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A responsabilidade objetiva no novo Código Civil e os acidentes do trabalho
Enéas de Oliveira Matos
A responsabilidade civil do empregador
por acidentes do trabalho vai passar por um debate interessante com a vigência
do novo Código Civil em 2003. Isso porque no art. 186 temos a dicção que "aquele
que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito
e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato
ilícito", sendo que no art. 927 consta que "aquele que, por
ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a
repará-lo", e com o seguinte parágrafo único: "haverá
obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos
especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor
do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem." Assim,
trata-se esse dispositivo da introdução no direito brasileiro de uma cláusula
geral de responsabilidade civil objetiva, pelo desempenho de atividade de risco
ou perigosa, poder-se-ia questionar de pronto: ora, a atividade empresarial não
é atividade de risco por seu próprio conceito ? Sob a égide de um contrato de
trabalho, não é um risco inerentemente assumido pelo empregador, e previsível,
a ocorrência de acidentes de trabalho em seus empregados ? Seria, então,
objetiva, a responsabilidade do empregador ?
Desde
já, é certo afirmar, preliminarmente, que para todos os casos que possam ser
considerados de evento danoso ocorrido em sede de desempenho de atividade de
risco ou perigosa, deverá ser aplicada a cláusula geral de responsabilidade
objetiva prevista no novo Código Civil, que se consubstancia em exceção ao
sistema de responsabilidade civil previsto nessa codificação, que seguinte a
nossa tradição, continua sendo pela responsabilidade subjetiva como de regra
geral, antes no art. 159, agora nos arts. 186 e 927 (acima transcritos), no
novo texto civil.
Mas,
com efeito, apesar de algumas vozes já ditarem pela aplicação desse dispositivo
para o caso de acidente do trabalho, tais posições devem ser enfrentadas pelos
advogados com o advento do novo Código Civil não de forma simples e direta. O
que pode se tornar uma grande modificação no enfoque da responsabilidade civil,
como assim restou com a sua presença, por exemplo, no Código Civil de Portugal
de 1966 – portanto, recente e um dos mais lembrados em matéria de
responsabilidade civil, nos seus arts. 483.º, 2., e 493.º, 2., tem a mesma
orientação de responsabilidade objetiva excepcional nos casos fixados em lei, à
regra geral da subjetiva, e responsabilidade sem culpa por desempenho de
atividade perigosa - , no Brasil, com o novo Código, de fato, não significará
grandes mudanças, ao menos no que tange aos acidentes do trabalho. Vale dizer,
até, que a jurisprudência há muito já vem julgando certos casos que eram
tipicamente considerados como de responsabilidade subjetiva, como objetiva, com
fundamento nas teorias do risco da coisa ou do desempenho de atividade
perigosa. [01]
Entretanto,
algumas considerações devem ser tecidas antes de qualquer conclusão.
Desde
a lei 6.376, de 1976, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já vem
decidindo pela possibilidade de responsabilização do empregador por acidentes
do trabalho por culpa, simplesmente, e não tão somente e apenas quando da
ocorrência de culpa grave, nos ditames da Súmula 229, do Supremo Tribunal
Federal. Nesse sentido, é bastante pedagógico o entendimento firmado no
seguinte aresto, para ilustrar e resumidamente entender a questão: "Ementa:
Direito Civil. Indenização (art. 159, CC). Acidente do trabalho. Culpa leve.
Enunciado 229 da Súmula/STF. Lei 6.367/76. Direito adquirido. Precedentes.
Recurso desacolhido. 1. Segundo o entendimento da Turma, a partir da edição da
Lei 6.376/76 passou a não mais prevalecer o enunciado nº 229 da súmula/STF, que
restringia a responsabilidade do empregador pela indenização de direito comum
aos casos de dolo ou culpa grave. Pela reparação civil, devida como decorrência
de sinistros laborais desde então verificados, passaram a responder todos
aqueles que para os mesmos tenham concorrido com culpa, em qualquer grau, ainda
que leve, independentemente da existência, ou não, de vínculo empregatício com
a vítima. 2. Ocorrente o sinistro em abril de 1988, não se há de cogitar de
pretenso direito adquirido a só indenizar nos casos preconizados pelo superado
verbete." [02]
Assim
sendo, a responsabilidade do empregador deve ser entendida de forma subjetiva,
por culpa, e no sistema da culpa aquiliana, ou seja, independentemente do grau
de culpa – até por culpa leve - .
