Ao contrário, a produção a partir da segunda metade do século XX passou a ser quase totalmente planejada apenas e tão somente para gerar receita.

Ressalte-se, infelizmente, que no final do século XX temos uma possibilidade de venda de quase tudo, até de corpos humanos, transformado que foi o próprio ser humano em produto de consumo, o que é um absurdo existente no mundo ocidental globalizado atual, no qual o indivíduo não vale muita coisa. Esse é um problema grave, que o Código de Defesa do Consumidor assimilou.  

Gosto sempre de andar com este aparelhinho que tenho pendurado aqui: celular, marca Motorola StarTac (por enquanto ainda dá para usar o exemplo).  Ele não funciona sem a bateria, pois quando compramos o aparelho deve vir junto dele, e vem.

Só que ele vem com uma bateria chamada  “tarja verde”; vocês estão vendo que eu tenho aqui uma “tarja azul”; e quando a gente vai à loja comprar o produto, vem com a tarja verde. Daí o vendedor diz: “o senhor não vai levar uma outra bateria?”. O que é surpreendente: por que, afinal, o aparelho não vem com a bateria?

O vendedor responde: “Vem, mas é que a bateria de fábrica não é boa”.

“Ah! Então quer dizer que esta indústria mundial, Motorola, planeja produtos bons com baterias ruins?”

“É, planeja”.

É como se o consumidor fosse à concessionária comprar o último veículo da  marca Volkswagen, e na hora de sair da concessionária o vendedor falasse: “o senhor não vai levar uma bateria? Sabe, a bateria de fábrica ainda é daquelas antigas com água, o senhor precisa levar uma nova”.

Esse exemplo é a prova de que o fabricante quer aprisionar o consumidor, de que ele pensa em vender um produto, mas já planeja vender outro. O fabricante estuda cuidadosamente esse aspecto, é um processo em que ele pura e simplesmente está preocupado com a receita. O exemplo do celular é gritante: evidentemente um produto desses deveria vir com uma bateria desta (tarja azul). Não, obrigando o consumidor, como eu mesmo, hipossuficiente que sou, como todos nós somos, e que temos que comprar a bateria azul, sob pena de não ter o  produto funcionando adequadamente.

Então, enquanto eu andar com esse produto pendurado, tenho a prova de que quando vamos na alma do Código de Defesa do Consumidor, pensarmos a questão dos controles preventivos, das cláusulas e das práticas abusivas, do controle mediante Ações Coletivas, estas que são a estrutura específica da parte processual da Lei n. 8.078/90, descobrimos que realmente o Código acertou; sabia do que estava falando. 5.1     Livre Iniciativa

A proteção ao consumidor está posta em várias normas constitucionais, mas gostaria de salientar apenas duas. O sistema brasileiro é capitalista, porque está previsto no art. 1º que a sociedade, a República Federativa do Brasil, é fundada na livre iniciativa, mas gostaria  de acrescentar algumas questões.

Em primeiro lugar, que a dignidade da pessoa humana é uma garantia constitucional e irretorquível, intangível, fundamental na Constituição Federal. Aparece no art. 1º, III. Mas quando a Constituição Federal, na seqüência, no inciso IV, fala em livre iniciativa é preciso interpretar a proposição jurídica do texto de forma adequada. É necessário utilizar a conjuntiva "e" com aquilo que está na frase, porque está escrito: "A República Federativa do Brasil (...) tem como fundamentos: (...) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa". São duas proposições separadas por uma conjuntiva "e"; logo, o que a Constituição está falando é que o fundamento da República é o valor social do trabalho e o valor social da livre iniciativa. Caso contrário não entenderemos que regime capitalista é este.

A Constituição Federal compreende que a livre iniciativa é importante, mas sempre fundada em valores sociais, não sendo verdade, então, que a livre iniciativa pode explorar tudo indefinidamente, do jeito que bem entender.

Esse aspecto está ligado aos princípios gerais da atividade econômica, que aparecem no art. 170 da Constituição Federal e dentro dos nove princípios estabelecidos nos incisos desse artigo, quero chamar atenção para, pelo menos, três que estão lá.

