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Michelle Patrick Fonseca de Moraes*
Sumário: Introdução; I. Negociação Coletiva; II. Regime
brasileiro de negociação coletiva; III. Negociação de servidor público nos Estados
Unidos da América; IV. Negociação de servidor público na Itália; V. A
experiência recente dos controladores de tráfego aéreo; VI. Viabilidade de
celebração de pacto negocial coletivo pelo servidor público civil; Conclusão.
Referências.
INTRODUÇÃO
O
campo do tema alusivo à extensão, ou não, da negociação coletiva ao servidor
público civil, aqui compreendido como aquele que mantém vínculo direto com a
Administração Pública direta, autárquica ou fundacional, com a possibilidade de
celebração de pactos, acordos e convenções coletivas de trabalho, é terreno em
que se digladiam vários posicionamentos dissonantes, mesmo após o
pronunciamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a Constituição
Federal de 1988 não brindou tal classe de trabalhadores lato sensu com a
possibilidade de negociação coletiva e de celebração desses diplomas negociais
coletivos.
A
recente experiência de negociação por melhores condições de trabalho e de
vencimentos vivida pelos controladores do tráfego aéreo brasileiro, classe
composta, em sua maioria, por servidores públicos militares, mas também por
servidores civis [01], que laboram em órgão submetido à Força Aérea
Brasileira (FAB) e, por conseguinte, ao Ministério da Defesa (Aeronáutica),
traz à baila novamente a celeuma: há vedação legal à negociação coletiva e à
celebração dos pactos negociais pelos servidores públicos civis?
Nesta
singela abordagem procurar-se-á delinear, portanto, os motivos contrários ao
posicionamento que nega o direito de negociação coletiva a essa classe de
trabalhadores e a incongruência desta linha de entendimento perante o espírito
da Constituição Federal de 1988 e a realidade social do Brasil.
I. NEGOCIAÇÃO COLETIVA
A
negociação coletiva é, antes de qualquer definição mais específica, direito
laboral coletivo reconhecido no plano internacional, conforme normas da
Organização Internacional do Trabalho [02], e no ordenamento
jurídico pátrio [03]. Tem seu berço no princípio da liberdade
sindical, estatuído no art. 8º da Constituição da República de 1988, que, por
sua vez, deriva de princípio mais abrangente, cristalizado na livre associação,
como dimana do art. 5º, XVII, da Lei Maior. É reforçado, ainda, pelo direito de
greve inserto no art. 9º constitucional, já que o movimento paredista é
resultado da frustração das tentativas de negociação coletiva. [04]
Como
foro propício à discussão das divergências surgidas entre trabalhadores e
patrões acerca da relação de trabalho, a negociação coletiva constitui degrau
obrigatório para a celebração de convenções ou acordos coletivos de trabalho,
bem assim à propositura da ação de dissídio coletivo perante o Poder
Judiciário. De fato, a negociação coletiva foi haurida com esse
"status" porque é necessário que as partes interessadas tenham
tentado dar a máxima efetividade à liberdade que lhes foi conferida, para,
então, fixarem legitimamente as regras que irão gerir as relações de trabalho
entre si ou recorrer a terceiro que as estabeleça. Em síntese, é o
reconhecimento da efetividade do princípio da liberdade de associação
profissional e sindical.
Ante
a formação inarredável da noção de coletividade que emana da liberdade
sindical, a lei brasileira estabelece como obrigatória a participação dos entes
sindicais na negociação coletiva, a rigor do prelecionado pelo art. 8º, VI, da Lex
Legum.
