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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.820/99
(Aurisvaldo Melo Sampaio – Promotor de Justiça no Estado da Bahia)
 

 

O Governo Federal vem de editar a Medida Provisória nº 1.820, de 5 de abril de 1999 (a publicação se deu no Diário Oficial da União do dia 06.04.1999), através da qual tenciona dar combate à prática da agiotagem. A despeito da recentidade da edição do aludido diploma – que sequer adquiriu ares de definitividade –, resolvemos lançarmo-nos à tarefa de revelar a nossa primeira impressão acerca do assunto, numa análise perfunctória, é verdade. Assumimos, conseqüentemente, o risco de emitir opinião temerária, todavia, preferimos arrostar o desafio a ficar, como o personagem da fábula de Florian, sentado à margem do rio, esperando comodamente a água passar, para atravessá-lo a pé enxuto.

1. A via eleita para regular a matéria

De início, convém censurar o tratamento da matéria através de Medida Provisória, expediente através do qual o Poder Executivo tem dado, amiudadamente, vazão à sua fúria legiferante, em menoscabo à competência própria do Congresso Nacional e, por isto mesmo, produzindo atos viciados de inconstitucionalidade formal. De fato, não vislumbramos existir na hipótese o requisito da urgência, o qual – ao lado da relevância –, justifica a edição da medida provisória com força de lei. É certo que o Supremo Tribunal Federal já decidiu que a urgência e a relevância previstas no artigo 62 da Constituição Federal têm caráter político, cuja apreciação fica, em princípio, por conta dos Poderes Executivo e Legislativo (ADIMC 1397 – DF). Não obstante, o que não se pode admitir é que, sob o pálio de tal entendimento, se editem Medidas Provisórias que, a olhos vistos, não são marcadas pelos apontados requisitos.

Com efeito, a questão central versada na Medida Provisória sob análise – os juros excessivos nos contratos de mútuo –, já está, há muito, regulada pelo direito pátrio, especificamente pelo Decreto nº 22.626, de 07 de abril de 1933 (Lei de Usura), e pela Lei nº 1.521, de 26.12.1951 (Lei dos Crimes Contra a Economia Popular), diplomas legais que, se de fato necessitam de aperfeiçoamentos, para adequá-los aos tempos presentes, melhor o seriam pelo processo legislativo de criação da lei ordinária, através dos agentes escolhidos pelos cidadãos para este mister.

Quanto aos lucros ou vantagens excessivos – outro tema saliente na MP 1.820 –, tratando-se de relação de consumo, as relações jurídicas mais freqüentes na nossa sociedade massificada, há tratamento adequado nos artigos 6º, V, e 51, IV, ambos do CDC. A MP em consideração, é verdade, excluiu expressamente da incidência do artigo 1º, inciso II, que trata dos lucros e vantagens patrimoniais excessivos, estipulados em razão da vulnerabilidade da parte, os negócios jurídicos disciplinados pelas legislações comercial e de defesa do consumidor, remanescendo as relações de natureza civil. Referentemente à vantagem exagerada nestas relações jurídicas, já se tem preocupado o Congresso Nacional, tanto que o Projeto de Código Civil que tramita naquela Casa há mais de duas décadas (Projeto nº 118/84 na Câmara e nº 634/75 no Senado) estabelece a anulabilidade do negócio jurídico por vício resultante de lesão (art. 171, II), prevendo, noutro dispositivo, que ocorre esta quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga à prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta (art. 157).

Ora, se a sociedade brasileira aguarda há tanto tempo ser regulada a matéria, provendo-a de meios jurídicos para obviar um problema cuja gênese não é recente, e estando a tramitar no Congresso – e já em fase adiantada – um Projeto que dá solução a tais conflitos, não se há falar em urgência, embora relevante o tema. Entendimento contrário equivale a admitir possa o Executivo operar, verbi gratia, uma verdadeira reforma no Código Civil através de medida provisória, com fundamento na senectude daquele Codex.

A edição descomedida de Medidas Provisórias tem ocasionado distorções evidentes. Segundo dados do Senado Federal, desde a adoção do instituto pelo nosso direito, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, até o final do ano de 1998, foram editadas nada menos que quatrocentas e cinqüenta e oito Medidas Provisórias novas. Se somadas estas às suas reedições, o número chega a duas mil, oitocentos e vinte e uma. A insegurança para as relações jurídicas revela-se com clareza diante da observação de que trezentas e seis reedições modificaram as Medidas reeditas. Em sede de relação de consumo, há situações aberrantes: a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, a qual sofreu considerável período de tramitação no Congresso Nacional, foi substancialmente alterada por Medida Provisória logo no dia seguinte à sua publicação, sendo que as reedições desta - ao tempo em que se escreve este artigo estamos na 11ª - modificaram outros dispositivos que restaram intocados pela primeira, assim como preceitos constantes dela mesma; por outro lado, os critérios para a fixação da anuidade cobrada pelos estabelecimentos de ensino pré-escolar, fundamental, médio e superior são disciplinados há mais de quatro anos por Medida Provisória, atualmente na sua sexagésima reedição.

2. A NULIDADE PREVISTA NO ARTIGO 1º

Logo no artigo 1º, inciso I, preceitua a MP que, nos contratos civis de mútuo, são nulas de pleno direito as estipulações usurárias, assim consideradas as que estabeleçam taxas de juros superiores às legalmente permitidas. Estas "taxas de juros legalmente permitidas" eqüivalem ao percentual de 12%, ou seja, o dobro da taxa legal (arts. 1.062 e 1.063 do CC), conforme se infere do artigo 1º do Decreto 22.626/33. Já o inciso II, do artigo referido, atribui a mesma nulidade de pleno direito, nos negócios jurídicos não disciplinados pelas legislações comercial e de defesa do consumidor, às estipulações que estabeleçam lucros ou vantagens patrimoniais excessivos, estipulados em situação de vulnerabilidade da parte. Estabelece ainda a norma que o juiz só deverá ajustar a taxa de juros à medida legal ou restabelecer o equilíbrio da relação contratual, ajustando os lucros ou vantagens patrimoniais ao valor corrente, ou, no caso do cumprimento da obrigação, ordenar a restituição, em dobro, mediante requerimento.

Ora, a expressão "nulidade de pleno direito" já é há muito conhecida pelo nosso ordenamento jurídico, utilizada no Código de Defesa do Consumidor (artigo 51, caput) que parece tê-la importado da CLT (art. 9º) ou do Decreto 22.626/33 (Lei de Usura, art. 11). Também a Lei 6.766/79 (Lei de Parcelamento do Solo Urbano, art. 39) utiliza a expressão, que é prestigiada pela doutrina. Consoante se tem entendido pacificamente, a nulidade de pleno direito a que se refere o artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor equivale à nulidade do Código Civil (art. 145), podendo, como tal, ser decretada de ofício pelo juiz que as conhecer (art. 146), em qualquer tempo e grau de jurisdição (assim os ensinamentos de Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, Comentários ao Código do Consumidor, 3ª ed., Aide, pp. 68/69; Arruda Alvim et alii, Código do Consumidor Comentado, ERT, 2ª ed., p. 250; Ruy Rosado de Aguiar et alii, A Proteção do Consumidor no Brasil e no Mercosul, Livraria do Advogado Editora, 1994, p. 27; Alberto do Amaral Junior et alii, Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, Saraiva, 1991, pp. 193/4; dentre muitos outros que esposam o mesmo entendimento). Ademais, a nulidade não é suprível ainda que a requerimento das partes. No particular, o Projeto de Código Civil que tramita no Congresso Nacional (acima aludido) mantém o mesmo tratamento dado à matéria pelo Código de 1916, vez que o artigo 168 daquele reproduz quase que literalmente a redação do artigo 146 deste.