É
claro que mister considerar do grau de culpa para fins de arbitramento da
condenação, como de regra, uma vez que ocorrida culpa levíssima do empregador
não há como se fundamentar e sustentar da pertinência de condenação nos mesmos
moldes da hipótese se tivesse obrado com culpa grave o empregador,
realizando-se, em suma, graduação importante, por exemplo, no momento da
fixação das verbas de reparação de dano patrimonial e extrapatrimonial,
tipicamente cumuláveis neste tipo de ação. Isso com o novo Código Civil, é de
mandamento expresso, nos termos dos arts. 944 e 945. No caso, os acidentes de
trabalho, ocorrendo, ofendem a integridade física do empregado, e assim podem
esses ser titulares de pedidos de danos material e moral, e nesse caso deve ser
cotejada, para fins de fixação dessa reparação pelo juiz, o grau de culpa do
empregador. [03]
Por
seu turno, a Constituição de 1988 veio confirmar o regramento da
responsabilidade do empregador de forma subjetiva, isso no art. 7º, inc.
XXVIII, que possui a seguinte dicção: "seguro contra acidentes de
trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que está obrigado,
quando incorrer em dolo ou culpa". Esse dispositivo veio soterrar
qualquer dúvida da aplicação da Súmula 229, do Supremo Tribunal Federal, ou
seja, responde por culpa e em qualquer grau. Nesse sentido, desde então, ampla
doutrina e jurisprudência vêm entendendo pela responsabilidade por culpa do
empregador. [04]
Entretanto,
sempre se aduziu da pertinência da responsabilidade do empregador de forma
objetiva, com fundamento no risco, para os casos de acidente do trabalho. Por
Outrossim,
por orientação de forte doutrina, destacando-se, dentre outros, Sainctelette,
Josserand e Saleilles, deve-se ressaltar que, tendo em vista que o empresário
aufere lucros com o risco que expõe o trabalhador, de direito a aplicação de
sua responsabilização de forma objetiva, independentemente de culpa, seja pena
natureza contratual da relação que se instaura entre empregador-empregado, com
cláusula ínsita de garantia da incolumidade do trabalhador, onde no caso de
acidente, dá-se o inadimplemento, devendo responder o empresário pelos danos
causados, seja pela teoria do risco, onde o caso da responsabilidade civil do
empregador é exemplar do brocardo ubi onus ibi ius. [05]
Sobre
a aplicação da teoria objetivista são claras as palavras no início deste
século, 1905, de Evaristo de Moraes: "As delongas, as chicanas e os
gastos forenses não são árvores que vicejam apenas no Brasil. Por tôda parte, o
mundo dos tribunais é o inferno dos pobres e dos humildes, em razão dos
meandros da processualística e das alicantinas da rabulice.
Admitindo
que o operário encontrasse patrono gratuito, as despesas com a ação judiciária
de indenização do dano colocavam o trabalhador em posição de evidente
inferioridade perante a parte contrária. A demonstração da culpa, isto é, da
responsabilidade civil do patrão, tornava-se, em cada caso, objeto de demanda
renhida, onde o sofisma e a chicana funcionavam por longo tempo.
Era,
pois, necessário firmar direito Nôvo; reconhecer a responsabilidade dos
proprietários de fábricas, oficinas, armazéns, e dos empregadores em geral,
pelos danos causados aos trabalhadores, mesmo em casos fortuitos. Já não devia
ser a culpa delituosa que servisse de base ao direito; só o infortúnio do
operário deveria ser seu alicerce seguro e inabalável. Em linguagem técnica,
chama-se a essa teoria a do risco profissional." [06]
Tirante
as considerações de ordem de política judiciária, que fogem totalmente da ideal
reflexão que deve nortear o aplicador do direito, diante dessas considerações,
com o novo Código Civil, e o disposto no art. 927, parágrafo único, poder-se-ia
pensar na pertinência de sua aplicação para os casos de acidente do trabalho,
portanto.
Porém,
como acima frisado, a norma que dispõe sobre a responsabilidade do empregador
por acidentes do trabalho é constitucional, assim, essa é hierarquicamente
superior ao Código Civil, devendo prevalecer como é notório, e devemos
salientar que não se deve torcer o texto constitucional para se conformar ao
texto inferior; o contrário é devido: devem todos textos normativos se
conformarem com o texto constitucional, operando-se uma interpretação conforme
a Constituição, que tem dentre seus limites, o teor literal dos dispositivos
constitucionais, que, no caso, é claro no sentido de que a responsabilidade do
empregador por acidentes do trabalho é por "culpa ou dolo", ou seja,
depende de prova de culpa sua, nos termos do art. 7º, inciso XXVIII, da CF/88.
[07]
Assim
sendo, a despeito de opiniões contrárias, e do debate que ainda se instaurará,
tendo em vista a importância do tema, continua a responsabilidade do empregador
a ser ditada nos termos da culpa aquiliana; se antes nos termos do art. 159, do
Código Civil vigente, no novo Código Civil, de 2003, conforme os arts. 186 e
927, que regram a responsabilidade por culpa nessa nova codificação, e, mais
propriamente, por aplicação direta do art. 7º, inc. XXVIII, da Constituição de
1988, valendo registrar que a responsabilidade por culpa continua sendo a regra
geral do nosso sistema de responsabilidade civil, cabendo tão somente a
objetiva para os casos expressamente determinados em lei, ou que a
jurisprudência assim determinar cabíveis por aplicação do art. 927, parágrafo
único, do novo Código, que estipula a sobredita cláusula geral de
responsabilidade objetiva para casos de desempenho de atividade de risco.