Recorremos
ao magistério de renomados mestres, a fim de sublinhar a relevância da
negociação coletiva, iniciando com o ilustre magistrado das Minas Gerais,
Mauricio Godinho Delgado, para quem a negociação coletiva é meio de
autocomposição de conflito coletivo de trabalho, de cunho essencialmente
democrático, que visa à regulação de interesses profissionais e econômicos de
"significativa relevância social", instrumentalizando-se em
convenções e acordos coletivos de trabalho. [05]
Com
os estudos substanciosos que lhes foram peculiares, Orlando Gomes e Elson
Gottschalk identificaram nuanças econômica e social importantíssimas quando
discorreram, de forma percuciente, sobre o resultado da negociação coletiva
exitosa:
"Na
convenção coletiva, porém, as condições de trabalho são o resultado de
negociações entre partes interessadas em tratá-las com uniformidade. O acordo
de vontades não intervém mais entre indivíduos, mas entre agrupamentos ou
associações de empregados e empregadores. Dessarte, representa uma técnica
inteiramente nova. O associacionismo profissional e a convenção coletiva de
trabalho surgiram como meio de competição econômica, numa sociedade em que a
palavra de ordem era a livre concorrência. O associacionismo teve o mérito de igualar
as forças econômicas das partes contratantes, e, assim, reequilibrar as
posições das mesmas no ato contratual." [06]
O
insigne Amauri Mascaro Nascimento acentua igualmente a relevância da negociação
coletiva na caracterização do modelo de regulação adotado pelo Estado, a fim de
delinear o maior ou menor acolhimento dos princípios da autonomia coletiva e da
liberdade sindical, quando pontua:
"O
modelo de direito do trabalho de um país pode ser medido sob o ângulo da
negociação coletiva. O espaço que a negociação coletiva ocupa no direito
interno é um critério que permite classificar o sistema de relações de trabalho
de um país. Daí os modelos abstencionistas ou desregulamentados e
os modelos regulamentados. (...) A negociação coletiva é expressão do
princípio da autonomia coletiva dos particulares e da liberdade sindical."
O modelo de direito do trabalho de um país pode ser medido sob o ângulo da
negociação coletiva. O espaço que a negociação coletiva ocupa no direito
interno é um critério que permite classificar o sistema de relações de trabalho
de um país. Daí os modelos abstencionistas ou desregulamentados e
os modelos regulamentados. (...) A negociação coletiva é expressão do
princípio da autonomia coletiva dos particulares e da liberdade sindical."
[07]
No
escólio do magistrado Sergio Pinto Martins, a negociação coletiva difere da
convenção e do acordo coletivo de trabalho, porque constitui um procedimento
inicial que visa superar as divergências entre as partes, qualificando-se pelo
resultado, é dizer, pela celebração de um desses pactos. [08]
Acorde
com o ângulo estritamente legal, pelo prisma da legislação infraconstitucional
pátria, a negociação coletiva é a tratativa que se estabelece entre
empregadores ou entidades sindicais econômicas e entidades sindicais
profissionais ou organizações de trabalhadores [09], para
ajustamento das condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respectivas
representações, às relações individuais de trabalho, tendo por instrumento-fim
o acordo coletivo ou a convenção coletiva, como explicita o art. 611 da CLT.
Nesse
contexto, a negociação coletiva consiste em mecanismo crucial para a solução
extrajudicial de conflitos coletivos de trabalho, que, regra geral, têm
repercussões negativas significantes sobre a sociedade na qual se inserem os
grupos que os deflagram, concretizando a paz social entre os interessados,
razão pela qual mereceu atenção da normatividade internacional, como se
depreende da Convenção nº 154 da Organização Internacional do Trabalho, que
assenta que negociação coletiva é toda negociação que tem lugar entre um
empregador, ou grupo deles, e uma ou várias organizações de trabalhadores, a
fim de ajustar interesses, objetivando, entre outras metas, a fixação de
condições de trabalho e emprego.
II. REGIME BRASILEIRO DE NEGOCIAÇÃO
COLETIVA
O
regime brasileiro de negociação coletiva dos trabalhadores decorre da adoção de
três posturas pela Constituição Federal de 1988: a do reconhecimento das
convenções e acordos coletivos de trabalho aos trabalhadores urbano e rural, na
conformidade do art. 7º, XXVI; a do silêncio no que concerne ao servidor
público civil, na medida em que na norma de reenvio constante do art. 39, § 3º,
não foi expressamente mencionado o aludido inciso XXVI do art. 7º; e a da
vedação expressa para o servidor público militar, sendo-lhe categoricamente
negado o direito à sindicalização e à greve, nos termos do art. 142, IV.