No dizer sempre preciso do saudoso Mestre Orlando Gomes (Introdução ao Direito Civil, 8ª ed., Forense, pp. 403 a 406), a nulidade tem como caracteres as circunstâncias de ser imediata (invalidada o ato desde a sua formação), absoluta (pode ser alegada por qualquer interessado, pelo Ministério Público ou reconhecidas de ofício pelo juiz), incurável (porque as partes não podem saná-la, nem o juiz supri-la) e perpétua (não é atingida pela prescrição). A anulabilidade, opostamente, seria diferida, relativa, sanável e provisória.

Diante desses ensinamentos, que se há de entender quando a Medida Provisória condiciona o ajuste da taxa de juros à medida legal ou o restabelecimento do equilíbrio da relação contratual ao requerimento do interessado, mesmo diante de hipótese de nulidade de pleno direito? Parece-nos que a norma estudada confere ao lesado direito de ação sob forma de faculdade alternativa: postular a simples declaração da nulidade do ajuste lesivo, com a conseqüência de reconhecer-lhe privado de toda eficácia, ou o restabelecimento do equilíbrio entre as prestações. A solução encontrada pela Medida Provisória já era, aliás, preconizada de lege ferenda pelo Professor Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil, vol. I, 4ª ed., Forense, p. 379).

Embora deficiente a redação dos incisos do artigo 1º, parece ser esta a exegese que melhor se ajusta aos mais comezinhos postulados hermenêuticos, como o que orienta o intérprete a adotar a interpretação que evite o absurdo (cf. Paula Batista, apud Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 8ª ed., Livraria Freitas Bastos, S. A., p. 178). E com efeito, entendimento diferente – no sentido de não conferir a norma faculdade alternativa –, conduziria à conclusão de estarmos diante de nulidade pleno jure que só há de ser reconhecida mediante requerimento, podendo, por conseguinte, ser convalidada pela vontade das partes, no particular confundindo-se com a anulabilidade.

Como se disse, em face de cláusula lesionária, poderá o prejudicado, alternativamente, socorrer-se de ação de nulidade ou postular o restabelecimento do equilíbrio das prestações. Todavia, cuidando-se de cláusula nula de pleno direito, diante da ausência de manifestação do lesado, deverá o juiz que conhecer do ato ou de seus efeitos pronunciar a nulidade ex oficio, não lhe sendo lícito, neste caso, restabelecer o equilíbrio das prestações.

Com o dispositivo sob análise, permite a MP 1820/99 que o juiz, se a isto instado pelo prejudicado, exerça função construtiva no controle das cláusulas contratuais que especifica, sob este aspecto introduzindo inovação em relação ao Código de 1916, e mesmo em relação ao Projeto de Código Civil de 1975 (ainda tramitando no Congresso), o qual, no particular, comina a sanção de anulabilidade para o negócio jurídico viciado pela lesão, mas não outorga ao lesado a faculdade de pedir o restabelecimento do equilíbrio das prestações – já aí se vê que, no tocante à laesio enormis, está o Projeto aludido a carecer de atualização, mas não só neste ponto, como noutros em relação aos quais a edição do Código de Defesa do Consumidor introduziu conceitos novos (a respeito, preciso o posicionamento do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr., in Aspectos do Código de Defesa do Consumidor, AJURIS, v. 52, p.167). Ao ajustar a taxa de juros à medida legal ou o lucro ou vantagem ao valor corrente, estará o juiz estipulando novas bases para o contrato cujas cláusulas apreciar. Exercerá atividade criadora, modificando importante elemento da relação jurídica, vale dizer, o preço.

Entretanto, a faculdade ora outorgada ao contratante civil não representa propriamente uma novidade no direito brasileiro. De fato, o CDC já prevê solução semelhante, quando possibilita, no artigo 5º, V, a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais, cláusulas que são, por força do artigo 51, IV, do mesmo Código, nulas de pleno direito. No dizer da Professora gaúcha Cláudia Lima Marques, o mencionado artigo do CDC – o mesmo se pode dizer do artigo 1º da MP 1820/99 – limita o princípio clássico de que o contrato não pode ser modificado ou suprimido senão através de uma nova manifestação volitiva das mesmas partes contratantes (Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 2ª ed., ERT, p. 93). Temos aqui um claro exemplo do intervencionismo do Estado nas relações contratuais, atuando através do Poder Judiciário para corrigir negócio jurídico privado com o escopo de alcançar a justiça contratual.

2.1. Similitude com soluções encontradas por legislações doutras plagas

Também no direito comparado há notícias da adoção de solução semelhante à encontrada pela Medida Provisória, a exemplo do Código Civil Argentino, reformado em 1968, que no artigo 954 autoriza à vítima demandar a nulidade ou modificação dos atos jurídicos "cuando una de las partes explotando la necesidad, ligereza o inexperiencia de la otra, obtuviera por medio de ellos una ventaja patrimonial evidentemente desproporcionada y sin justificación". Naquele país, o autor poderá demandar a nulidade ou um reajuste eqüitativo do contrato, todavia, a ação de nulidade se transformará em ação de reajuste se isto (o reajuste) for oferecido pelo réu ao contestar a demanda.

A solução adotada pelo legislador português é muito semelhante à encontrada pelo argentino, tanto é assim que o Código Civil Luso de 1966, após estabelecer, no artigo 282º, ser anulável, por usura, o "negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados", prevê, no artigo seguinte, que o lesado, em lugar da anulação, poderá requerer a modificação do negócio segundos juízos de equidade. Também aqui, requerida a anulação, a parte contrária tem a faculdade de opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do negócio.

3. A nulidade prevista no artigo 2º

Estabelece o artigo 2º que são nulas de pleno direito as disposições contratuais que, com o pretexto de conferir ou transmitir direitos, são celebradas para garantir, direta ou indiretamente, contratos civis de mútuo com estipulações usurárias. Cuida-se aqui de proteger o patrimônio da vítima do contrato usurário contra estipulações que visem a assegurar o proveito do ato criminoso - não é despiciendo lembrar que usura é crime, à luz do artigo 4º, "a", da Lei nº 1.521/51. Cuidam-se de avenças imorais, as quais, na prática, temos visto freqüentemente travestidas de promessa irrevogável de venda de imóvel (por vezes o único imóvel da vítima, que o utiliza para sua própria moradia), venda de automóvel, ou alienação de direito de uso de linha telefônica, mas que pode paramentar-se com o aspecto de outro negócio jurídico em tese lícito.

Contrariamente ao que se disse com relação à nulidade prevista no artigo 1º, aqui não se prevê a possibilidade do manejo de ação de modificação da cláusula contratual. A disposição é nula de pleno direito e, como tal, há de ser declarada pelo juiz, seja ele provocado ou mesmo de ofício, a qualquer tempo e grau de jurisdição.

