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A imunidade recíproca relativa à incidência do ICMS nas contas de energia elétrica pagas pelos Municípios
Filicio Costa Gonçalves*
Constituição Federal de 1988 instituiu em seu art. 150, VI,
"a" o princípio da imunidade recíproca, cujo conceito se reveste na
autonomia existente entre os Municípios, Estados e União, de não poderem
instituir impostos sobre a renda e o patrimônio uns dos outros, com a
finalidade de que haja sempre um equilíbrio entre eles.
A
imunidade recíproca ou intergovernamental recíproca - assim nomeada pelo
ilustre e festejado jurista Sacha Calmon Navarro Coelho (1),
decorre, pois, do Princípio Federativo, uma vez que se um Ente Federativo
pudesse tributar outro, recolhendo impostos, poderia resultar em uma situação
de grande dificuldade para um dos entes tributados, impedindo-os, inclusive, de
realizarem seus objetivos fundamentais. Deste modo, assim dispõe a
Constituição:
Art. 150. Sem prejuízo de
outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios:
VI - instituir impostos
sobre:
a)patrimônio, renda ou
serviços, uns dos outros;
(...)
§ 2º - A vedação do inciso
VI, "a", é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e
mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos
serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.
§ 3º - As vedações do inciso
VI, "a", e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à
renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas
regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja
contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o
promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.
Contudo,
no que tange às expressões "exploração de atividades econômicas"
e "contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário",
faz-se necessário traçar algumas considerações.
É
sabido que as pessoas políticas, para se beneficiarem da imunidade recíproca,
devem orientar-se por determinadas prerrogativas, tendo como uma delas a
exploração das atividades típicas da Administração Pública, de relevante valor
para a coletividade. Em contrapartida, as atividades regradas por normas
aplicáveis aos setores privados sujeitar-se-ão a todos os tributos pertinentes.
Portanto,
com relação à expressão "exploração de atividades econômicas",
vale transcrever o que observa Antônio Roque Carraza (2), verbis:
"quando a pessoa política
desempenha atividades tipicamente privadas o princípio da imunidade não a
beneficia. Ele só alcança quando desempenha suas funções típicas (atividades
públicas, isto é, estatais propriamente ditas)".
Passando
para o segundo ponto, a imunidade não beneficia as pessoas políticas, empresas
públicas ou sociedades de economia mistas quando estas exercem alguma atividade
econômica em que haja contraprestação ou recebimento de tarifas ou preços. Mas
aí, o essencial é a distinção, na prestação de um serviço, se há ou não uma
contraprestação ou pagamento por tal serviço prestado, pois quando não existe
um retorno financeiro por parte daqueles que se beneficiam do serviço, a
imunidade recíproca deverá prevalecer – e aqui já considerando que o serviço é
de relevante valor social – caso contrário a renda ou o patrimônio das pessoas
políticas e empresas públicas ou mistas seriam afetados, o que a Constituição
Federal não permite.
Vale
registrar que, no caso em apreço, a unidade consumidora municipal é o serviço
de iluminação pública, que, por se tratar de serviço indivisível, não permite
contraprestação.
Com
efeito, vale citar mais uma vez o jurista Roque A. Carraza (3),
quando trata do tema, verbis:
"A imunidade também não
beneficia as pessoas políticas enquanto exercem atividades econômicas, mediante
contraprestação ou recebimento de preços ou tarifas.
Invertendo o raciocínio,
podemos afirmar que as pessoas políticas são imunes quando exercem atividades econômicas
sem contrapartida ou pagamento de preços ou tarifas pelo beneficiário.
É que, nestes casos, as
exigências fiscais mutilariam, ainda que em parte, a renda ou o patrimônio
destas pessoas, embaraçando o cumprimento de suas atividades públicas
essenciais. O desempenho destas atividades econômicas corresponde à prestação
de serviços públicos."
Expostas
todas as considerações, ao se aplicar as hipóteses de incidência da imunidade
recíproca ao que ocorre nos Municípios brasileiros, ver-se-á que eles vêm
sofrendo um sério gravame em seus patrimônios e rendas.