O
regime geral dos trabalhadores, pelo qual a Carta reconhece-lhes a legitimidade
dos acordos e convenções coletivos de trabalho, não decorre, todavia, de uma
liberdade sindical plena. É que esta sofre limitações pela obrigatoriedade de
observância de dois preceitos constitucionais, que, no entender da maciça
doutrina, perfazem herança do modelo corporativo-fascista de estrutura e organização
sindicais, a saber, o da unicidade sindical e o do imposto sindical
compulsório, ancorados nos incisos II e IV do art. 8º, respectivamente, o que é
repassado à negociação coletiva, que se permeará, na mesma toada, do respeito
aos mencionados preceitos.
Ao
servidor público militar foi vedada in totum a negociação coletiva, já
que não tem direito à sindicalização ou à greve. O fundamento aí é atingível
com suspeita facilidade, pois, cabendo às Forças Armadas a atividade de
proteção da integridade territorial, não pode haver interrupção dos serviços. A
estrutura do serviço militar, fortemente alicerçada no princípio hierárquico,
não deixa espaço a qualquer tipo de negociação das condições de trabalho.
Para
o servidor público civil, há o reconhecimento do direito à sindicalização e à
greve, sendo necessária a regulamentação do exercício do direito à greve,
inexistente até o momento. Todavia, por não ter sido mencionado o direito ao
reconhecimento dos acordos e convenções coletivos de trabalho, não poderia
firmar os instrumentos normativos mencionados, nem negociar coletivamente. As
razões, como nos rememora Rinaldo Guedes Rapassi, em excelente trabalho sobre o
tema da greve do servidor público, seriam de várias ordens: a supremacia jurídica
da Administração Pública na formação do vínculo de trabalho público, ditando
unilateralmente as bases em que se daria a prestação dos serviços, o que não
admitiria pressupor a igualdade das partes; os avanços e vantagens trazidos
pela instituição do regime estatuário, fonte principal de aplicação do direito
às relações entre o servidor e a Administração; e a necessidade de autorização
específica na lei de diretrizes orçamentárias e de prévia dotação orçamentária
para deferimento de vantagens e aumento de remuneração pela Administração, que
se sujeita, ademais, aos marcos aportados na Lei de Responsabilidade Fiscal. [10]
Apesar
de o presente trabalho cingir-se ao estudo da negociação coletiva dos
servidores públicos civis no Brasil, convém radiografar o enquadramento da
questão pelo direito alienígena relativamente a, pelo menos, dois países, quais
sejam, os Estados Unidos da América, de matriz anglo-saxã, e a Itália,
representante da matriz romano-germânica.
III. NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE SERVIDOR
PÚBLICO NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
Em
lei de reforma do serviço público, datada de 1978, entoava-se o direito de
livre organização dos funcionários públicos federais. Na sua exposição de
motivos, o Presidente Jimmy Carter asseverava o direito dos funcionários
federais de negociarem coletivamente e de se sindicalizarem, remetendo,
todavia, a regulação a estatuto próprio. Tal consideração não levou à
conclusão, todavia, de que os EUA reconheçam a greve como direito inalienável
aos funcionários do Governo Federal. De toda sorte, por meio da mesma reforma,
criou um órgão que se constitui em locus específico de discussão e
negociação trabalhista entre o Governo Federal e as organizações sindicais de
servidores públicos federais, o Federal Labor Relations Authority (FLRA),
com atribuições de solucionar os conflitos coletivos trabalhistas, a partir de
seu "Painel de Impasses do Serviço Federal". [11]
Nesse
diapasão, a opção, ao que parece, por uma arbitragem pública na via de solução
dos conflitos coletivos, não desmonta a construção que permite às organizações
sindicais de servidores públicos federais norte-americanas negociar
coletivamente e obterem as vantagens daí provenientes.
