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A RECEPÇÃO DO PRINCÍPIO DA PREDOMINÂNCIA DA ORDEM PÚBLICA PELO
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR COMO MEIO DE AFASTAMENTO
DAS CLÁUSULAS ABUSIVAS NOS CONTRATOS DE ADESÃO
Josivaldo Félix de Oliveira

1. INTRODUÇÃO

Na seara do direito contratual um dos princípios mais importantes a ser observado é aquele inerente a predominância da ordem pública, porquanto através dele, subordina-se à vontade individual, ao interesse coletivo através das normas cogentes. Estas são normas de ordem pública, inseridas no âmbito privado, em contínuo alargamento da noção de ordem pública e derivada inquestionavelmente do princípio do juiz natural inserto no âmago da Constituição Federal.

2. ASPECTOS DOUTRINÁRIOS

Hodiernamente, com a evolução cada vez mais crescente de uma sociedade eminentemente consumista, surgiram os chamados contratos de adesão, largamente utilizados para a aquisição ou utilização de bens, destacando-se os de alienação fiduciária e o arrendamento mercantil, popularmente difundido como leasing.
Em tais espécies de contrato, vem sendo a praxe a inserção de cláusula abusiva onde se elege o foro do estipulante em detrimento do foro do domicílio do consumidor, de forma que, ao atrasar qualquer das prestações avençadas é o consumidor surpreendido com ação judicial promovida pelo estipulante no foro deste, o que significa uma verdadeira negação de acesso à justiça; devendo o juiz reconhecer de ofício a nulidade da cláusula abusiva, e como conseqüência do afastamento desta declinar da competência para o juízo do domicílio do réu, in casu, o consumidor. Essa decisão não conflita com a Súmula 33 do STJ, porque a nulidade da cláusula faz desaparecer a razão pela qual a ação foi proposta no juízo que se dá por incompetente, enquanto que a exigência de que a parte suscite a incompetência do foro está inviabilizada pelas mesmas circunstância que levaram ao reconhecimento da abusividade da eleição do foro.
O fato é que o Codex de Processo Civil e as normas de organização judiciária dos Estados, contêm as diretrizes básicas para a definição dos limites da competência a se verem observadas na prestação jurisdicional, como imperativo de ordem pública. É o que se colhe do princípio recepcionado pelo comando do art. 86 do nosso diploma processual ao estabelecer:

"As causas cíveis serão processadas e decididas, ou simplesmente decididas, pelos órgãos jurisdicionais, nos limites de sua competência, ressalvadas às partes a faculdade de instituírem juízo arbitral".

A ilação que se tira do dispositivo é de que as partes não podem escolher livremente o foro onde querem propor a ação, porque devem se submeter aos regramentos insertos no Código de Processo Civil e nas leis de organização judiciária dos Estados. A competência territorial não é tão ampliada como prima facie parece ser.
A única hipótese em que a ação pode ser proposta em qualquer foro do Brasil está estandardizada no artigo 94, § 3º "in fine" de nossa Lei Adjetiva Civil, ao comandar "verbis":

"Quando o réu não tiver domicílio nem residência no Brasil, a ação será proposta no foro do domicílio do autor. Se este também residir fora do Brasil, a ação será proposta em qualquer o foro"(destaquei).

Assim sendo a propositura da ação no foro do domicílio do estipulante ou em qualquer outro que não seja a do domicílio do consumidor, torna o juízo absolutamente incompetente ante à flagrante violação ao "princípio do juiz natural", inserto no comando do artigo 5º, inciso LIII, da CR ao estabelecer que:

"Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente".

Segundo a cátedra do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, citado por Maria Helena Diniz:

"Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comando. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumácia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra". (In NORMA CONSTITUCIONAL E SEUS EFEITOS, pág. 116, 1989, Saraiva - São Paulo).