5.2         Proteção ao Consumidor

Primeiro a previsão da defesa do consumidor: quem manda proteger o consumidor é a Constituição Federal, porque ela sabe que o consumidor é vulnerável, sabe que ele, não tendo acesso aos meios de produção, não tem condições de saber como os produtos e os serviços são fabricados, e exatamente por isso o consumidor precisa de larga proteção.

Na época da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, que teve início de vigência em 11 de março de 1991, até uma semana antes os produtos não tinham prazo de validade; raros eram os produtos que o tinham. A partir daquela data, os consumidores passaram a descobrir que até água tinha prazo de validade, que refrigerante também etc. Foi preciso que a lei viesse a fim de obrigar os fabricantes a dizerem aos consumidores que os produtos que eles compravam venciam, se estragavam. Por exemplo, comprava-se o refrigerante Coca-Cola, guardava-se na prateleira – quando a embalagem era em vidro e ainda não havia latinha –, depois de alguns meses tirava-se a tampinha, que estava até meio enferrujada, limpava-se e tomava-se. O que se bebeu de refrigerante estragado foi muito, porque não se sabia que vencia, que deteriorava.

A partir de 11 de março de 1991 essa informação passou a ser dada, com muita luta é verdade. Essa situação de defesa do consumidor é, portanto, um fundamento constitucional relevantíssimo para se entenderem as regras e os princípios estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor.

5.3     Livre Concorrência

A outra previsão importante é a da livre iniciativa, já abordada, lembrando que ela está ligada aos valores sociais conforme previsão do art. 1º, IV, da Constituição Federal; e o outro princípio, que devemos ressaltar, é o que aparece no art. 170, IV:  o da livre concorrência.

Por que é que a Constituição Federal brasileira assimilou da história essa idéia de livre concorrência? Na verdade, ela assimilou porque sem livre concorrência o consumidor não tem proteção. É por isso que ao se falar em privatização de produtos ou serviços, especialmente serviços públicos essenciais oferecidos sem concorrência, é simplesmente entregar na mão da iniciativa privada monopólios que podem permitir toda sorte de abusos, o que é gravíssimo.

Pensar, então, essa questão constitucional é entender o que ela quer dizer com livre concorrência. Podemos dar um exemplo rápido de uma história particular que elucida a questão da livre concorrência. Livre concorrência só pode ser oferta de produtos e serviços de melhor qualidade a menores preços. Não existe livre concorrência às avessas.

Tive uma experiência particular que é interessante para não esquecermos mais daquilo que a Constituição aprendeu com a história: eu sou juiz pelo quinto constitucional, do 1º Tribunal de Alçada Civil, há mais de 2 anos; fui advogado durante 18 anos e gerente-jurídico do CitiBank. Em meados de 1980 fiz um curso nos Estados Unidos, Nova Iorque, permanecendo lá alguns dias. Éramos em três. Ficamos amigos de um auditor do banco, que nos convidou para almoçar na casa dele, num sábado, em Connecticut, perto de Manhattan. Pegamos um trem e fomos. Ao chegarmos na estação, ele, que era um típico americano, citi-banquense, nova-iorquino..., veio buscar-nos com um automóvel Toyota.

Naquela época já tinham as indústrias montadoras japonesas no mercado americano, e estavam conquistando o consumidor. Então, quando ele veio nos buscar, não resistimos e falamos: “Cadê o Chevrolet, você veio com um Toyota?”, e ele fez uma série de elogios ao carro. Daí lhe perguntamos o que estava acontecendo em termos de competição e nos disse: “Eu vou contar pra vocês por que é que os japoneses estão conquistando o mercado americano...”.

Esse alto funcionário do CitiBank tinha dois hobbies: um era plantar flores; ele tinha uma casa maravilhosa com uns mil vasos em volta que eram uma beleza; e o outro era fotografar as flores. Ele tinha muitas fotos das flores.

Ele disse: “Há dois anos eu estive no Japão...”.

