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O cheque pré-datado e a falência do fornecedor

 

Rizzatto Nunes

 

Mestre, Doutor e Livre-Docente em Direito pela PUCSP, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unimes/Santos, Juiz de Direito do Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo e autor de diversos livros, dentre os quais Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, editado pela Saraiva.

 

1.      Do Cheque

O cheque está regulamentado no Brasil pela Lei Federal n. 7.357, de 2 de setembro de 1985, que normatiza uma série de disposições relativas ao cheque, tais como sua emissão, sua transmissão, a garantia (o aval), a apresentação, o pagamento e a quitação etc. Essa norma, inclusive, incorporou num texto escrito algumas práticas comerciais relativas ao cheque, como, v.g., a do cheque cruzado. A questão que nos importa está estabelecida no art. 32 e seu parágrafo único dessa lei, de que trataremos mais à frente. 2.      Do cheque pré-datado

O "cheque pré", como é conhecido, nada mais é, de fato, do que um financiamento direto do lojista (ou credor) ao consumidor. Mas com várias vantagens: não há qualquer burocracia, pois não se assinam contratos, títulos etc.; não há acréscimo de impostos, uma vez que não é matéria regulada pela legislação fiscal ou tributária (ele está caracterizado apenas quanto à forma de quitação do preço e não como meio de financiamento); sua operacionalidade é excelente, visto que só precisa ser levado ao banco. Nenhum outro tipo de financiamento conhecido é tão prático e ágil (com exceção do cartão de crédito, que, também, por ter cobrança de juros excessivos, é praticamente um cartão de compra). 3. Da Lei do Cheque - das disposições legais pertinentes e sua interpretação

 

3.1    A previsão legal

Conforme já dissemos, o cheque está regulamentado na Lei n. 7.357. O art. 32 e parágrafo único dessa lei dispõem, in verbis: "Art. 32. O cheque é pagável à vista. Considera-se não escrita qualquer menção em contrário.  Parágrafo único. O cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação". 3.2    A interpretação

À primeira vista, lendo-se apenas o caput do art. 32, pode-se pensar que um cheque pré será considerado um título que tenha uma condição não escrita. Contudo, o parágrafo único do mesmo artigo não permite essa interpretação, como se verá. Mas, ainda que assim não fosse, e se se tivesse de interpretar a data previamente fixada no cheque como não escrita, tal fato não desnaturaria de forma alguma o título, que ainda poderia ser cobrado. Aliás, é o que expressamente diz a jurisprudência. Por exemplo, a 3.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em Recurso Especial cujo relator foi o Ministro Gueiros Leite, já decidiu: "a cláusula que torne à ordem, e não à vista, é considerada não-escrita, de modo que pode desnaturar o cheque, mas não o título em si" (Boletim AASP n. 1.661, p. 253). Porém, é mais que isso. Há outra forma de interpretar que nos parece ser a mais adequada e que patenteia melhor ainda a possibilidade de emissão do cheque pré-datado. É que o parágrafo único do art. 32 prevê expressamente que o cheque possa ser emitido com outra data que não à vista. Leia-se: "o cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação". Ora, se a própria lei prevê que o cheque pode ser apresentado antes da data de emissão, significa logicamente que ela sabe que o cheque foi emitido para data posterior. A questão é de lógica básica. Portanto, a interpretação do art. 32 com seu parágrafo único não só nos diz que o cheque pré-datado pode ser emitido como, se for apresentado ao banco antes, ele vale, só que nesse caso a data da apresentação passa a ser considerada como se a data da emissão fosse. Contudo, além desse aspecto de legalidade, existe ainda outro que protege o emitente do cheque pré, determinando que este somente possa ser apresentado na data combinada. É o elemento contratual que envolve a transação, que é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, conforme se verá a seguir. 4.      A transação é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor

 