IV. NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE SERVIDOR
PÚBLICO NA ITÁLIA
Traz
ao nosso conhecimento Carlos Moreira de Luca que a Itália, de regime jurídico
bastante similar ao nosso, haja vista beber da mesma fonte de origem da nossa
ordem jurídica, a romano-germânica, não admitia que, no regime estatutário
aplicável ao servidor público, a matéria disciplinada por lei pudesse ser
objeto de negociação coletiva. Mesmo assim, as greves, a exemplo do Brasil,
proliferavam-se e as negociações informais, buscando a composição do impasse,
eram cada vez mais freqüentes. Esse "enfrentamento casuístico" gerou
a pressão necessária à regulamentação estatal do direito de negociação coletiva
dos servidores públicos, reconhecendo a possibilidade, segundo critérios objetivos
e limitações sediadas em lei, de contratação coletiva no serviço público,
sujeita a controle jurisdicional. [12]
No
exemplo italiano da eclosão de greves, sem previsão legal, e da impossibilidade
de negociação coletiva dos servidores, conseguimos identificar, com muita
semelhança, a situação vivenciada no Brasil, cujo episódio mais recente,
público e notório, foi o da negociação entabulada pelos controladores de
tráfego aéreo, situação geradora de vultoso tumulto nos grandes aeroportos
brasileiros e que demandou o implemento quase imediato das medidas pleiteadas
pelos servidores em liça, a fim de se contornar o impasse.
V. POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL
O
STF analisou a questão do reconhecimento das convenções e acordos coletivos de
trabalho aos servidores públicos civis, em sede de controle concentrado de
constitucionalidade, concluindo que a eles restaram vedados não só a celebração
dos instrumentos negociados em tela e o ajuizamento de dissídio coletivo como
também o entabulamento de negociações coletivas. [13]
Todavia,
a Corte Suprema, em franco recuo, ainda que parcial, do entendimento
mencionado, editou em 2003 a Súmula nº 679, que reza: A fixação de
vencimentos dos servidores públicos não pode ser objeto de convenção coletiva.
Ora,
o STF sedimenta atualmente o entendimento de que caberia a fixação de outras
condições de trabalho, que não vencimentos, por instrumento coletivo de
trabalho pelos servidores, o que pressupõe a tratativa coletiva por meio de
entidades sindicais que lhes representem.
VI. A EXPERIÊNCIA RECENTE DOS
CONTROLADORES DE TRÁFEGO AÉREO
A
mídia nos manteve informados nas primeiras semanas de novembro do ano corrente
acerca da "greve branca" ou da "operação-padrão" levada a
cabo pelos controladores de tráfego aéreo brasileiro, cujo estopim foram as
investigações desses profissionais em decorrência da queda de um Boeing
de nossa aviação civil e da conseqüente morte de 154 pessoas que se encontravam
a bordo. [14]
Com
alguns desses controladores afastados por motivos psicológicos, dada a tragédia
ocorrida, o exercício da atividade nos principais aeroportos tornou-se caótico,
haja vista que já se trabalhava além dos limites estipulados pelas normas internacionais
quanto ao controle de vôo, seja no concernente à capacidade individual de
monitoramento de aeronaves, seja no referente à extensão de jornada de
trabalho.
Do
ângulo que nos comprometemos a abordar no presente artigo, interessa-nos, sem
que isso pareça insensibilidade quanto aos graves aspectos envolvidos nessa
questão, a negociação estabelecida entre o Estado, por intermédio da Casa
Civil, dos Ministros da Defesa e do Trabalho e Emprego e do Presidente da
Agência Nacional da Aviação Civil, e os servidores públicos, representados pelo
Presidente do Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Proteção ao Vôo e mais
alguns representantes sindicais da categoria.