Como ele era "senior-auditor", auditor sênior do banco, no mundo inteiro, ele vivia viajando pelos países para visitar as sedes.

Ele disse: “fui a uma loja e comprei a máquina de fotografar mais moderna que existia. Trouxe para cá, fotografei minhas flores, mandei revelar o filme e não saiu nada. Ela estava com defeito, estava quebrada, não funcionava, eu guardei na mala...”.

Diríamos aqui pela nossa legislação vício de fabricação.

No ano seguinte, ele voltou ao Japão com a máquina na mala.

Ele continuou: “eu fui à loja e reclamei: ‘comprei essa máquina aqui e ela não funciona’, disse.”

O vendedor, como viu que ele era interessado em máquinas, falou: “o senhor não quer levar uma mais moderna? Esta máquina aqui já ficou obsoleta, nós temos uma muito mais moderna”.

Ele falou: “está bem, me dá a mais moderna e eu pago a diferença”.

O vendedor respondeu: “não, o senhor vai levar a mais moderna e eu dou o troco”.

E o executivo americano concluiu: “é por isso que os japoneses estão conquistando o mercado americano: conseguem produzir melhores produtos a menores preços."

Pois bem, isso é livre concorrência. Supor que eu tenho livre concorrência, e os produtos piorem de qualidade, não é concorrência. Se os produtos têm preços aumentados, não é concorrência. Se as pessoas não anunciam preço, não é concorrência, como acontece hoje nos serviços privatizados; fala-se que existe concorrência, mas só tem uma coisinha esquisita que ninguém fala: o “preço”. Como é que pode haver concorrência se o consumidor não sabe o preço? Essas situações estão estabelecidas no texto constitucional, e o Código de Defesa do Consumidor as incorporou, através dos princípios básicos do art. 1º ao art. 7º e depois no regramento do Direito Material, desembocando no aspecto processual.

Chamamos a atenção de vocês para essas questões, apenas para tentar fundamentar os aspectos processuais. É que a Lei n. 8.078/90 tem preocupação primordial com as Ações Coletivas. Nas definições que o Código de Defesa do Consumidor trouxe no parágrafo único do art. 81, de direitos individuais homogêneos, de direitos difusos e de direitos coletivos, estão caracterizadas o que ele visou  o tempo todo: a Lei n. 8.078/90 pretendeu proteger o consumidor, em larga medida preocupado com a questão do direito difuso e do direito coletivo.

Se estamos numa sociedade de massa cujo modelo é da fabricação, do planejamento, da produção de produtos e serviços em série, sem a participação do consumidor, na verdade precisamos ter um modelo processual que proteja o consumidor, difusamente, de forma abstrata.

É por isso que a lei permite, e o Ministério Público pode e deve controlar em abstrato contratos, independentemente de encontrar consumidores lesados. É por isso que, apesar de nenhum consumidor reclamar de um anúncio enganoso do seu querido astro de televisão, pode sim o Ministério Público ingressar com uma ação para que esse anúncio seja proibido.O Risco da Atividade

O terceiro aspecto é o do risco da atividade. A Constituição Federal admite o livre exercício da atividade econômica e, ao fazê-lo, impõe o risco ao empreendedor.

Aquele que quer promover algum negócio lícito, pode fazê-lo, mas deve saber que assume integralmente o risco de a empreitada dar certo ou não. E o Código de Defesa do Consumidor assimilou do texto constitucional corretamente essa imposição.

Com efeito, a Lei n. 8.078/90 está preocupada com a questão do consumidor coletivo, ou seja, a lei quer ser utilizada largamente para as questões coletivas, muito embora o direito individual do consumidor também seja considerado. Temos então que entender, do ponto de vista daquilo que nos interessa, que esse modelo capitalista vai gerar a idéia de mercado, mercado este que está previsto no sistema constitucional, ligado à possibilidade da produção.

Do ponto de vista do texto constitucional é preciso então lembrar que essa possibilidade de produção implica um sistema capitalista de proteção e livre concorrência, e, por conseqüência, risco para aquele que vai ao mercado explorá-lo.