4.1         Contrato verbal

Inobstante o fato de a evidência da legitimidade desse tipo de título como meio de pagamento saltar aos olhos, há ainda outro elemento importante: o pagamento com cheque pré normalmente é, do ponto de vista jurídico, um contrato verbal em que o comprador, ao adquirir um produto ou serviço, paga o preço com um ou mais títulos (cheques), sendo certo que o vendedor se compromete a somente resgatar o título (isto é, apresentar o cheque pré no banco) nas datas acertadas entre ele e o comprador. Tudo verbal, mas tudo rigorosamente legal (por vezes, acompanhado de recibo ou pedido discriminando os cheques e/ou nota fiscal fazendo o mesmo). As garantias são recíprocas: o comprador promete que terá fundos por ocasião do saque; o vendedor promete que só apresentará o cheque na data acertada. Na verdade, se nessa transação houver alguma quebra, poderá de dois tipos: ou o comprador não terá fundos na data aprazada, ou o vendedor quebrará a promessa e apresentará o cheque antes. Em ambos os casos a quebra é contratual, estando, assim, dentro do sistema jurídico, e não fora. 4.2    A oferta

Além disso tudo, a partir de 11 de março de 1991, com a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), a transação efetuada entre o vendedor e o comprador firmando a forma de pagamento por meio do cheque pré-datado passou a ter regulação expressa em lei, mediante a figura da oferta. Com efeito, estabelece o art. 30 da legislação protecionista das relações de consumo, in verbis: "Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado". Ora, verbal ou escrito, o contrato foi celebrado, e pelo menos a operação de compra e venda foi efetuada. Como a oferta é parte integrante do contrato por força expressa de lei, isto é, pelo estabelecido no art. 30 do CDC, e como tanto o preço quanto a forma de pagamento são parte da oferta do vendedor, eles integram o negócio realizado. Daí se conclui que, se o vendedor oferece ao comprador como forma de pagamento a entrega de cheque que ele (vendedor) só vai levar ao banco em determinado dia futuro, isso é verdadeira cláusula contratual, que não pode ser por ele (vendedor) quebrada sem que seja responsabilizado pelo rompimento. 4.3    A quebra da promessa

Assim, outro aspecto de bastante relevo deve ser tratado. É o da quebra da promessa e dos danos dela provenientes. Se o cheque for apresentado pelo vendedor na data combinada e não tiver fundos, ele terá a seu dispor as alternativas legais para tentar receber seu crédito (civis e penais), e que são por demais conhecidas, não necessitando desenvolvimento aqui, pois usuais e corriqueiras. Contudo, é importante que abordemos a questão dos danos relativos à quebra da promessa por parte do vendedor. Em outras palavras, pergunta-se: que acontece se o vendedor descumpre o pactuado e apresenta o cheque pré antes do dia combinado? Não sofre ele nenhuma sanção, além do natural repúdio do consumidor? Claro que a resposta somente pode ser a da responsabilização do vendedor pelos eventuais danos que sua quebra de promessa venha a acarretar ao consumidor. A responsabilidade do vendedor é evidente. Vejamos. Na apresentação do cheque pré antes da data aprazada, duas coisas podem acontecer: a) o cheque ter fundos e ser pago; b) o cheque não ter fundos e ser devolvido pelo banco. Em ambos os casos o consumidor é prejudicado. No caso da hipótese "a" ele sofre: a.1. um prejuízo material direto e imediato, pois passa a não dispor de dinheiro que era seu, isto é, que lhe pertencia; a.2. simultaneamente, ou logo após, o consumidor pode sofrer uma série de outros danos, tais como não ter mais o dinheiro para arcar com outros compromissos, o que lhe pode gerar outros tantos danos diretos; a.3. outros cheques de sua emissão podem vir a ser devolvidos por falta de fundos, na medida em que podem eles estar já em circulação, e o estavam porque o consumidor sabia que tinha suficiente provisão de fundos na sua conta corrente; a.4. o consumidor pode, também, sofrer danos materiais e morais como decorrência dos fatos narrados em a.2. e a.3. no caso da hipótese "b" ele sofre o dano de pronto, já que terá cheque devolvido com todas as conseqüências negativas que isso acarreta: perda de credibilidade; anotações no prontuário bancário; fechamento da conta, se o cheque for devolvido de novo. Danos materiais (relativos a despesas cobradas pelo banco) e morais, portanto. Em todas essas hipóteses a responsabilidade do vendedor é objetiva e decorre do descumprimento da oferta.

5.    Circularidade e responsabilidade solidária do terceiro  

 

Um dos grandes problemas reais enfrentados pelos consumidores está relacionado a um modelo de operação perpetrado pelo fornecedor junto com seus parceiros nos negócios.