4. A cláusula geral da lesão enorme

À Medida Provisória sob comento, precisamente ao seu artigo 1º, inciso II e parágrafo único, cabe o mérito de haver resgatado, de forma explícita, a cláusula geral da lesão enorme nos contratos civis no direito brasileiro, estabelecendo parâmetro de equilíbrio entre as prestações.

Realmente, é controversa a tese que propugna haver o direito positivo brasileiro adotado a lesão como hipótese de invalidade dos contratos. Embora certo que o Código Civil a baniu do nosso direito, propugna a doutrina e parte da jurisprudência que Leis posteriores, em particular a Lei de Economia Popular (inicialmente o Decreto-Lei nº 869, de 18 de novembro de 1938, e depois Lei 1.521, de 26.12.1951), a consagraram sob a denominação de usura real. Neste sentido, somente para citar alguns exemplos, as posições de Arnoldo Wald (Obrigações e Contratos, ERT, 13ª ed., pp. 287/9) e Caio Mário da Silva Pereira (Op. e p. cits). Também alguns Tribunais respaldam o entendimento, como o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em acórdão unânime da lavra do Desembargador Basileu Ribeiro (RJTJRJ 47/1982). Arnaldo Rizzardo, também defensor da tese, informa que o posicionamento recebeu acolhida no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, citando acórdão nesse sentido da lavra do Professor e Desembargador gaúcho Oscar Gomes Nunes (Da Ineficácia dos Atos Jurídicos e da Lesão no Direito, Forense, 1983, p. 102).

A verdade é que a Lei nº 1.521/51 tem natureza penal, definindo como crime de usura real obter, ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida. Ora, argumentam os corifeus deste entendimento, se a conduta é criminosa, é nulo o contrato que contenha estipulação desta natureza, pela só razão de que o artigo 145, II, do Código Civil, estabelece tal sanção para o ato jurídico que possua objeto ilícito.

Nada obstante a força do argumento e a autoridade dos seus defensores, a tese encontrou resistência na jurisprudência, sobretudo no Pretório Excelso, o qual, sob a vigência da Constituição de 1967, que lhe outorgava competência para julgar, mediante recurso extraordinário, matéria relacionada à interpretação de lei federal, decidiu, reformando decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que "desde que o Código Civil regulou a matéria relativa aos atos jurídicos e especificou os vícios de consentimento, excluindo a lesão, é evidente que esta não constitui mais motivo de anulação dos contratos" (decisão unânime da Primeira Turma do STF, em 26/10/1976, RE 82971-RS, Rel. Min. Cunha Peixoto, in RTJ 84/218). Posteriormente, o Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, louvando-se na citada decisão do Supremo, manifestou adesão ao entendimento (decisão unânime da Segunda Câmara Cível do TARGS na APC 184040103, Relator Cacildo de Andrade Xavier, decisão proferida em 30.10.1985, in Jurisprudência Informatizada Saraiva).

Em ocasião bem mais recente, o STJ, agora o responsável pelo "controle da inteireza positiva, da autoridade e da uniformidade de interpretação da lei federal" (a expressão é de José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo, 8ª ed. Revista, Malheiros, p. 490), pela unanimidade dos integrantes da sua Terceira Turma, admitiu a acolhida, pelo nosso direito, do instituto da lesão, embora, por maioria de votos, prevaleceu o entendimento de que o instituto não era aplicável ao caso concreto, eis que inexistentes elementos subjetivos imprescindíveis à sua caracterização (decisão proferida no REsp. 33883-MG em 30.05.1994, acórdão lavrado pelo Ministro Costa Leite, autor do voto vencedor, in RSTJ 64/198).

Com a edição da novel legislação, parece-nos que há de cessar a controvérsia, ficando agora claro que o direito positivo brasileiro adotou o instituto da lesão em sede de relações jurídicas civis.

4.1. Elementos da disposição contratual lesionária

A questão relativa aos elementos caracterizadores da cláusula lesionária foi objeto de acerba discussão, no passado recente, entre dois luminares da cultura jurídica nacional. De um lado, o ilustre Professor da terra-berço do Brasil, Orlando Gomes, um ferrenho opositor do instituto, advogava que, no figurino das Ordenações, à configuração da lesão bastava a desproporção das obrigações (critério puramente objetivo). Na medida em que elementos subjetivos impregnassem o instituto, ter-se-ia a figura da lesão qualificada, a qual se confunde com a "usura especial" prevista no artigo 138 do BGB. De tais considerações, aliás, o Mestre dos Contratos concluia pela obsolescência do instituto, que fora substituído pela usura material (Transformações Gerais do Direito das Obrigações, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1967, pp. 29 e seguintes).

Com outra compreensão do tema, o também Professor e não menos ilustre Caio Mário da Silva Pereira (Lesão nos Contratos, Companhia Editora Forense, Rio, 2ª ed., p. 195), defende, com arrimo nos ensinos de De Page, que não é suficiente, para o invalidar, que um contrato seja lesionário, ou seja, que um dos contratantes aufira vantagem desproporcional, mas que haja, também, "especulação em torno da situação particular que levou o outro a celebrar o contrato que lhe é tão desfavorável" – aí o elemento subjetivo.

No Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do REsp. 33883-MG, acima aludido, prevaleceu o entendimento de que a lesão, nos termos em que é acolhida em nosso direito (entenda-se, pela Lei nº 1.521/51), exige que haja abuso de premente necessidade, inexperiência ou leviandade da outra parte (elemento subjetivo). O litígio posto a exame daquela Colenda Corte discutia lucro excessivo em contrato de empreitada, superior a um quinto do valor do contrato. Para o Relator, Ministro Cláudio Santos, tal margem de lucro era o quantum satis para viciar o contrato, para a maioria da Terceira Turma (o escore da votação foi de 3 a 2), todavia, inspirada pelo voto do Ministro Costa Leite, faltava ao caso o elemento subjetivo.

A verdade é que, segundo nos parece, influências históricas modificaram o instituto da lesão, de tal forma que esta não mais subsiste na sua feição original. Assim pensa Sílvio Rodrigues, que após observar, argutamente, que a lesão, conforme foi acolhida pelas legislações modernas (art. 138 do Código Alemão, art. 21 do Código Federal das Obrigações da Suíça, art. 1.448 do Código Civil Italiano e art. 4º da nossa Lei dos Crimes contra a Economia Popular), difere profundamente do instituto que emergiu da Lei Segunda de Diocleciano e Maximiliano, conclui que "Não é altamente relevante verificar se se trata do mesmo ou de outro instituto, pois, na primeira hipótese, houve evolução no conceito de uma instituição antiga; na segunda, houve o advento de uma nova concepção para remediar os defeitos oriundos de uma idêntica relação humana" (Dos Vícios do Consentimento, Saraiva, 1979, p. 218).