A característica fundamental da produção na sociedade capitalista do sistema jurídico constitucional brasileiro é a de risco da atividade. Quem corre risco ao produzir produtos e serviços é o fornecedor, jamais o consumidor.

Um exemplo: se o estudante de direito torna-se bacharel, inscreve-se na Ordem dos Advogados, e no mês seguinte da inscrição ele aluga um andar inteiro aqui na av. Paulista, 500 m², emprega 5 secretárias, adquire 20 linhas telefônicas, contrata 6 estagiários se ele quiser fazer isso, pode: é risco da sua atividade de prestador de serviço – a advocacia. Pode fazê-lo, mas vai quebrar. Vai quebrar porque vai descobrir que ninguém manda cliente, quando somos recém-formados (nem o tio manda uma causa). Mas é direito dele montar o negócio de prestação de serviços.

Quem quiser, portanto, se estabelecer produzindo pneus, abrindo bancos, vendendo produtos e serviços, pode fazê-lo, mas corre o risco da atividade. É por isso ao estudar-se responsabilidade civil objetiva na Lei n. 8.078, ela está estabelecida de forma absoluta, impedindo qualquer possibilidade de aquele fabricante se esquivar da sua responsabilização. Esse risco fará com que aquele que vai ao mercado oferecer produtos e serviços, assuma integralmente a responsabilidade por eventuais danos que seus produtos e serviços possam causar aos consumidores. Isso, do ponto de vista da questão processual, do controle possível através das ações coletivas, vai desembocar no fenômeno característico da entrega desses produtos e serviços no mercado de consumo, que se dá com a oferta. A maneira de aproximação do fornecedor com o consumidor é a oferta. Oferta que inclui: informação, apresentação e publicidade, porque é assim que o fornecedor chega ao consumidor.

Na verdade, do ponto de vista da Lei n. 8.078, a oferta é uma espécie de canal de comunicação em que o fornecedor emite uma mensagem, ou seja, informação, publicidade e apresentação, e o consumidor a recebe. Nessa mensagem devem aparecer todos aqueles requisitos exigidos, a partir do art. 30 e s. do Código de Defesa do Consumidor.

Portanto, com base nisso, independentemente da existência de eventuais danos que produtos e serviços possam causar ao consumidor, independentemente, por exemplo, de se apurarem acidentes de consumo para depois se proporem ações para defesa de direitos individuais homogêneos, coletivos e difusos, o sistema processual da lei consumerista vai permitir que a proteção se faça preventivamente para evitar tudo aquilo que estamos tentando muito rapidamente dizer. É assim que funciona.

É preciso então entender e relativizar esses conceitos tradicionais que nos formam. Na verdade, somos filhos da tradição privatista, inadequada para entender relações de consumo. É preciso saber que os princípios do direito privado não se aplicam às relações de consumo, que são regradas pelo Código de Defesa do Consumidor. Quando chegamos na questão das ações coletivas, percebemos que a grande virtude da lei  consumerista, apesar do seu atraso secular, é exatamente estar atrelada àquilo que existe de melhor na proteção ao consumidor. O Código de Defesa do Consumidor permite a proteção em larga medida dos consumidores, através das ações coletivas e das ações civis públicas. É por seu intermédio que o consumidor poderá ser protegido. Aliás, parece-nos que, pelo menos nas questões estaduais, de competência da justiça estadual, aos poucos é verdade (e no caso brasileiro não era de esperar outra forma que o Código de Defesa do Consumidor demorasse para ter uma implementação), mas aos pouquinhos começa-se a ter consciência da importância da ação coletiva, quer propostas pelo Ministério Público, quer pelas Associações de Defesa do Consumidor, porque começa-se a perceber que de fato o fundamento primordial da Lei n. 8.078, nas questões processuais, é exatamente o de controlar como um todo as ações dos fornecedores.