Assim,
ressaltando o caso em comento, qual seja, a iluminação pública prestada pelo
Município, através das concessionárias ou permissionárias do serviço de fornecimento
de energia elétrica, vale lembrar quatro questões, imprescindíveis de serem
analisadas:
A
primeira é o fato de que o serviço de iluminação pública constitui-se num
serviço essencialmente público. O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a legalidade
da cobrança de uma taxa de iluminação pública pelo Município do Rio de Janeiro,
julgou improcedente o pedido alegando tratar-se de um serviço de natureza
genérica e indivisível e que, portanto, não poderia ser remunerado por tal
prestação. Chegou inclusive a editar súmula sobre o tema – Súmula 670, fato que
comprova a indivisibilidade e a generalidade do serviço de iluminação pública.
Veja-se o referido julgado:
EMENTA: PROCESSUAL CIVIL.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. IPTU. ALÍQUOTAS. PROGRESSIVIDADE. TAXA DE COLETA DE LIXO
E LIMPEZA PÚBLICA. TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA. COBRANÇA. INCONSTITUCIONALIDADE.
SOBRESTAMENTO DO FEITO. DESNECESSIDADE. I. - Inconstitucionalidade da
progressividade das alíquotas do IPTU. RE 153.771/MG, Moreira Alves, Plenário.
II. - Não é legítima a cobrança de taxa quando vinculada não apenas à coleta de
lixo domiciliar, mas também à limpeza de logradouros públicos, em benefício da
população em geral, sem possibilidade de individualização dos respectivos
usuários. Precedentes. III. - O serviço de iluminação pública não pode ser
remunerado mediante taxa. Súmula 670-STF. IV. - Agravo não provido.
(STF, AI 487088 RJ, DJ 18.06.2004,
Rel. Min.
Carlos Velloso, 2ª Turma)
A
segunda questão é que, quando as concessionárias ou permissionárias exercem a
atividade de iluminação pública, estão, tão somente, exercendo uma função de longa
manus do Estado, ou seja, as empresas distribuidoras de energia elétrica
exercem um papel que caberia ao Estado, por tratar-se de um fornecimento de um
serviço público, mas que, às vezes, por uma série de motivos, o Estado prefere
repassar essa tarefa para particulares através de concessões, permissões ou
autorizações.
Novamente
vale citar o já mencionado mestre Roque Antônio Carraza (4):
"A equação não se
altera ainda quando o Município adquire a energia elétrica de um distribuidor
(que pode ser até um particular), já que este não passa da longa manus da
União."
Num
terceiro momento, é importante ressaltar que os Municípios, ao recolherem o
ICMS nas contas de luz, assumem uma posição de contribuinte de fato, ou seja,
as concessionárias ou permissionárias recolhem o imposto, caracterizando-se
como contribuintes de jure, e o repassa aos Estados da Federação.
Destarte, quem suporta financeiramente o encargo financeiro são os Municípios
que, reiterando, são os contribuintes de fato. Aliás, o valores devidos a
título de ICMS vêm discriminados na fatura mês a mês.
O
que ocorre aqui é a chamada "teoria da repercussão", ou como explica
Baleeiro (5), "o contribuinte paga o imposto, mas liberta-se
do sacrifício transferindo-o a terceiros, no todo ou em parte." Assim,
aquele contribuinte que repassa todo o encargo financeiro para um terceiro
figurará apenas como um contribuinte de iure, ao passo que é este
último, o consumidor final, quem vai receber a carga fiscal, sem poder
transmiti-la a mais ninguém, assumindo, pois, uma posição de contribuinte de
fato.
No
presente caso concreto, ao analisar-se a postura dos Municípios na relação
jurídico-tributária, verifica-se que eles assumem uma posição consumerista ou
de consumidor final, quando adquirem energia elétrica para a prestação do
serviço de iluminação pública. Assim, tornam-se os Municípios sempre
contribuintes de fato na relação, suportando um ônus devido a incidência do
ICMS nas contas de energia elétrica.
Portanto,
não há como os Municípios repassarem esse encargo aos munícipes ou quem quer
que seja. Consequentemente, suportam todo o sacrifício por causa do repasse do
ICMS, onerando os cofres públicos, elevando-o a um estado ainda mais precário
em razão da falta de receitas e do excesso de despesas.