Das
tratativas, a reivindicação mais prontamente atendida pelo Governo Federal foi
a da abertura imediata de concurso público para contratação de mais
profissionais da área, mediante a edição de medida provisória autorizadora.
Outras delas mereceram especial atenção, destacando-se a possibilidade de que a
carreira dos controladores de vôo deixe de estar subordinada ao comando
militar. [15]
Do
panorama traçado, vê-se que o Estado estabeleceu o diálogo com os servidores,
independentemente das vedações expressas na Constituição e na jurisprudência
vinculante do STF, que não permitem a negociação coletiva aos servidores
militares e civis. E aí exsurge o aspecto curioso da situação, porquanto aos
militares não foram reconhecidas nem a greve nem a sindicalização, pressupondo,
com isso, a negação do direito a negociar livremente.
No
entanto, apesar de prosseguirem discussões acerca da necessidade de
desmilitarização da carreira, opção feita pela Argentina [16], as
negociações desembocaram na adoção de medidas eficazes para o início da
resolução dos graves problemas vivenciados pelos controladores, ainda que de
forma difusa, isto é, por ato do Presidente da República (medida provisória),
por encaminhamento futuro de proposta de criação de plano de cargos e salários
ao Congresso Nacional (lei específica), por instrumentos outros que admitam a
concessão imediata de melhores condições de trabalho e que não esbarrem nos
princípios constitucionais da prévia dotação orçamentária e da limitação de
despesas com a remuneração de pessoal.
O
fato de se ter prosseguido na negociação, inclusive com a presença do Ministro
da Defesa, Waldir Pires, pode ser tido como um prévio juízo de valoração
positiva do pleito de desmilitarização, consentindo-se que a atividade de
controle de tráfego aéreo tome a vereda da administração civil [17],
mormente por não se confundir com a missão institucional de defesa do espaço
aéreo, seara, aí sim, exclusiva da Aeronáutica.
VII. VIABILIDADE DE CELEBRAÇÃO DE
PACTO NEGOCIAL COLETIVO PELO SERVIDOR PÚBLICO CIVIL
Sobram
argumentos para admitir a viabilidade de estabelecimento de negociação coletiva
entre os servidores públicos e o Estado.
O
primeiro deles, de ordem legal, traduz-se no reconhecimento que a Constituição
Federal de 1988, de forma pioneira, fez dos direitos de sindicalização e greve
aos servidores públicos civis. [18] Ora, a adoção da greve como
legítimo instrumento de pressão parte justa e obrigatoriamente da premissa de
que houve entrave na negociação coletiva. Caso se conclua pela correção de
raciocínio inverso a este, aí teremos uma séria incoerência, permitindo ao
servidor público a greve de cunho necessariamente político [19] como
única via que resta ao servidor para pressionar o Executivo a desencadear o
processo legislativo destinado a atender às reivindicações dos trabalhadores do
setor público. [20] Na mesma medida, tornar-se-ia inócua a norma
que reconheceu o direito à associação sindical [21], o que seria a
aceitação de um descompasso perpetrado pelo constituinte originário.