É muito comum que o fornecedor faça a venda do produto ou do serviço a ser prestado recebendo como forma de pagamento os cheques pré-datados, e depois negocie com um terceiro esses cheques. Normalmente uma empresa de factoring  os adquire.

Acontece que essa operação é feita sem a anuência e o conhecimento do consumidor, o que viola expressamente a operação jurídica de consumo, que só não estaria sendo violada se tanto na oferta como no contrato celebrado estivesse expressamente declarado que os cheques pré-datados entregues seriam negociados com terceiros fornecedores.

Não se pode esquecer que a circularidade permitida ao cheque diz com relação típica de direito privado, enquanto a relação de consumo nasce com o fenômeno da oferta, que, regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, conforme acima dito (art. 30 e seguintes), vincula o fornecedor nos exatos termos daquilo que foi dito e escrito.

Assim, se não consta da oferta ou do contrato que os cheques pré entregues para pagamento das prestações serão negociados com terceiros, isso desde já é quebra da oferta.

Além disso, e o que é mais importante aqui, o terceiro que adquire os cheques é parceiro do fornecedor na operação jurídica de consumo, de tal modo que ele é também solidariamente responsável pelos eventuais problemas e danos que o consumidor possa sofrer. E isso também por expressa disposição legal (CDC, parágrafo único do art. 7.º).

Então, se o fornecedor promete fazer um serviço ou entregar um produto, recebe cheques pré, negocia com terceiro tais cheques e não presta o serviço prometido ou não entrega o produto, é legítimo que o consumidor suste o pagamento dos cheques, não podendo o terceiro cobrá-los.

É que, como dito, esse terceiro é solidariamente responsável pelos danos que o consumidor possa sofrer.

Além disso, tudo é de notar que, portanto, esses cheques pré-datados  transacionados entre os parceiros, nasceram vinculados a uma operação jurídica primária de consumo (de compra e venda de produtos ou serviços), e dela não se desvinculam até que o fornecedor cumpra a sua parte. Isto é, os cheques não poderão ser cobrados por quem quer que seja (fornecedor primário ou terceiro adquirente dos títulos) até que o consumidor tenha recebido aquilo pelo que se comprometeu a pagar no futuro.           

É esse fenômeno da oferta, característica marcante das relações de consumo, que precisa ser compreendido.

Não se há que falar em "livre circulação" dos cheques pré, porque essa possibilidade está atrelada a características típicas do direito privado civil e comercial, não incidente em matéria de relação de consumo.

Assim, não importa por qual motivo o produto não está sendo entregue ou o serviço  não está sendo prestado - se por falta da mercadoria no mercado, se por atraso do exportador, ou se se trata da falência do próprio fornecedor: os cheques pré-datados ficam vinculados à operação jurídica de consumo primária, e se o consumidor não receber o produto ou o serviço eles não poderão ser cobrados por quem quer que seja.

6.         Conclusão

À vista do exposto, forçoso é concluir que não só não há impedimento legal para a emissão do cheque pré-datado, isto é, emissão do cheque para apresentação ao banco em data futura diferente da do dia real (momento histórico-fatual da emissão), bem como que a operação da compra e venda de produtos ou serviços que tem por forma de pagamento do preço a entrega de cheque pré-datado é transação lícita, legal e expressamente regulada pelo CDC. A quebra da promessa oriunda dessa transação dá-se por duas formas: ou o cheque pré na data da apresentação (correspondente ao dia em que o vendedor prometeu fazê-la) não tem fundos, ou o vendedor apresenta o cheque antes da data acordada, prejudicando o consumidor. Em ambos os casos as formas de ressarcimento são garantidas legalmente. Na primeira hipótese o vendedor pode cobrar a dívida pela via da execução ou, caso previsto, e ele queira, pode desfazer o negócio; no outro caso o consumidor pode pleitear indenização por perdas e danos materiais e morais ou, se possível e/ou quiser, propor o desfazimento do negócio com a devolução das importâncias pagas em valores atualizados.

No que respeita à transação de venda do cheque pré para terceiro, esse terceiro portador do título assume a mesma responsabilidade que o fornecedor primário pelo cumprimento da oferta, sujeitando-se às restrições que porventura o consumidor apresentar quanto ao pagamento do cheque. Daí que, se o fornecedor primário falir sem ter cumprido a oferta, o terceiro não poderá legitimamente receber o cheque pré vinculado.