Não se pode olvidar, pois, que tratando-se de ação que tenha por objeto contrato de adesão, cujas características são bem conhecidas, mas que se destaca pela superioridade da vontade do estipulante e reduzido âmbito de escolha do aderente, a validade da cláusula de foro de eleição deve ser de logo examinada, para que não sirva de invencível acesso à justiça. Nesse caso, como comumente ocorre nos contratos de consórcio, de fornecimento de bens à distância, de financiamento com garantia de alienação fiduciária, leasing, etc., tem o juiz ao receber a petição inicial o dever de examinar a validade e eficácia de tal cláusula e impedir que, através de seu cumprimento, esteja sendo sobremaneira dificultada a defesa do réu, especialmente quando há possibilidade de deferimento de medida liminar.
Os princípios constitucionais do juiz natural, de acesso à justiça, da ampla defesa e da supremacia do interesse público devem ser preservados e aplicados em todas as situações processuais, ainda quando está a decidir sobre a competência de foro. Daí porque, em se tratando de foro de eleição favorável ao estipulante de contrato de adesão, quando desde logo evidenciado que o demandando terá extrema dificuldade para exercitar sua defesa, e assim caracterizada a abusividade da cláusula, incumbe ao juiz impedir que ela tenha eficácia, declinando da sua competência para o foro de domicilio do réu. É caso de nulidade de pleno direito, decretável de ofício.
Na hipótese, estamos diante de uma situação específica, que não interfere com o enunciado da Súmula 33 do STJ, a qual com certeza não foi editada para permitir a aplicação e os efeitos da cláusula abusiva, havendo lei expressa determinando a sua anulação de ofício.
Em tais situações não se pode olvidar ter inteira aplicabilidade o princípio da ordem pública recepcionado no artigo 17 da Lei de Introdução ao Código Civil, que serve como instrumento regulador na aplicação do sistema, e vem de nos auxiliar na resolução do aparente impasse que porventura venha a surgir quando: de um lado, o juiz que examina a petição e afasta a validade da cláusula do foro de eleição, para reconhecer a sua incompetência; de outro, a regra de que a incompetência em razão do lugar é relativa e deve ser suscitada pelo interessado.
A Lei 8.078/90 se auto-define como sendo norma de ordem pública, e seus preceitos devem, portanto, prevalecer sobre os outros que não apresentem tal característica. Assim, há de se considerar como limitativa de autonomia privada a regra que considera nula de pleno direito a cláusula de foro de eleição, quando colocar o aderente em evidente desvantagem (art. 51, § 1º, III), e, em vez de facilitar a defesa dos seus direitos, como está prescrito no artigo 6º, VIII, a dificulta sobremaneira, o que inquestionavelmente autoriza a declinatória ex-ofício
Nesse sentido é a lição de Nelson Nery Júnior em sua obra Código de Processo Civil Comentado e Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor, "verbis":

"Foro Regional e Declaração ex officio de incompetência. Ainda que se reconheça que na divisão do foro de São Paulo em diversos Juízos há forte componente territorial que marca a delimitação da competência de cada um entre si, em determinada área da cidade, não se pode afirmar tratar-se o caso de competência territorial relativa. A divisão da competência estabelecida por lei de organização judiciária, dentro da cidade de São Paulo, confere a cada um parcela de competência funcional dentro do foro de São Paulo, ganhando por isso contornos de competência absoluta, declinável ex officio (TJSP, Câm. Esp., Ccomp 24495-0, rel. Des. Nigro Conceição, j. 265.10.1995, v.u.)" (op. cit. Atualizada até 01.08.1997, 3ª edição revista e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 403).

3. A QUESTÃO POSTA À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA

O reconhecimento da incompetência absoluta em casos desse jaez, encontra eco no Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, que ao decidir caso posto à sua apreciação na 1ª Câmara Cível, declarou a incompetência absoluta do juízo do 1º grau, tornou nulo o ato que determinara a apreensão de veículo e determinou a remessa dos autos aos juízo competente, ex-vi do art. 113 e 122 do Códex de Processo Civil, em acórdão da lavra do conspícuo Desembargador Marcos Souto Maior, tópicos assim ementado:

"COMPETÊNCIA - Foro de Eleição - Consórcio - Contrato de Adesão _ Prevalecimento do Código de Defesa do Consumidor para que o devedor tenha acesso aos órgãos judiciários e facilitação de sua defesa - Artigo 6º, incisos VII e VIII da Lei nº 8.078/90 - Hipótese que não se trata de declinação de ofício de incompetência relativa, mas sim de reconhecimento de normas de ordem pública a exigir a remessa dos autos à Comarca do domicílio do consumidor".
"Em vista todo o exposto, emerge dos autos ser completamente incompetente o Juízo "a quo" e, por essa razão, nula de pleno direito a decisão objurgada, a teor do estabelecido no art. 113, combinado com o art. 122, ambos do Código de Processo Civil vigente".
"A decisão objurgada, sem sombra de qualquer dúvida tem cunho decisório, porquanto, determinou e ocasionou a apreensão do veículo pertencente a agravante e, à luz do que fora exposto, é nula de pleno direito por Ter sido editada por Juízo agora tido como absolutamente incompetente, o que impõe sua revogação".
Embargos de declaração nº 98.000181-3.
Embargante: Suy Mey C.M. Gonçalves. Embargado: Banco Fiat S/A, 1ª Câmara Cível. Rel. Marcos Antônio Souto Maior. Decisão unânime. Julgado em 23 de abril de 1998.

E também, no Colendo Tribunal de Justiça de São Paulo, que em reiterados julgamentos, já se pronunciou em acórdãos assim ementados:

CONSUMIDOR. COMPETÊNCIA. DECLINAÇÃO "EX OFFICIO". CONTRATO DE ADESÃO. ADMISSIBILIDADE.
"Inaplicabilidade da súmula 33/STJ. Abusividade da cláusula de eleição de foro, prejudicial à defesa do consumidor"
Com o devido respeito àqueles que se filiam a outro entendimento, a propositura da demanda perante foro diverso do domicílio do consorciado dificulta seu acesso à Justiça, quando não o impossibilita, não obstante esse direito seja garantido constitucionalmente (CF/88, art. 5º, XXXV), o que configura a abusividade da cláusula e a sua nulidade de pleno direito, à luz do CDC (Lei nº 8078/90)
É essa a posição que vem prevalecendo na melhor jurisprudência".
(TJSP, Ag. de Inst. 32959-4, Itú, Rel. Juiz Cesar, Julg. em 30/10/96, Fonte: Banco de Dados da Juruá).