O
renomado autor Sacha Calmon Navarro Coelho (6), concordando com o
mestre Aliomar Baleeiro, lembrando de um caso semelhante em que a União,
representada pelas forças armadas, adquiria aço de uma empresa em Minas Gerais
(Acesita), assim o fez, verbis:
"A tese de Baleeiro
sobre o contribuinte de fato, quando este é pessoa jurídica de Direito Público
Territorial, nos seduz. Aí, seja qual for o imposto quando o Estado é
"contribuinte de fato" (consumidor final de bens e serviços),
torna-se indubitável que uma pessoa política está pagando a outra.
(...)
Por ser a União contribuinte
de fato, o seu "patrimônio" estaria sendo sugado pelo Estado
parcialmente, pelo recolhimento do ICMS, porquanto transfere-se ao usuário,
junto com o fatura, o valor do imposto. No caso o usuário é o governo da
União."
E,
por fim, ao se interpretar o princípio da imunidade recíproca, à luz da sua
verdadeira essência, mister é analisá-lo sob a ótica do legislador
constituinte, no porquê da sua instituição e qual o seu real sentido. Frise-se
que cabe ao aplicador do Direito perquirir um maior alcance possível do
significado do mandamento em questão.
E
foi justamente através da interpretação teleológica que Aliomar Baleeiro
(7) desenvolveu sua tese a respeito da aplicação da imunidade recíproca,
ensinando que "a imunidade, para alcançar seus efeitos de preservação,
proteção e estímulo, inspiradores do constituinte, pelo fato de serem os fins
das instituições beneficiadas, também atribuições, interesses e deveres do
Estado, deve abranger os impostos que, por seus efeitos econômicos, segundo as
circunstâncias, desfalcariam o patrimônio, diminuiriam a eficácia dos serviços
ou a integral aplicação das rendas aos objetivos específicos daquelas entidades
presumidamente desinteressadas por sua própria natureza."
Humberto
Ávila (8) também é partidário da aplicação da interpretação
teleológica, ao explicar o propósito da imunidade recíproca, dizendo "que
a causa justificativa da imunidade é facilitar por meio da exclusão de encargos
tributários, a consecução de finalidades que devem ser atingidas pelo próprio
Estado." E mais adiante, em sua obra, o tributarista conclui dizendo
que "a imunidade qualifica-se como meio para garantir a promoção de
determinados fins públicos. Ela não pode ser excluída, caso contrário a função
pública das instituições seria restringida."
É
dizer, que a idéia da imunidade recíproca é baratear os custos do fornecimento
dos serviços públicos a serem prestados pelo Estado ou por quem lhe faça às
vezes, para que haja sempre a contínua e eficaz prestação dos serviços sem um
grande ônus para as pessoas políticas.
O
Supremo Tribunal Federal, ao analisar os Embargos de Divergência no Recurso
Extraordinário nº 210.251-2, confirmou a importância de se analisar a aplicação
da imunidade recíproca de modo teleológico. O voto do Ministro Gilmar Ferreira
Mendes corrobora tal assertiva. Veja-se:
"Assim, antes de
recomendar a adoção de uma interpretação que enfatize a necessidade de uma redução
teleológica do art. 150, VI, c, da Constituição, a própria teleologia da
disposição parece recomendar uma interpretação compreensiva do dispositivo, na
linha enfatizada por Baleeiro e, mais recentemente, pelos Ministros Oscar
Corrêa, Sepúlveda Pertence, Carlos Velloso, Sydney Sanches e Nelson
Jobim."
Nesse
mesmo sentido, foi o voto do Exmo. Sr. Ministro Pertence, nos Embargos de
Divergência acima mencionado, ao se referir ao RE nº 134.573:
"Sigo fiel à lição do
grande Baleeiro (Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, Forense, 3ª
ed., 314) – já diversas vezes invocadas nos anais da Casa (v.g, RE 87.913,
9.2.77, Alckmin; RE 89.173, M. Alves, RTJ 92/321) – segundo a qual ‘a
imunidade, para alcançar seus efeitos de preservação, proteção e estímulo,
inspiradores do constituinte, pelo fato de serem os fins das instituições
beneficiadas, também atribuições, interesses e deveres do Estado, deve abranger
os impostos que, por seus efeitos econômicos, segundo as circunstâncias, desfalcariam
o patrimônio, diminuiriam a eficácia dos serviços ou a integral aplicação das
rendas aos objetivos específicos daquelas entidades presumidamente
desinteressadas por sua própria natureza’."