Ainda,
o fato de o art. 39, § 3º, da Lei Maior, ao cometer aos servidores em tela
alguns dos direitos estendidos aos trabalhadores em geral no art. 7º, não
ter-lhes contemplado com o contido no inciso XXVI deste, a saber, o
reconhecimento dos acordos e convenções coletivos de trabalho, não significa a
impossibilidade de negociação coletiva, como, concessa máxima vênia,
entendeu o STF no julgamento da ADIN nº 492. Caminha na mesma esteira desse
raciocínio o devotado professor e membro do Parquet trabalhista, Carlos
Henrique Bezerra Leite, quando sustenta:
"Ora,
negociar coletivamente não significa que as partes sejam obrigadas a celebrar
convenção ou acordo coletivo". No setor privado, como já dito, da
negociação coletiva pode resultar um "contrato-lei" ou, em caso de
malogro, a possibilidade de ajuizamento de dissídio coletivo, cabendo ao
Judiciário Trabalhista estabelecer normas e condições, dentro dos limites
fixados no vértice do ordenamento jurídico. No âmbito da Administração Pública
direta, autárquica ou fundacional, é juridicamente possível que a negociação
coletiva seja operacionalizada – pouco importa o nomen iuris – como um
protocolo de intenções, uma mesa redonda, do qual participem, de um lado, o
representante do ente público e, de outro lado, o sindicato representativo dos
servidores, tudo em perfeita sintonia com os princípios fundamentais que regem
o Estado Democrático de Direito. Desse protocolo de intenções poderá surgir um
projeto de lei, encampando, materialmente, as cláusulas que contemplam o acordo
de vontades entre as partes, pressupondo, sempre, que o representante do ente
público paute sempre a sua conduta pela observância do princípio da supremacia
do interesse público sobre o interesse de classe ou particular." [22]
Outro
argumento relevante para o reconhecimento do direito à negociação coletiva
deflui da nossa realidade, é dizer, as greves de servidores públicos civis,
embora sem regulamentação até o momento, ocorrem, e não com poucas intensidade
e freqüência, especialmente nas atividades consideradas essenciais à
comunidade, originando sérios prejuízos à sociedade, ao Estado e aos próprios
servidores públicos, que têm suas questões tratadas de maneira não uniforme,
gerando abordagens distintas de problemas ou reivindicações idênticas, indo de
encontro, assim, ao princípio constitucional da não-discriminação entalhado no
art. 5º, caput.
Pelo
esquadro internacional tem-se igualmente importante respaldo político para a
viabilidade do reconhecimento, nas ordens democráticas, como parte de
estratégia em matéria de administração de pessoal, quando se assenta que a
essência da soberania abarca o exercício da competência de compartilhamento de
autoridade, acorde com Relatório da OIT sobre "Liberdade de associação e procedimentos
em matéria de participação de pessoal na determinação das condições de emprego
no serviço público", de 1970, na lição de Carlos López-Monís de Cravo. [23]
Notemos
que toda a defesa com baldrame nos princípios da supremacia jurídica e da
estrita legalidade a que se sujeita a Administração Pública, impedindo-a de se
posicionar em linha de igualdade com os seus servidores na seara da negociação
coletiva, desnudando-se de seu poder de império, cai por terra quando se pontua
que as reivindicações não estão restritas apenas a vencimentos, para as quais a
limitação é expressa, mas também visam instituir cláusulas reguladoras das
relações entre os interessados (cláusulas obrigacionais), de condições de
trabalho para os integrantes da categoria (cláusulas normativas) e de solução
de eventuais litígios derivados de sua interpretação (cláusulas instrumentais).
[24] A procedência desse raciocínio confirma-se quando se incursiona
pelo conteúdo da Agenda Positiva da Mesa Nacional de Negociação Permanente
(MNNP), canal de negociações aberto pela celebração de Protocolo entre o
Governo Federal e as entidades representativas dos servidores públicos da
União, em 28.5.2003, que, no entanto, tem se pautado pelo envio das discussões
políticas ao forum competente do Congresso Nacional:
"AGENDA
POSITIVA – PRINCIPAS PONTOS (16.6.2003): Recomposição da força de trabalho do
setor público: Redesenho dos sistemas de remuneração, cargos, carreiras,
benefícios e concursos; Realinhamento dos salários de carreiras, posições e
condições gerenciais da alta burocracia; Capacitação técnica e gerencial
permanente de servidores; Promoção da saúde ocupacional e melhoria da qualidade
de vida; Redesenho da estrutura e processos de trabalho; Novas concepções institucionais;
Redimensionamento de recursos logísticos e de tecnologias informacionais;
Simplificação administrativa; Definição e divulgação de resultados a partir de
indicadores objetivos de desempenho organizacional; Contratualização efetiva de
resultados e avaliação do custo efetividade; Interlocução, participação e
atendimento ao cidadão e conduta ética transparente." [25]
Por
óbvio que a viabilidade do reconhecimento do direito de negociar coletivamente
com a Administração Pública parametriza-se principalmente pelas restrições
vertidas no princípio da estrita legalidade a que esta se encontra jungida. [26]
As reivindicações pertinentes à remuneração e consectários, que implicam,
portanto, aumento de despesa com remuneração de pessoal, submeter-se-ão
obrigatoriamente ao processo legislativo, como se extrai da interpretação do
art. 61, § 1º, I, "a", da Carta Política de 1988 [27], mas
eis aí, na Agenda aludida, um rol exemplificativo do conteúdo da negociação
coletiva do servidor público.