Contra a alegada obsolescência do instituto, insurge-se Wilson de Andrade Brandão (apud José Luiz Bayeux Filho, O Ressurgimento da Rescisão Lesionária ou por Usura Real no Direito Brasileiro, in Revista de Direito do Consumidor, p. 88), o qual, pretendendo fazer reparos à doutrina de Orlando Gomes, afirma que o conceito moderno de lesão "em nome de princípios morais inescusáveis, instrumentaliza a justiça contratual, o que demonstra a sua permanente prestimosidade", arrematando conclui, em seguida, que não se trata de conceito caduco. Para Luis O. Andorno, "El retorno de la figura de la lesión a diversos ordanamientos legales, constituye una nueva instancia en el proceso de socialización del derecho, como contrapartida a las ideas individualistas decimonónicas" (La Lesion, in Revista de Direito Civil, 18/22).

Deixando superada a discussão doutrinária, a MP 1820, às escâncaras, diferentemente do que dispõem os artigos 6º, V, primeira parte, e 51, IV, ambos do CDC, os quais continuam a regular a matéria no tocante às relações de consumo, exige, para a imposição da sanção de nulidade, a coexistência de elementos objetivo e subjetivo. O CDC, trilhando outra senda, exige apenas que haja "prestações desproporcionais" ou "desvantagem exagerada" para o consumidor, deixando claro que, para a caracterização da cláusula abusiva, nula de pleno direito, basta a existência do elemento objetivo. Neste passo, convém salientar que juristas da maior envergadura vislumbram nos mencionados artigos do Código do Consumidor o instituto da lesão, como o Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior (Aspectos do Código de Defesa do Consumidor, aula inaugural do Curso de Direito da Faculdade de Direito da UFRGS, proferida em 26 de março de 1991, in AJURIS, nº 52, julho de 1991, pp. 178/179) e Caio Mário da Silva Pereira, este na mais recente edição do seu livro Lesão nos Contratos (Forense, 1993, 3ª ed., p. 212).

4.1.1. O elemento objetivo

 

Consiste o elemento objetivo da lesão na desproporção entre as prestações das partes contratantes, de tal forma que uma delas aufira lucro ou vantagem patrimoniais excessivos. Temos aqui conceito jurídico indeterminado, deixando-se entregue ao prudente arbítrio do juiz, em cada caso concreto, a aferição dessa desproporção, vale dizer, estabelecer a existência ou inexistência da lesão.

A Medida Provisória em estudo, ao abster-se de determinar o quantum do lucro ou vantagem patrimonial que considera excessivo, afastou-se do sistema tarifado adotado pela Lei 1.521/51, que estabelece o limite de um quinto do valor corrente ou justo da prestação; o que excede disto é considerado usura real. Aproximou-se, por outro lado, do projeto do Código Civil que tramita no Congresso, o qual alude a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.

Embora as legislações alienígenas não sejam uniformes nos critérios utilizados para definir o elemento objetivo da lesão, parece preponderar aquele adotado pela Medida em estudo. Assim, o Código Civil Alemão (§ 138) refere-se a desproporção evidente, sem quantificá-la, todavia; O Código Português alude simplesmente a benefícios excessivos ou injustificados; e o Argentino a uma "una ventaja patrimonial evidentemente desproporcionada y sin justificación".

4.1.2. O elemento subjetivo

O elemento subjetivo, repudiado por alguns sob o argumento de que exorbitaria do conceito clássico do instituto, consiste na situação de vulnerabilidade da parte. Aqui, o alcance do termo vulnerabilidade é distinto daquele que lhe empresta o Código de Defesa do Consumidor. Para o CDC, a vulnerabilidade do consumidor é princípio informador da Política Nacional das Relações de Consumo. Assim, tem-se entendido que a vulnerabilidade é "um traço universal de todos os consumidores, ricos ou pobres, educadores ou ignorantes, crédulos ou espertos" (cf. Antonio Herman de Vasconcelos e Benjamin et alii, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, p. 8, Forense Universitária, 1991). Para Arruda Alvim, "A vulnerabilidade do consumidor é incindível do contexto das relações de consumo e independe de seu grau cultural ou econômico, não admitindo prova em contrário, por não se tratar de mera presunção legal" (Arruda Alvim et alii, Código do Consumidor Comentado, ERT, 2ª ed., p. 45). Diferentemente do que ocorre naquele Código, no contexto das relações jurídicas disciplinadas pelo artigo 1º, ora em estudo, relações civis, é bom repetir, a vulnerabilidade não se presume, há de ser demonstrada no caso concreto.

Vulnerável é o ponto pelo qual alguém pode ser atacado (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Editora Nova Fronteira, 2ª ed., p. 1.792). Há aqui outro conceito aberto que há de ser integrado casuisticamente pelo operador do direito. Vulnerabilidade, obviamente, não é sinônimo de pobreza ou ignorância, embora estes fatores possam ser invocados, no caso concreto, como caracterizadores daquele estado. Vulnerável era Esaú – para citar um exemplo clássico – que vendeu os seus direitos de primogenitura ao irmão Jacó pelo irrisório preço de um prato de lentilhas, premido pela fome intensa (a história dos filhos de Isaque está registrada na Bíblia Sagrada, Livro de Gênesis, capítulos 25 e seguintes).

A vulnerabilidade, como dissemos, há de ver apurada em face do negócio, nela estando inserida, obviamente, as noções de necessidade, inexperiência ou leviandade previstas no artigo 4º, "b", da Lei nº 1.521/51.

À Luz da doutrina estrangeira e dos ditames da Lei nº 1.521, propugnam os juristas patrícios que o elemento subjetivo cindi-se em duas vertentes: a primeira relacionada ao lesado – seu estado de necessidade, inexperiência ou ligeireza –, e outra ao autor da lesão – a exploração deste estado (Wilson de Andrade Brandão, Lesão e Contrato no Direito Brasileiro, 3ª ed., Aide). Neste diapasão, lesão só haveria se, aliados ao elemento objetivo, ocorressem ambos os elementos subjetivos. Reprime o artigo 4º, "b", da Lei 1.521/51, o ato de alguém obter, ou estipular, em qualquer contrato, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação, abusando de premente necessidade, inexperiência ou leviandade da outra parte; daí falar-se, na órbita penal, em dolo de aproveitamento. Disto resulta que, diante da dificuldade natural para a demonstração do elemento subjetivo da parte do agente lesante, tem-se tornado não raro difícil o manejo do instituto, e por vezes obstaculizada por completo a sua aplicação.

A Medida Provisória sob análise afastou-se desta linha. Aqui não se perquire do animus, daquele a quem beneficia a cláusula lesionária, mas tão-somente se era vulnerável a parte a quem a avença prejudica. Se tal ocorreu, nula será a disposição. Parece estar a prevalecer a doutrina do Professor piauiense Wilson de Andrade Brandão, para quem "essa compreensão do elemento subjetivo deixa bem clara uma tendência moderna da doutrina e da legislação de abandonarem a idéia de abuso da necessidade, da inexperiência ou ligeireza, para verem na lesão a ausência da liberdade de consentimento do prejudicado, reconhecendo-lhe a natureza de vício da vontade" (Lesão e Contrato no Direito Brasileiro, Aide, 3ª ed., p. 251). No particular, mesmo tratamento ao assunto confere o projeto do novo Código Civil.