Controlar de uma vez só todos os contratos ofertados no mercado de consumo, de tal maneira que a Lei n. 9.656 – editada de forma muito equivocada, através de Medidas Provisórias, mas melhoradas, surpreendentemente –, que regula os planos privados de assistência à saúde, está bastante ligada a esses princípios do Código de Defesa do Consumidor e da Constituição Federal, na medida em que permite o controle em abstrato desses contratos de oferta de produtos de plano de saúde. E é isso que o Código de Defesa do Consumidor quer.

Começamos a perceber, então, que temos no caso do Brasil ações heróicas de Associações de Defesa do Consumidor, que são poucas, é verdade. O exemplo mais gritante é o daqui de São Paulo, que possui a melhor associação, de longe, de defesa do consumidor no Brasil, mas várias outras associações que foram se organizando para proteção dos consumidores, acabam fazendo com que aos poucos o Judiciário passe a tomar consciência da necessidade de implementação daquilo que já está em vigor.

E nesse aspecto não faço uma crítica ao Judiciário nem a todos aqueles que não conhecem a lei. Na verdade esse é um processo histórico natural de evolução da sociedade.

Quando há uma alteração mais profunda do quadro jurídico, como a proporcionada pelo Código de Defesa do Consumidor, e que, no caso, também é atrasada, tem-se um problema típico de memória: quase todos aqueles que militavam na área jurídica e ainda estão aí, trabalhando, não entendiam as inovações que a lei trouxe, porque foram estudar relações de consumo com base no aprendizado do Código Civil.

O Código Civil, editado em 1916, entrou em vigor em 1917, com base num direito civil do século anterior da Europa, e que já não tinha total relação com a nossa realidade. Agora, esse direito civil não tem relação alguma com o processo de industrialização que estamos apontando aqui. Por causa disso, há dificuldades para se entender muita coisa, inclusive o sentido das ações coletivas. É por isso que ainda existe dúvida a respeito da legitimidade do Ministério Público, quanto à possibilidade do parquet propor ações coletivas para defesa de direitos individuais homogêneos. Mas o fato é que o Ministério Público pode e deve ingressar com ações para proteção desse tipo de direito.

No entanto, aos pouquinhos isso vai mudando, porque é preciso entender a sistemática, e demora exatamente pelo fato de que o Código de Defesa do Consumidor não é uma lei como outra qualquer; na verdade é uma lei que trouxe um novo sub-sistema fundado em elementos constitucionais que estão legitimados pela história. Na realidade, a Constituição Federal, essa nossa Constituição Federal, que é a melhor de todas, é muito inteligente e por ser a melhor de todas está sendo destruída.

Outro dia eu constatei, infelizmente, ao fazer uma palestra..., tive que perguntar para alguém da mesa se o meu texto da Constituição Federal estava atualizado, o que é um absurdo, porque quando eu estudei, neste país, quando eu fiz Direito Constitucional na PUC, em 1976, época da ditadura, o professor de direito constitucional entrava em sala de aula e dizia: “Olha este texto aqui, eu não sei se está em vigor, mas é o que eu tenho e nós vamos estudar”.

Estamos aqui hoje, 24 anos depois, e eu tenho que fazer a mesma pergunta: será que o texto está em vigor?

Que regime é esse? No entanto, pelo menos naquilo que nos interessa, a Constituição Federal, a não ser que haja um golpe, não pode ser alterada: tanto nas cláusulas pétreas como nas garantias aqui citadas que lhe estão atreladas.

Bem, quando chegamos na questão processual vamos perceber que, de fato, não só as ações coletivas são fundamentais para proteção dos direitos dos consumidores, como vai haver e já começa a haver um fenômeno, envolvendo as próprias demandas individuais.

Pergunto: “Pode o consumidor individualmente ingressar com ações coletivas?” A resposta é não, porque a lei não permite. Os legitimados para ingressar com ações coletivas estão previstos no art. 82 do Código de Defesa do Consumidor.