Imaginemos
alfim, nesse caminhar, que há margem de manobra para a Administração Pública,
independentemente de previsão legal expressa autorizando-lhe a negociar com
seus servidores, apreciar suas reivindicações, sem que, com isso, esteja se
distanciando da observância aos princípios a que se vincula, na medida em que a
Constituição Federal não fez nenhuma proibição nesse sentido, salvo quanto ao
aumento de remuneração, prevendo, ademais, a possibilidade de deflagração de
greve em seu meio, que tem por condição inafastável a negociação coletiva.
CONCLUSÃO
O
direito de negociação coletiva do servidor público civil é corolário lógico dos
direitos à associação sindical e à greve, encartados nos incisos VI e VII do
art. 37 da Constituição Federal.
O
instrumento-fim da negociação coletiva entre servidores civis e Administração
Pública não precisa, necessariamente, configurar um acordo coletivo ou uma
convenção coletiva de trabalho, nos moldes pensados pela CLT. A negociação
coletiva pode resultar em encaminhamento de projeto de lei, como ocorre
atualmente, só que de forma indesejada, porque casuística e informal; em
protocolo ou em qualquer outra forma escolhida pelos celebrantes, desde que
balizada pelos princípios a que se sujeita a Administração Pública, sendo
método precioso de prevenção de eclosão de greves, quase sempre com efeitos
danosos para os atores sociais e para a sociedade, como se experimentou com a
"operação-padrão" dos controladores de tráfego aéreo.
Não
fica à deriva, ademais, o argumento de que a melhoria das condições de trabalho
e emprego dos servidores públicos foi contemplada como apelo legítimo pelo
constituinte quando atrelou a atuação da Administração Pública ao princípio da
eficiência, nos lindes do art. 37, caput, postulado que se encontra
intrinsecamente ligado às condições de prestação de serviços experienciadas
pelos seus servidores.
Em
arremate, o reconhecimento da possibilidade de negociação coletiva dos
servidores públicos civis com o Estado demonstra amadurecimento no exercício da
soberania e respeito à democracia participativa, pilar do Estado Democrático de
Direito, que não pressupõe, de forma simplista, apenas o predomínio da vontade
da maioria sobre a minoria, mas também a possibilidade de diálogo com a
minoria.
REFERÊNCIAS
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JR., José. Direito do trabalho: relações coletivas de trabalho. Salvador:
Podivm, 2006;
DELGADO,
Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho, 4. ed. São Paulo: LTr, 2005;
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Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de direito do trabalho, 17. ed. Rio de
Janeiro: 2006;
LEITE,
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Sergio Pinto. Direito do trabalho. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2006;
MEDAUAR,
Odete. Direito administrativo moderno. 10. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006;
NASCIMENTO,
Amauri Mascaro. Compêndio de direito sindical. 4. ed. São Paulo: LTr, 2006;
RAPASSI,
Rinaldo Guedes. Direito de greve de servidores públicos. São Paulo: LTr, 2005;
SOARES,
José Ronald Cavalcante (coord.). O servidor público e a Justiça do Trabalho.
São Paulo: LTr, 2005.