5. Critérios aferidores do lucro ou vantagem excessivos

Para a configuração do lucro ou vantagens excessivos, reprimidos pelo inciso II do artigo 1º, estabeleceu-se no parágrafo único do mesmo artigo que hão de ser considerados a vontade das partes, as circunstâncias da celebração do contrato, o seu conteúdo e natureza, a origem das correspondentes obrigações, as práticas de mercado e as taxas de juros legalmente permitidas. Diferentemente do que consagrou a redação publicada, a proposta encaminhada pelo MJ fazia alusão ao "interesse das partes", expressão que buscou no artigo 51, § 1º, III, do Código de Defesa do Consumidor, à "natureza e o conteúdo do contrato" e "outras circunstâncias peculiares ao caso".

Deveras, neste, como noutros pontos, a MP nº 1.820/99 consiste numa mutilação da proposta encaminhada à Presidência da República pelo Ministério da Justiça no final do mês de março de 1999 e alardeada – já antes da sua edição e de sofrer as mutações que lhe impuseram os assessores da Presidência – como panacéia para o problema da agiotagem que vitima grande contingente de consumidores, inclusive muitos servidores da administração pública, conforme amplamente divulgado pelos meios de comunicação.

Representa uma involução ao tratamento dispensado ao contratante vulnerável pelo CDC estabelecer-se que, para a configuração do lucro ou vantagem excessivos, há de ser consultada a "vontade das partes", numa homenagem, ao que parece, ao princípio da autonomia da vontade, do qual decorre o dogma da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda). A expressão nos parece equívoca – e capaz de enfraquecer a tutela dispensada ao contratante civil vulnerável –, até porque ninguém contrata outorgando vantagem excessiva à outra parte porque quer, mas porque as circunstâncias o levaram a isso, porque era premente a sua necessidade ou elevado o seu grau de inexperiência ou leviandade, vale dizer, sua vulnerabilidade. Melhor andaria a norma se utilizasse a expressão já consagrada pelo CDC e contida na proposta ministerial "interesse das partes". Configurado o estado de vulnerabilidade do contratante lesado, esta circunstância, por si só, já vicia a sua vontade – servimo-nos aqui dos ensinos de Wilson de Andrade Brandão –, sendo, portanto, incoerente perquirir-se esta mesma vontade viciada para averiguar se configurado o lucro ou vantagem excessivos. Aqui há de ser cauteloso o trabalho do aplicador do direito, a fim de não derruir, numa interpretação voluntarista, a proteção que a Medida Provisória, no seu conjunto, quis proporcionar ao contratante lesado.

Outro critério aferidor do lucro ou vantagem patrimonial excessivos são "as práticas de mercado". Ora, num País onde o mercado freqüentemente consagra o abuso, a expressão, se levada a interpretação literal, equivale quase que a afirmar que a lesão ao contratante vulnerável será lícita desde que o mercado consagre tal prática. O direito é a ciência do dever-ser, não do ser. Em se tratando da proteção ao contratante mais fraco, deve o direito corrigir as condutas desviantes do patamar ético exigido pela sociedade, não tutelá-las, desde que corrente a sua prática. Aqui caberá mais uma vez o trabalho do juiz, temperando, cum grano salis, a expressão em apreço, para somente levar em consideração as práticas do mercado após sopesados os demais critérios apresentados pelo parágrafo único.

6. A inaplicabilidade do artigo 1º aos contratos de consumo

Importante realçar, para afastar dúvidas, que o artigo 1º, seus incisos e parágrafo único, não se aplicam às relações de consumo, as quais, no tocante aos temas regulados pelo referido artigo, continuam sendo regidas pela legislação anterior (CDC, CC, Decreto 22.626/33 e Lei 1.521/51). Sim, porque se é certo que o inciso II e o parágrafo único do artigo 1º, não se aplicam às relações de consumo, porque assim consignado com clareza na norma, parece mesmo inequívoco que o inciso I também não esteja destinado a disciplinar estas relações jurídicas, já que ali expresso que sua finalidade é regular os juros nos contratos civis de mútuo. Como se sabe, a Lei não contém palavras inúteis, logo, quando aludiu aos contratos civis de mútuo, excluiu os contratos de consumo. Seria contrato civil de mútuo, por exemplo, o empréstimo de coisa fungível celebrada entre dois indivíduos em que o mutuante não se enquadre na definição de fornecedor do artigo 3º, caput, do CDC. Com diferentes palavras, ambos os incisos do artigo 1º excluem do seu alcance os contratos de consumo.

Conforme é cediço – exsurge do artigo 3º, caput, do CDC – um dos elementos caracterizadores da figura do fornecedor é a profissionalidade. Neste diapasão, a figura do agiota habitual enquadra-se no conceito de fornecedor. A ilicitude da sua atividade não desfigura a sua condição de fornecedor, assim como é fornecedor aquele que – também ilicitamente – vende mercadoria imprópria para o consumo. Por outro lado, a sua atividade – crédito – constitui serviço nos termos do artigo 3º, § 2º, do CDC. Decorre disto que todas as vezes que o agiota empresta dinheiro a tomador que o utilizará como destinatário final, estabelece relação de consumo, a qual não é alcançada pelo artigo 1º, inciso I, sob consideração. Se a intenção do Poder Executivo era alcançar esta atividade, disse coisa diferente daquilo que pretendia.

Contra o entendimento que esposamos é viável argüir que o direito do consumidor tem caráter pluridisciplinar (na expressão de Jean Calais-Auloy, in Droit de la Consommation, 2ª ed., Dalloz, Paris, 1986, p. 21) e que as leis civis – tanto quanto as comerciais – são aplicáveis às relações de consumo. Ademais, dir-se-ia, é verdade consabida que os contratos de consumo não diferem daqueles do direito comum, exceto pelo aspecto funcional. Sob o prisma formal, o contrato de mútuo é um só, seja ele celebrado entre partes juridicamente iguais (contrato civil de mútuo) ou entre um profissional e alguém que vá utilizar a coisa emprestada, notadamente dinheiro, como destinatário final (contrato de consumo). Pode-se objetar, ainda, que o contrato de mútuo é, essencialmente, um contrato civil, já que previsto naquele Código, com a peculiaridade de que, na medida em que vincule um fornecedor a um consumidor, devem prevalecer as normas que regem o microssistema das relações de consumo.

Nenhuma das premissas acima elencadas, embora todas verdadeiras, demovem-nos do nosso convencimento, se não mesmo reforçam-no. Invocando, mais uma vez, o princípio verba cum effectu sunt accipienda, podemos asseverar que a utilização da expressão "contratos civis de mútuo" tem a função de restringir o alcance da norma, para excluir deste os contratos mercantis e de consumo. Quisesse o redator da MP permitir a sua incidência a quaisquer contratos de mútuo, omitiria a palavra "civil" e pronto, estaria resolvida a questão. Mas o vocábulo não está ali por acaso, redundantemente.

Pode-se, ainda, cogitar que quis o Executivo excluir apenas os contratos mercantis de mútuo, previstos no artigo 247 do Código Comercial. Se assim quis, suas palavras foram além da sua intenção, já que o contrato de mútuo celebrado entre um fornecedor e um consumidor é, igualmente, um contrato mercantil, já que figura num dos pólos da relação jurídica um comerciante do crédito, cuja atividade envolve intermediação, habitualidade e lucro, elementos da atividade mercantil.