Portanto,
não restam dúvidas de que o repasse, aos Municípios, do ICMS no preço final de
uma conta de energia elétrica, afronta grosseiramente o princípio da imunidade
recíproca e, portanto, o Art. 150, VI, "a" da Constituição Federal.
Concluindo
e citando mais uma vez o grande jurista Humberto Ávila (9), "o
essencial é examinar se o serviço prestado tem caráter de serviço público, ou
se é compatível com um negócio privado", e, no caso, a atividade
prestada é realmente pública; trata-se de um serviço público específico e
indivisível e essencial também é saber se os Municípios são quem suportam todo
o encargo financeiro e, como ficou demonstrado, suportam; e, finalmente, é
essencial reconhecer que as concessionárias, ou permissionárias, distribuidoras
de energia elétrica, atuam como uma extensão da Administração Pública.
Inegavelmente,
é de sabença geral que os Municípios brasileiros passam por sérias
contingências financeiras. Muitos são levados até mesmo a suspenderem as
atividades administrativas diante da ausência completa de recursos.
O
periculum in mora é evidente, pois os Municípios, que fazem jus à
imunidade tributária relativamente ao recolhimento de ICMS incidente sobre o
fornecimento de energia elétrica para a iluminação pública, têm arcado, mês a
mês, com todo o encargo financeiro, referente aos valores de ICMS, sendo que,
conforme já demonstrado, não há uma contraprestação por parte dos usuários. E
como os Entes Municipais já não dispõem de receitas suficientes para custear
todos os serviços a serem prestados, mais difícil ainda fica a situação quando
eles são obrigados a recolher um tributo, sendo que não lhes é devido.
O
próprio Supremo Tribunal Federal, em decisão que analisou o efeito do bloqueio
das parcelas do Fundo de Participação Municipal sobre os Municípios, reconheceu
a situação precária por que eles passam. Vale transcrever um fragmento do voto
do Min. Celso de Mello, na Pet. 2.521-PR:
"A permanecer esta
situação, a Municipalidade, que já vem sofrendo sérios prejuízos de ordem
financeira, em decorrência da atual política econômica, ver-se-á totalmente
desprovida de recursos para fazer frente às suas obrigações, pois necessita das
cotas dos repasses do FPM e de certidões negativas ou certidões positivas com
efeitos de negativa para a celebração de convênios, obtenção de empréstimos,
entre outros. Ademais, quem mais sofre com tal situação é a população carente
da Municipalidade, pois grande parte dos recursos orçamentários são destinados
a programas sociais".
(STF, PET 2.521-PR, Rel. Min. Celso de Mello, fl. 68, DJ
26.04.2002)
Mais
uma vez, faz-se necessário ressaltar que os Municípios já não estão conseguindo
cumprir com todas as prestações públicas que lhes são peculiares, fato que
resulta da falta de verbas e recursos de que dispõem. Porquanto, há sérias
restrições orçamentárias para fazer frente a tal despesa, e ainda mais que se
trata de uma despesa ilegal.
Assim,
se tal afronta ao texto constitucional perpetuar, os danos causados podem vir a
ser irreversíveis ou de árdua reversibilidade. Desse modo, numa eventual ação
declaratória de inconstitucionalidade com pedido de repetição do indébito,
faz-se necessário que, em certas hipóteses, seja possível a concessão de uma
liminar, de forma a evitar a ocorrência de males mais graves e irreparáveis ou
de difícil reparação.
Notas
1
Coelho, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro, 3ª
edição, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1999, p. 259
2
Carraza, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 18ª ed.
rev., ampl. e atual. até a Emenda Constitucional n.38/2002. Ed. Malheiros:
2002, p. 638
3 Ob. Cit., p. 638
4 Ob. cit., p. 639
5
Baleeiro, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 16ª ed. Ver. e atual.
Por Djalma Campos. – Rio de Janeiro: Forense, 2003.
6
Coelho, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro, 3ª
edição, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1999, p. 262
7
Baleeiro, Aliomar. Limitações ao poder de tributar. 7ª ed. ver. e compl.
À luz da Constituição de 1988 até a Emenda Constitucional nº 10/1996. Rio de
janeiro: Forense, 1999, p. 313
8
Ávila, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 1ª ed. São Paulo: Saraiva,
p. 209
9Ávila,
Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 215
*Acadêmico de Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF
Disponível em: http://jus2.uol.com.br/ Acesso em: 22 fev. 2007.