E mais:

CONSÓRCIO. CONTRATO DE ADESÃO. COMPETÊNCIA.
"Direito do consumidor em ser demandado em seu domicílio. Competência absoluta. Lei 8.078/90 (CDC), art. 6º, VIII".
(TJSP, Ag de Inst. 29240, Linbs, Rel.: Des. Júlio Vidal, Julg. em 30/10/96, Fonte: Banco de Dados da Juruá).

E mais recentemente ao julgar o Resp nº 169169-SP, o Colendo Superior Tribunal de Justiça, reconhecendo em caso semelhante a incompetência absoluta do juízo, decidiu em acórdão da lavra do eminente relator, o Ministro Ruy Rosado assim ementado:

"COMPETÊNCIA. Foro de eleição, Contrato de Adesão. CDC. Consórcio. Bem alienado fiduciariamente. Ação de busca e apreensão.
- Pode o juiz declinar, de ofício, da sua competência para processar a ação de busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente, quando a propositura da ação no foro de eleição, na sede da empresa, dificultará sobremaneira a defesa do consorciado em juízo. Nova orientação da Segunda seção.
- Recurso não conhecido.

Vê-se, pois, a que legislação constitucional e infraconstitucional, como já se disse, não permite que a parte ajuíze ação onde bem entender, ao contrário, impõe limitações fortes e que devem ser observadas na prestação jurisdicional. Daí porque, não se pode olvidar que o ajuizamento da ação em outro foro que não seja o do domicílio do consumidor, viola o comando inserto no artigo 6º, incisos VII e VIII da Lei nº 8.078/90, que estabelecem os direitos básicos do Consumidor, quais sejam, o acesso aos órgãos judiciários e a facilitação da defesa de seus direitos, como bem salientou a decisão suso mencionada.

Por esta razão, a incompetência daí decorrente pode ser declarada de ofício e pode ser alegada, em qualquer tempo e grau de jurisdição, independentemente de exceção, porquanto, por ser norma de interesse público, atende aos comandos insertos no art. 5º, inc. LIII da Constituição Federal e no § 2º do artigo 113 do CPC.

4 . CONCLUSÃO:

Ante o exposto, e em consonância com os ensinamentos doutrinários, a legislação pátria e o acervo jurisprudencial aplicáveis ao tema em comento, podemos concluir que:

1) Os princípios do juiz natural, da supremacia da ordem pública e da magnitude da defesa do consumidor, são amplamente aplicadas aos contratos de adesão derrogando as cláusulas abusivas;
2) Pode e deve o juiz declarar de ofício, da sua competência para processar as ações de busca e apreensão, reintegração de posse decorrente de contrato de leasing, ou outra qualquer, quando a propositura da ação no foro de eleição, na sede da empresa estipulante, dificultará sobremaneira a defesa do réu em juízo;
3) Pode e deve o juiz de ofício reconhecer a nulidade de cláusula abusiva, tal como a que elege, em contrato de adesão, o foro do domicílio do estipulante, quando o seu cumprimento significar verdadeira negação de acesso à justiça;
4) A decisão judicial que reconhece a nulidade da cláusula abusiva e declara a incompetência de ofício, não ofende a Súmula 33 do STJ, porque a nulidade da cláusula faz desaparecer a razão pela qual a ação foi proposta no juízo que se dá por incompetente, enquanto a exigência de que a parte suscite a incompetência do foro está inviabilizada pelas mesmas circunstâncias que levaram ao reconhecimento da abusividade da eleição de foro;
5) Não é razoável que uma regra jurisprudencial, prevista para a generalidade das situações, continue sendo aplicada quando evidente o abuso e a negação de acesso à justiça.

5. BIBLIOGRAFIA:

1) DINIZ, Maria Helena. NORMA CONSTITUCIONAL E SEUS EFEITOS - Saraiva - São Paulo.
1989.
2) DOWER, Nelson Godoy Bassil.
CURSO MODERNO DE DIREITO CIVIL Direito das Obrigações - Vol. 3 - 2ª parte. Nelpa - Edições Jurídicas Ltda. São Paulo.
3) FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1998 - Saraiva - São Paulo.
4) GRECO FILHO, Vicente. DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO - Saraiva - São Paulo.
5) NERY JÚNIOR, Nelson . CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL COMENTADO E LEGISLAÇÃO PROCESSUAL CIVIL EXTRAVAGANTE EM VIGOR. ERT. São Paulo.


Josivaldo Félix de Oliveira
Juiz de Direito
Especialista em Direito Civil
Professor da Universidade Estadual da Paraíba e da Escola Superior da Magistratura

Especial para O NEÓFITO
Incluído no site em 31/08/99

 

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