Vamos pegar um exemplo para concretizar o que eu quero dizer. O de uma publicidade vista na televisão, apresentada por aquela personagem, a “Feiticeira”, que tem aquele corpinho, que não foi Deus quem deu, porque ela, na verdade, fez operações plásticas e malha todo dia na academia. Mas daí ela vai à televisão e faz um anúncio; põe um aparelhinho na perna e diz: “Olha, eu tenho esse corpinho porque eu uso esse aparelhinho aqui”. Ela usa aquele aparelhinho, e é claro que aí o consumidor e a consumidora  olham  para aquele corpo, vêem o resultado e compram um aparelho. Mas depois percebem que não basta usá-lo, especialmente se continuarem comendo doce e gordura.    

Então a questão é: pode, evidentemente a consumidora que comprou aquele aparelho, acreditando que ia ficar com o corpo da atriz, ingressar com ação para pedir indenização por danos materiais e morais? Não há dúvida que pode. Está lá o anúncio enganoso.

Mas pode também essa consumidora entrar com uma ação pleiteando que o anúncio seja retirado do ar? Pode uma ação individual ter efeito coletivo? A resposta é não.

Todavia, claro que o consumidor pode ir ao Ministério Público fazer uma reclamação, pode montar uma associação das vítimas da Feiticeira. Pode fazer isso, como fazem mesmo, pois temos várias associações de vítimas.

Mas o magistrado, no caso concreto, ao receber uma ação daquele tipo pode e deve oficiar o Ministério Público para que seja aberto o procedimento e/ou  inquérito para apurar. Ou como já fizemos lá na 4ª Câmara, julgamos o caso primeiro e mandamos o ofício ao Ministério Público, já com o julgamento terminado.

Julgamos um caso em que determinada empresa vendia certo produto para os consumidores, e no contrato havia uma cláusula que dizia o seguinte: “Aplica-se às relações aqui estabelecidas o Código de Defesa do Consumidor naquilo que não contrariar as cláusulas do contrato”. Estava escrito abertamente esse absurdo. Então, o que fizemos? Julgamos o caso, declaramos nula aquela cláusula contratual abusiva e remetemos ao Ministério Público. Este passa a ter já, inclusive, uma decisão, claro que num caso individual, mas uma decisão judicial, para promover o inquérito.

Percebemos então que a importância das ações coletivas se dá nesse contexto macro, mas de fato, do ponto de vista concreto, aos poucos vai-se implementando esse direito, lembrando que é sempre uma luta levar isso adiante.

Aos poucos o Judiciário vai tomando consciência da necessidade de entendimento desse sistema como um todo. Claro que durante muitos anos se discutiu a questão da legitimidade do Ministério Público em matéria de Direito Individual homogêneo, que, parece, está sendo superada. Ainda há dúvidas, mas têm que ser eliminadas porque a lei está aí, é legítima e constitucional, não há nenhum problema.  No entanto, ela está aí para lembrar que essas questões são sempre de luta de implementação dos direitos. Esse é um dado importante, pois na medida em que tomemos consciência disso, a partir das ações individuais as ações coletivas vingarão. Claro que vai dar mais trabalho ao Ministério Público, mas é para isso que foram fixadas na Carta Magna as funções institucionais do Ministério Público: a defesa da sociedade como um todo. Este é um dado.

O outro é o de que é preciso acabar com um preconceito; não só o Ministério Público pode ingressar com ações coletivas para defesa de direitos individuais homogêneos, conforme previsto no art. 82 e na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, como é preciso extirpar esse equívoco que existe de dizer que o Ministério Público quando faz isso tira mercado do advogado. Equívoco que não tem fundo científico ou estatístico: é mero preconceito; e preconceito é sempre falta de conhecimento.

Usaremos dois dados para demonstrar isso. Em primeiro lugar, quando foram criados os Juizados Especiais – na época Juizados de Pequenas Causas – permitia-se, como ainda se permite, que as pessoas pudessem reclamar diretamente ao juiz, ao Judiciário, apresentando pleitos de pequeno valor. Naquele momento se disse: “Olha, isto vai acabar com o mercado dos advogados”. Mas examinando dados estatísticos, descobrimos o seguinte: as varas que recebiam 3.000 ações por ano, continuaram recebendo 3.000 ações por ano. E surgiram milhares de causas de pequeno valor. Na verdade criou-se um mercado, e não o contrário. O mercado para os advogados não diminuiu;  cresceu. Criou-se um mercado novo, que é o das ações de pequenas causas que não iam ao Judiciário, porque quando alguém vai ao Judiciário requerer  algo de pequeno valor, a parte contrária pode contratar um advogado. Então criou-se um mercado novo.  Ele cresceu.