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Jr., Humberto, Dano moral, 3º ed., São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000.
Notas
01 Provando a assertiva de Louis Josserand,
em p. 86 de La evolución de la responsabilidad, em Del abuso de los
derechos y otros ensayos, Bogotá, Editorial Temis, 1999, que a história da
responsabilidade civil é a história e o triunfo da jurisprudência, por causa
dos avanços da responsabilidade civil devidos à jurisprudência.
02 Em STJ, rel. Min. Salvio de Figueiredo,
Relator do REsp. nº 12.648-SP.
03 Nesse sentido, pela apreciação do grau
de culpa do causador do dano para fins de fixação da reparação, v., Bittar,
Carlos Alberto, Reparação civil por danos morais, 2º ed., São Paulo,
Revista dos Tribunais, 1994, p. 209; pp. 413 e ss., Gonçalves, Carlos Roberto, Responsabilidade
civil, 6º ed., São Paulo, Saraiva, 1995, lembrando inclusive que tal
critério é de ditame legal, por exemplo, no Código Brasileiro de
Telecomunicações, Lei 4.117/62, e a Lei de Imprensa, Lei 5.250/67; Theodoro
Jr., Humberto, Dano moral, 3º ed., São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000,
p. 35, citando arestos do Tribunal de Justiça de São Paulo e do 2º Tribunal de
Alçada Civil de São Paulo, nesse sentido; Cahali, Yussef Said, Dano moral, 2º
ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998, pp. 177-179 e p. 264; Jorge,
Fernando Pessoa, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil,
Coimbra, Almedina, 1995, pp. 361 e ss., com especial atenção ao art. 494.º do
Código Civil de Portugal, que é expresso nesse sentido; ainda sobre a relação
gravidade culpa e arbitramento da reparação, v., Mazeaud, Henri e Léon, e Tunc,
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94 e pp. 187-188.
04 V., "Indenização. Acidente do
trabalho. Direito Comum. Culpa do empregador. Constituição Federal de 1988. I -
Em caso de acidente de trabalho, constatada a culpa do empregador, ao empregado
é devida a indenização do direito comum. II - Eventual dissonância
jurisprudencial respeitante ao tema estaria superada, pois ao novo texto
constitucional (art. 70, XXVIII) há de adequar-se o
entendimento dos tribunais, inclusive com nova leitura da Súmula 229 do Supremo
Tribunal Federal. III - Recurso Especial não conhecido. Maioria.", em
STJ, REsp. nº 5.358/90-MG, relator Ministro Fontes de Alencar.
05 Nesse sentido, Nelson Silveira
Guimarães, e Rodrigues, Juliana Pereira Ribeiro, Polícia e acidentes de
trabalho, São Paulo, Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e
Medicina do Trabalho, 1998, p. 23; Moraes, Evaristo de, Apontamentos de
direito operário, 2º ed., São Paulo, LTr. e Edusp, 1971, pp. 39 e ss.;
Serpa Lopes, Miguel Maria de, Curso de Direito Civil - Fontes Acontratuais
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atualizada por José Serpa Santa Maria, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1995,
pp. 332-334; Castronovo, Carlo, La nuova responsabilità civile, 2º ed.,
Milão, Giuffrè, 1996, pp. 145 e ss.; Barcellona, Pietro, Formazione e
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e Savatier, René, Du droit civil au droit public a travers les personnes,
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06 Em Moraes, Evaristo de, ob. cit., p. 41.
07 Sobre uma interpretação conforme a
Constituição, v., Larenz, Karl, Metodologia da Ciência do Direito,
tradução de José de Souza e Brito e José António Veloso, 2º edição, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbekian, pp. 168 e ss.; Hesse, Konrad, Escritos de
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Villalon, 2º edição, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1992, pp. 50
e ss.; Müller, Friedrich, Discours de la Méthode Juridique, tradução de
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e ss.; Barroso, Luís Roberto, Interpretação e Aplicação da
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Ferreira, Controle de constitucionalidade na Alemanha: A declaração de
nulidade inconstitucional, a interpretação conforme à Constituição e a
declaração de constitucionalidade da lei na jurisprudência da corte
constitucional alemã, pp. 13-32, in Revista de Direito Administrativo,
Vol. 193; Mendes, Gilmar Ferreira, Jurisdição Constitucional: o
controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha, São Paulo, Saraiva,
1996, pp. 221 e ss., inclusive com criteriosa análise de sua aplicação no
Supremo Tribunal Federal, com a contribuição do Ministro Moreira Alves, em pp.
268 e ss..
Disponível
em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7251
Acesso
em: 06 setembro. 05.