Atentando-se para o espírito que animou a redação da Medida Provisória sob exame, é admissível que alguns concluam que procurou-se, com a expressão "contratos civis de mútuo", simplesmente excluir a atividade bancária do seu alcance. A expressão citada teria sido utilizada para distinguir tais contratos do empréstimo bancário, que é mútuo também, só que concedido por uma instituição integrante do sistema financeiro nacional, regulada pela Lei nº 4.595, de 31.12.64. Segundo Carlos Gilberto Villegas, "El contrato de mutuo bancario es aquel por el cual um banco transfiere a un cliente cierta cantidad de dinero en propiedad, y éste se obliga a devolverla en un plazo determinado, com más los intereses convenidos" (Compendio jurídico, técnico y prático de la actividad bancaria, Buenos Aires, Depalma, 1985, vol. I, p. 496). Tal raciocínio, data venia, é imperfeito porque tais contratos – bancários – já são expressamente excluídos pelo artigo 4º, desnecessitando que aqui também o fossem.

Nem se perquira da intenção do autor da MP e se afirme que o seu escopo era atingir exatamente os contratos que regem os negócios jurídicos com características de relações de consumo. Ora, a afirmação afasta-se da realidade, pois o inciso II do artigo 1º, que trata da lesão, expressamente excluiu da sua incidência os negócios jurídicos disciplinados "pela legislação de defesa do consumidor".

Efetuando-se uma análise histórica da Medida Provisória sob comento, parece ter ela sofrido uma tal degenerescência em seguida ao seu encaminhamento à Presidência da República, que perdeu completamente o alcance que lhe quiseram dar os seus redatores iniciais. Ora, a redação primeva da MP – a que foi proposta pelo Ministério da Justiça –, dentre outras diferenças em relação ao texto publicado no Diário Oficial do dia 06 de abril, não restringia o alcance do inciso I do artigo 1º aos contratos civis de mútuo, nem o inciso II excluía da sua incidência os negócios jurídicos disciplinados pelas legislações comercial e de defesa do consumidor. Parecia claro que a intenção era renovar o combate à prática da agiotagem – aquela cometida com características de relação de consumo –, ao menos isto foi alardeado amplamente nos meios de comunicação. Entretanto, inobstante a pirotecnia que envolveu o anúncio da proposta encaminhada à Presidência, os seus efeitos, quando da oficialização da Medida, foram mais estreitos que os pretendidos.

Reconhecemos, por outro lado, que a discussão sobre a incidência ou não do inciso I, sob consideração, aos contratos de mútuo com características de contratos de consumo tem reduzido efeito prático, já que a cláusula que impuser, em tais avenças, taxas de juros superiores ao percentual legalmente permitido será sempre nula de pleno direito, seja por força do dispositivo referido, ou em virtude do que dispõe o artigo 11 do Decreto 22.626, de 7 de abril de 1933.

7. A inversão do ônus da prova

Estabelece o artigo 4º que nas ações que visem à declaração de nulidade de estipulações com base no disposto na MP sob análise, incumbirá ao credor ou beneficiário do negócio – conforme se trate de cláusula usurária ou lesionária, respectivamente – o ônus de provar a regularidade jurídica das respectivas obrigações, sempre que demonstrada pelo prejudicado, ou pelas circunstâncias do caso a verossimilhança da alegação. Trata-se de norma que excepciona a regra geral do artigo 333 do Código de Processo Civil, que impõe o ônus da prova ao autor quanto ao fato constitutivo do seu direito.

Constitui, a medida ora analisada, novidade em sede de relação jurídica civil, embora já prevista no artigo 6º, VI, do CDC. Com efeito, vemos prevalecer numa norma destinada a regular relações jurídicas civis, princípio inaugurado no direito brasileiro pelo Código de Defesa do Consumidor. O fundamento da inversão será, neste caso, unicamente, a verossimilhança da alegação, afastada que foi a segunda hipótese cogitada pelo CDC, a hipossuficiência da parte lesada (ou do consumidor, na sistemática daquele Codex).

A inversão aqui cogitada é ope judicis. Não se trata de medida automática, mas dependente de avaliação judicial, em face do caso concreto, o que não quer dizer, obviamente, que estejam reservados ao magistrado poderes discricionários para concedê-la ou negá-la: verificada a presença do pressuposto que a autoriza, é de rigor o pronunciamento judicial ordenando a inversão (interpretando o artigo 6º, VI, do CDC, assim se pronunciam Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, Responsabilidade Civil no Código de Defesa do Consumidor, Aide, 1ª ed., p. 134; Antonio Gidi, Aspectos da inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor, RDC 13/33; Carlos Roberto Barbosa Moreira, Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor, RDC 22/135; dentre outros). Por outro lado, demonstrada pelo prejudicado ou exsurgindo das circunstâncias do caso a verossimilhança da alegação, a inversão independe de requerimento do autor, podendo ser proferida ex officio.

7.1. O momento da inversão do ônus da prova

Questão instigante refere-se ao momento oportuno para o pronunciamento judicial afirmando que inverterá o ônus da prova. Na Medida Provisória sob exame, assim como no CDC, fez-se silêncio quanto ao assunto. A Professor Kazuo Watanabe, com a autoridade de ser um dos autores do anteprojeto que resultou no CDC, sustenta que, sendo as regras de distribuição do ônus da prova regras de juízo – ou de julgamento –, orientadoras do juiz, verificada situação de non liquet, acerca da decisão a ser dada à causa, deverão ser aplicadas no momento do julgamento da demanda (Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto, 5ª ed., Forense Universitária, p. 619). Aduz, ainda, que a inversão em momento anterior importaria em pré-julgamento. O mesmo entendimento esposa o Procurador de Justiça Paulista Nelson Nery Junior, acrescentando que "essa regra é fator indicativo para as partes, de que deverão se desincumbir dos ônus sob pena de ficarem em desvantagem processual" (Código de Processo Civil Comentado, 3ª ed., ERT, pp. 1354/1355, nota 18 ao artigo 6º do CDC).

Com a devida vênia dos brilhantes juristas paulistas, parece-nos mais condizente com os princípios constitucionais que norteiam o processo civil, precisamente os princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da CF), o entendimento segundo o qual o pronunciamento judicial quanto à inversão deve se dar até o instante do saneamento do processo, ou, sendo exato, por ocasião do saneamento, momento em que cabe ao magistrado fixar os pontos controvertidos, decidir as questões processuais pendentes e determinar as provas (art. 331, § 2º) .

Com efeito, a regra geral é de que cabe ao autor o ônus de provar os fatos constitutivos do seu direito (art. 333, I, do CPC). Em princípio – inexistindo pronunciamento judicial prevendo o contrário –, esta regra norteará a orientação das partes no tocante à produção probatória. Ora, se no momento de julgar o magistrado, simultaneamente, decidir inverter o ônus da prova, tal conduta, surpreendendo o réu, importará na imposição de uma sanção a este por ter-se omitido de fazer algo que não sabia ser seu dever realizar – aliás, de fato não era -, a prova da inexistência do fato constitutivo do direito do autor.