Outro aspecto é o seguinte: nas questões dos direitos individuais homogêneos também se criou mais outro mercado, porque, ao ingressar com uma ação para proteção de direitos individuais homogêneos, o Ministério Público está, na verdade, enxugando as discussões, mas o processo coletivo termina com a habilitação dos interessados. A habilitação será feita individualmente por advogados que vão patrocinar as ações dos seus clientes. E mais: não é preciso sequer esperar o final da demanda para surgir a relação de clientela, porque na verdade o cliente interessado já vai contratar um advogado para acompanhar a ação coletiva. Este é um dado relevante específico. Portanto, ao contrário de se imaginar que essas ações tiram o mercado, elas também o criam, especialmente se se levar em consideração que muitas demandas envolvem valores individuais de pequena monta, que jamais chegariam ao Judiciário. E muitas delas implicam intrincadas discussões jurídicas e/ou altos custos processuais com perícias, por exemplo. Além do mais, tais ações coletivas dão consciência à população sobre os seus direitos, e, portanto, fazem um mercado novo. Além de fortalecer a democracia.

É preciso tomar cuidado com frases de efeito, sem sustentação científica. Por exemplo, hoje em dia fala-se tanto que existe indústria das indenizações por dano moral. Na verdade não existe indústria de ações pleiteando indenizações por danos morais, o que existe é uma indústria de abuso contra as pessoas, e as pessoas passaram a pleitear indenização pelos danos que sofrem, ou seja, com o exercício de uma cidadania um pouquinho melhor do que antes, as pessoas passam a descobrir que têm direitos e vão ao Judiciário.  E isso é muito bom.

Então essa frase de que existe indústria da indenização é falsa. O que existe é uma indústria da produção dos danos. Como os danos são produzidos, as pessoas vão pedir, vão pleitear em juízo aquilo que têm de direito, o que é absolutamente regular em sociedades democráticas.

Aliás é preciso lembrar que, por enquanto, a Constituição Federal brasileira, do ponto de vista formal, pelo menos, é plenamente democrática. E o Judiciário, por mais que se pretenda denegrir sua imagem, é a última garantia da democracia de qualquer sociedade que se preze. É preciso que saibamos disso. É por isso que o Ministério Público e os advogados são fundamentais ao exercício dessa cidadania e, claro, também, um Poder Judiciário autônomo.Então, o que eu queria transmitir a vocês era isso, não a leitura de regras e artigos do Código de Processo Civil, porque o seminário não tem essa função, mas transmitir, um pouco, particularmente, a nossa experiência, quer como professor universitário, quer como magistrado, operador do direito, que pensa a questão do ponto de vista da implementação das ações coletivas.

Eu diria que o meu otimismo é no sentido de perceber que, aos poucos, essa tomada de consciência vai se dar, porque isso é apenas o implemento da cultura, cultura jurídica, por aqueles que ainda não tiveram a oportunidade de estudar a Lei n. 8.078, o que é absolutamente natural.

Era impossível que a lei entrasse em vigor em 11 de março de 1991 e no dia seguinte todo o mundo entendesse seu contexto. Na verdade as coisas não se dão assim, aliás, até ao contrário. Nesses 10 anos produziu-se bastante, mas ainda é preciso fazer mais.

Demora ainda um pouco,  mas não temos dúvida alguma em afirmar que isso vai acontecer, e já estamos num processo de implementação desses direitos. O que aliás está provado por este seminário aqui, repleto de pessoas interessadas nessa discussão. Posso dizer que já começou a funcionar. É isso que eu queria dizer. Muito obrigado.

 

retirado de: www.saraivajur.com.br