SITES
DE NOTÍCIAS
http://www.jornaltribuna.com.br/geral
http://www3.atarde.com.br/mundo/interna
http://www.valoronline.com.br/
http://www.jornaltribuna.com.br/geral
http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/
Notas
01
Segundo a Agência Brasileira de Notícias, no país, há 2.170 controladores
militares, 100 civis que prestam serviço à Aeronáutica e 400 à Infraero. http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/
acesso em: 10/11/2006.
02
Convenção nº 154, de 1981, da OIT, ratificada pelo Brasil.
03
O art. 8º, VI, da Carta de 1988 estipula a obrigatoriedade da participação dos
sindicatos nas negociações coletivas de trabalho. A Consolidação das Leis do
Trabalho, por seu turno, trata da negociação coletiva no art. 616.
04
MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.
839.
05
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho, 4. ed., São Paulo:
LTr, 2005, p. 1.369-1.370.
06
GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de direito do trabalho, 17. ed., Rio
de Janeiro: 2006, p. 611.
07
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Compêndio de direito sindical. 4. ed. São Paulo:
LTr, 2006, p. 305-307.
08
MARTINS, Sergio Pinto. Op.
cit., p. 779-780.
09
O art. 617, § 1º, da CLT franqueia a possibilidade de formação de comissão
negocial de empregados, em caso de omissão eloqüente do sindicato, federação ou
confederação correlatos à categoria profissional.
10
RAPASSI, Rinaldo Guedes. Direito de greve de servidores públicos. São Paulo:
LTr, 2005, p. 81.
11
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Consultoria Legislativa da Área XIX Ciência Política,
Sociologia Política, História, Relações Internacionais. Estudo "Greve do
serviço público nos EUA". Ricardo José Pereira Rodrigues. Brasília,
novembro de 1995.
12
SOARES, José Ronald Cavalcante (coord.). O servidor público e a Justiça do
Trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 51-60.
13
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pleno. ADIN nº 492. Relator: Carlos Veloso. Brasília,
DF, 12 nov. 92. DJ de 12.3.93.
14
http://www.valoronline.com.br/
acesso em: 10/11/2006
15
http://www.jornaltribuna.com.br/geral
acesso em: 11/11/2006.
16
Fonte: Agência Estado http://www3.atarde.com.br/mundo/interna
acesso em: 11/11/2006.
17
A atividade de controle de tráfego aéreo tem assento, como atividade essencial,
no art. 10, X, da Lei nº 7.783/89, Lei de Greve, aplicável aos trabalhadores da
iniciativa privada, o que talvez dê azo ao entendimento de que a atividade não
se coadune com a regência militar.
18
Art. 37.VI – é garantido ao servidor público civil o direito à livre associação
sindical; VII – o direito de greve será exercido nos termos e limites definidos
em lei específica;
19
Desconsideremos, por ora, as discussões doutrinária e jurisprudencial acerca da
necessidade de lei específica para o exercício do direito de greve pelo
servidor público civil.
20
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. A greve do servidor público civil e os direitos
humanos. Extraído do sítio jusnavigandi: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto
acesso em 9/11/2006.
21
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. O Estado no direito do trabalho: as
pessoas jurídicas de direito público no direito individual, coletivo e
processual do trabalho. São Paulo: LTr, 1996, p. 154.
22
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ibidem.
23
Apud RAPASSI, Rinaldo Guedes. Op.cit.,
p. 83.
24
CAIRO JR., José. Direito do trabalho: relações coletivas de trabalho. V. 2.
Salvador: Podivm, 2006, p. 175-176.
25
RAPASSI, Rinaldo Guedes. Op.
cit., p. 88.
26
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 10. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006, p. 123-125.
27
CAIRO JR., José. Op. cit., p. 175-176.
* assessora de ministro do Tribunal Superior do Trabalho, pós-graduanda em Direito Material e Processual do Trabalho pela UPIS/DF
Disponível em: http://jus2.uol.com.br/
Acesso em: 08 fev. 2007.