A mera possibilidade da inversão, em face da previsão legal, não basta para garantir ao réu o exercício da ampla defesa, tendo em vista que, no caso concreto, não era certo que fosse determinada a inversão. É necessário pronunciamento judicial expresso, a fim de que o réu possa, ciente da decisão do magistrado, produzir prova da inexistência do fato constitutivo do direito da parte contrária, fato este cujo ônus de provar a existência, segundo a regra geral do CDC, competiria ao autor. Mais ainda, deverá o réu tomar ciência oportuna da decisão de inversão do ônus da prova para, querendo, combatê-la, manejando para isto recurso de agravo de instrumento, eis que se trata de decisão interlocutória (este é o entendimento de Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, in Comentários ao Código do Consumidor, Aide, 3ª ed., p. 91); inexistindo impugnação, a matéria fica preclusa (Súmula 424 do STF).

Também não acode à tese contrária à que aqui esposamos a alegativa de que o pronunciamento da inversão em momento anterior à sentença importaria em pré-julgamento da causa, eis que ninguém afirma haver pré-julgado aquele magistrado que, com arrimo no artigo 273 do CPC, admite, numa cognição sumária, a verossimilhança da alegação para antecipar os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial.

Parece-nos que está a prevalecer na jurisprudência a tese que ora abraçamos, tanto assim que a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, sem discrepância de votos, decidiu que "Quando, a critério do juiz, configurar-se a hipótese de inversão do ônus da prova, nos termos do art. 6.º, VIII, do CDC, sob pena de nulidade, é mister a prévia determinação à parte, em desfavor de quem se inverte o ônus, para que prove o fato controvertido. A inversão, sem essa cautela processual, implicará em surpresa e cerceamento de defesa." (RDC 14/114). Também o Tribunal de Justiça de São Paulo tem prestigiado o mesmo entendimento, afirmando, através da sua Quarta Câmara de Direito Público, que "o deferimento da inversão do ônus da prova deverá ocorrer entre o ajuizamento da demanda e o despacho saneador, sob pena de se configurar prejuízo para a defesa do réu" (Agravo de Instrumento 014.305-5/8, rel. Des. José Geraldo de Jacobina Rabello, j. em 5.9.1996, apud Kazuo Watanabe et alii, obra citada, p. 620).

Na doutrina, além de Tupinambá Miguel Castro do Nascimento (obra e página citadas acima), compartilham do mesmo entendimento Carlos Roberto Barbosa Moreira (Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor, RDC 22/135 e seguintes), João Batista de Almeida (A proteção jurídica do consumidor, Saraiva, 1993, p. 80) e Teresa Arruda Alvim (Noções gerais sobre o processo no Código do Consumidor, in RDC 10/248).

Problema surgirá quando apenas ao final do instrução aperceber-se o juiz da existência dos pressupostos autorizadores da inversão o ônus da prova. Neste caso, parece-nos que razão assiste a Teresa Arruda Alvim, para quem "a instrução será reaberta, em conformidade com a regra que determina haja inversão do ônus da prova" (artigo citado, p. 256).

8. A exclusão das instituições financeiras do alcance da Medida Provisória

Apressou-se o executivo em deixar claro que estavam excluídas das disposições da MP 1.820/99 as instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil. Realmente, demonstrando uma preocupação particular com estas, o artigo 4º da MP, expressamente, as torna imunes aos seus efeitos, cuidando de preservar os interesses das instituições financeiras com uma clareza faltante noutros pontos do Diploma. Por amor à verdade, devemos registrar que a imunidade concedida aos bancos, constante do texto publicado no Diário Oficial do dia 06 de abril, não fora averbada na proposta formulada pelo Ministério da Justiça.

Salientamos que as instituições financeiras estão imunes a todos os dispositivos insertos na MP 1.820/99, e não apenas àqueles relativos às taxas de juros. Assim, os negócios jurídicos civis lesionários entabulados pelas instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil (bancos, administradoras de consórcio, sociedades de arrendamento mercantil, etc.) não sofrerão a sanção de nulidade de pleno direito prevista no inciso II do artigo 1º. Injusto, nos parece, o privilégio concedido a tais empresas e iníqua essa diferenciação de tratamento.

8.1. O problema da limitação da taxa de juros

Inobstante estando claro que a MP sob estudo não limita as taxas de juros praticadas pelos bancos e demais instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, cabe que façamos aqui uma digressão para discutir o tema.

O Código de 1916, inspirado por princípios liberalistas, não estipulou limite para as taxas de juros, as quais poderiam ser livremente pactuadas, conforme deflui dos seus artigos 1.063 e 1.262. Posteriormente, o Decreto nº 22.626, de 7.4.33 (Lei de Usura), estabeleceu que o limite máximo da taxa de juros em quaisquer contratos seria o dobro da taxa legal, vale dizer, 12% (doze por cento) ao ano. Com a edição da Lei 4.595/64, originou-se acerba discussão acerca da aplicabilidade da limitação das taxas de juros prevista na Lei de Usura às instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, já que o artigo 4º, inciso IX, desta Lei, cometeu ao Conselho Monetário Nacional o encargo de limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários ou financeiros. A controvérsia que se iniciou foi aparentemente dissipada com a edição da Súmula 596 do STF, a qual assentou que "As disposições do Decreto 22.626 de 1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional".

A discussão sobre o tema - limite de taxas de juros - foi reavivada com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual, recepcionando o Decreto 22.626/33, proibiu a fixação de taxas de juros reais em percentual superior a doze por cento ao ano (art. 192, § 3º). A aplicabilidade da norma constitucional citada foi objeto de acerba controvérsia, com parcela respeitável dos doutrinadores pugnando pela aplicabilidade imediata do dispositivo que limita a taxa de juros (José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 8ª ed., Malheiros, p. 703/704) e outra defendendo que trata-se de regra de eficácia contida, dependente de regulamentação (Walter Ceneviva, Direito Constitucional Brasileiro, 2ª ed., Saraiva, p. 276/277). Após um estágio inicial de vacilação, com decisões que assumiam ora um ora outro posicionamento, preponderou na jurisprudência, o Pretório Excelso à frente (por maioria de votos), o entendimento segundo o qual a norma constitucional referida está a carecer de regulamentação através de Lei Complementar (ADIn nº 4/91).

Não é nossa intenção tomar partido em tão erudito debate, todavia, ainda que admitamos que o § 3º do artigo 192 da CF dependa de regulamentação, parece-nos que nenhuma norma válida autoriza o entendimento de que se possa praticar a usura livremente, vale dizer, as taxas de juros não estão liberadas para serem fixadas em quaisquer percentuais, ao alvedrio dos contratantes. A atribuição de fixar as taxas de juros é do Conselho Monetário Nacional, que não pode simplesmente demitir-se desta função e entregá-la aos bancos, para que estes a estabeleçam livremente. Todavia, foi exatamente isto o que fez o CMN através da Resolução nº 1.064, de 5.12.1985, onde se estabeleceu que as taxas de juros das operações financeiras são livremente pactuáveis entre as partes. Arrima-se tal Resolução exatamente no artigo 4º da Lei 4.595/64, ao entendimento de que o inciso IX daquele artigo ao utilizar a locução "sempre que necessário", estaria admitindo que, quando aquele Conselho não entendesse necessário impor limitação, as taxas de juros seriam livres.

Embora tal entendimento seja amplamente majoritário na jurisprudência, não nos parece que deva continuar prevalecendo. É que subsiste o limite geral do Decreto 22.626/33, o qual foi agasalhado pela Constituição em vigor (cf. José Afonso da Silva, obra citada, p. 304). Então, inexistindo limite diferente fixado pelo CMN, deve ser respeitado o percentual de 12%, previsto naquele Decreto. É este o entendimento de Arnaldo Rizzardo, o qual afirma que "a taxa de juros, se fixada acima de 12% (doze por cento) ao ano, deverá estar autorizada pelo Banco Central do Brasil" e que inexistindo limite fixado pelo CMN "deve-se obedecer aos padrões comuns, regulados pelo Código Civil e pelo Dec. 22.626, art. 1.º." (Contratos de Crédito Bancário, ERT, 3ª ed., p. 304).

Há algum tempo, o STJ reformulou o seu posicionamento acerca do assunto, adotando entendimento semelhante ao manifestado pelo Desembargador Arnaldo Rizzardo, ao menos em relação às cédulas de crédito rural, industrial e comercial, reguladas, respectivamente, pelo Decreto-lei nº 167, de 14 de fevereiro de 1967, Decreto-lei nº 413, de 09 de janeiro de 1969, e pela Lei nº 6.840, de 03 de novembro de 1980. Eis a ementa de um dos acórdãos pioneiros: "Em modificação de seu anterior posicionamento, vem entendendo a 4ª T. ser defesa a cobrança de juros além de 12% (doze por cento) ao ano se não demonstrada, pelo credor, a prévia estipulação pelo Conselho Monetário Nacional das taxas de juros vencíveis para o crédito rural (art. 5º do Dec.-lei 167)" (REsp. 103.319-RS, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. em 15.10.1996, publicado no DJ de 11.11.96, p. 43.728/9).

Mais recentemente, assim tem decidido o STJ: "...II – O Decreto-lei nº 167/67, posterior à Lei 4.595/64 e específico para as cédulas de crédito rural, confere ao Conselho Monetário Nacional o dever de fixar os juros a serem praticados nessa modalidade de crédito. Ante a eventual omissão desse órgão governamental, incide a limitação de 12% ao ano, prevista na Lei de Usura (Decreto 26.626/33), não alcançando a cédula de crédito rural o entendimento jurisprudencial consolidado na Súmula nº 596/STF..." (REsp. 169.843-RS, Rel. Min. Waldemar Zveiter, j. em 19.11.98, publicado no DJ de 05.04.1999, p. 126); "... I – Às cédulas de crédito industrial aplica-se o entendimento concernente ao mútuo rural, segundo o qual é defesa a cobrança de juros além de 12% ao ano se não demonstrada, pelo credor, a prévia estipulação, pelo Conselho Monetário Nacional, das taxas de juros vencíveis para o crédito industrial, correspondentes à data de emissão da cédula..." (REsp. 182.650-MG, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. em 29.11.1998, publicado no DJ de 01.03.1999, p. 337); "... A cédula de crédito comercial, no tocante à limitação dos juros, tem a mesma disciplina da cédula de crédito rural (art. 5º da Lei nº 6.840, de 03.11.80, c.c. o art. 5º do Dec. Lei nº 413, de 09.01.69). À mingua de fixação pelo Conselho Monetário Nacional, incide a limitação de 12% ao ano prevista no Dec. nº 22.626/33 (Lei de Usura)..." (REsp. 180.306-RS, Rel. Min. Barros Monteiro, j. em 23.02.1999, publicado no DJ de 26.04.1999, p. 109).

É verdade que as decisões supra referem-se aos crédito rural, industrial e comercial, que obedecem a disciplinas legislativas próprias, estando subordinados a diplomas legais que estabelecem, de maneira explícita, que as importâncias fornecidas pelo financiador vencerão juros às taxas que o Conselho Monetário Nacional fixar, todavia, o mesmo raciocínio que motivou os arestos transcritos pode ser validamente desenvolvido para outras modalidades de crédito bancário, vez que em todas persiste a atribuição do CMN de fixar o limite das taxas de juros simultaneamente ao limite geral do Decreto 22.626/33. Não tem entendido desta forma, entrementes, o STJ, que recentemente decidiu que "No mútuo bancário vinculado a contrato de abertura de crédito, a taxa de juros remuneratórios não está sujeita ao limite estabelecido pela Lei de Usura (Decreto nº 22.626/33)..." (REsp. 176.322-RS, Rel. Min. Waldemar Zveiter, j. em 23.02.1999, publicado no DJ de 19.04.1999, p. 139).

Nos parece incoerente, a toda evidência, que se admita a vigência do limite da taxa de juros imposto pela Lei de Usura para uns e não para outros contratos de crédito celebrados pelos bancos. Sim, porque se o artigo 1º do Decreto 22.626/33 está revogado pela Lei 4.595/64 no que pertine às operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional – conforme asseverou o Ministro Oswaldo Trigueiro, ao relatar o Recurso Extraordinário 78.953-SP, argumento que animou a edição da Súmula 596 do STF –, nenhum dispositivo dos Decretos-lei 167/67, 413/69, ou da Lei nº 6.840/80 repristinou o limite de taxa de juros previsto no aludido artigo relativamente aos contratos que disciplinam. Logo, aceitar a vigência do artigo 1º da Lei de Usura para as cédulas de crédito rural, industrial e comercial implica em admitir a sua vigência para todos os contratos celebrados pelos bancos.

9. Outras questões que exsurgem da MP 1820/99

Ademais, a Medida Provisória alterou a redação do inciso V do artigo 1º da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), para possibilitar seja manejado o aludido instrumento jurídico para dar combate aos danos morais e patrimoniais causados por infração da economia popular.

Revogou, a Medida Provisória nº 1820/99, o § 3º do artigo 4º da Lei 1.521, de 26 de dezembro de 1951 (Lei dos crimes contra a economia popular), o qual previa, nos casos de estipulação de juros usurários, a devolução singela da quantia paga em excesso, com os juros legais, a contar da data do pagamento indevido. Com a revogação do dispositivo citado, passa a reger a espécie o artigo 1º, inciso I, nos contratos civis de mútuo, e, nos contratos de consumo, o artigo 42, § 2º, do CDC, ambos prevendo a restituição igual ao dobro do que se pagou em excesso, importância à qual há de ser acrescida os juros legais e correção monetária.

Conjuminadamente à edição da MP, o Governo preparou um Projeto de Lei que pretende promover outras alterações na Lei 1.521/51, estas de natureza penal. Precisamente, pretende o Projeto aludido dar nova redação ao artigo 4º da Lei dos crimes contra a economia popular, inclusive para majorar a pena privativa de liberdade prevista em abstrato de seis meses a dois anos para dois a quatro anos de detenção, além de multa.

10. Conclusão

Em conclusão, podemos afirmar que, a despeito da expectativa que se seguiu ao anúncio da chamada "Medida Provisória da Agiotagem", os seus efeitos práticos serão extremamente modestos no combate a esta atividade, sendo certo que o seu alcance é bem mais estreito que o pretendido por aqueles que a conceberam, embora lhe caiba o inegável mérito de fazer ressurgir, no direito brasileiro, de maneira expressa, a cláusula geral da lesão enorme nos contratos civis.
 

Retirado do site: www.e-net.com.br/pgconsumidor/art_auri.html