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A Caracterização do trabalho Escravo no Brasil

 

 

Rosivaldo da Cunha Oliveira [1]  

 

 

“Com efeito, não posso conceber que um rebanho, ou qualquer atividade empresarial, por mais importante que seja, ou possa vir a ser, justifique a exploração aviltante e degradante de seres humanos, e que um animal, que por essência existe e é criado para atender às necessidades humanas possa ser considerado mais importante, econômica e socialmente, do que o trabalhador que cuida do mesmo semovente.” [2]  

 

 

A CARACTERIZAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO

Inicialmente, cabe dizer que o termo “Trabalho Escravo” não está contemplado na legislação pátria que trata do tema, e sim “condição análoga à de escravo” (CP 149). E o que vem a ser condição análoga a de escravo? A lei silencia. Temos aí um tipo em aberto; uma norma penal em branco. Cabe pois ao intérprete buscar primeiramente no arcabouço jurídico pátrio, e não encontrando neste, tentar alcançar através da interpretação teológica, a intenção do legislador.

Crítica se faz à conceituação inconclusa dada pelo Código Penal, uma vez que o tipo em aberto deixa também aberto o caminho para a ausência ou pouca efetividade das normas repressivas, entendimento este esposado pelo Juiz Federal, Dr. Flávio Dino de Castro e Costa [3] , ex-presidente da AJUFE – Associação dos Juízes Federais do Brasil.

No atual sistema legal vigente no Brasil, encontramos a Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, celebrada em 1930 e ratificada pelo Brasil em 1958. O artigo 2º da referida norma, no seu item 1, diz que:  “para fins desta Convenção, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.”

Na seqüência, no item 2, do artigo 2º, há a expressa exclusão do conceito do trabalho ou serviço: a) exigido em virtude de leis do serviço militar; b) que faça parte das obrigações cívicas comuns dos cidadãos; c) exigido em decorrência de condenação judiciária; d) exigidos em situações de emergência; e e) pequenos serviços comunitários, executados por membros da comunidade e em proveito comum, após consulta sobre a necessidade do serviço.

Desta forma podemos, com supedâneo na própria legislação pátria, uma vez que trabalho forçado e trabalho em condições análoga à de escravo indicam práticas que se assemelham, caracterizar o trabalho análogo à condição de escravo. Para tanto, basta que este tenha sido exigido com a presença concomitante de ameaça de sanção e que o trabalhador não tenha se oferecido espontaneamente para o labor.

Todavia, percebe-se claramente a existência de um vazio conceitual, que pode realmente vir a fragilizar a efetividade da Justiça, em especial a penal, em face do princípio constitucional inscrito no art. 5º, XXXIV, da CF/88, pelo qual não há crime sem lei anterior que o defina. Assim, uma definição restrita, que é a que encontramos na Convenção nº 29 da OIT pode dificultar a aplicabilidade da sanção penal.

Em face da constatação da fragilidade da conceituação inscrita na Convenção nº 29 da OIT é que temos tramitando na Câmara dos Deputados o PL nº 5.693, de autoria do Deputado Nelson Pellegrini, que com o Substitutivo da Deputada Zulaiê Cobra, vem a definir condição análoga à de escravo, no seu parágrafo único, como: “a de quem é submetido à vontade de outrem mediante fraude, ameaça, violência ou privação de direitos individuais ou sociais, ou qualquer outro meio que impossibilite a pessoa de se libertar da situação em que se encontra.”

Tem-se ainda, o Plano Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo, lançado recentemente – em 11/03/2003 - pelo Presidente da República, com o compromisso velado de erradicar, ainda nos quatro anos do seu mandato, o trabalho escravo existente no Brasil. No seu contexto, dentre as metas de curto prazo, visualiza-se a implementação de alteração da Lei nº 5.889, de 08 de junho de 1973 – Lei do Trabalho Rural, caracterizando o trabalho análogo ao de escravo da seguinte forma:  

 

Plano Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo

Proposta 2

Responsável Presidência da República

Prazo de Execução.‑ Curto Prazo

Projeto de Lei

MEDIDA PROVISÓRIA OU PROJETO DE LEI

Dá nova redação a Lei nº 5.889, de 08 de junho de 1973, que dispõe sobre as normas reguladoras do trabalhador rural, alterando o parágrafo § 4º do art. 18 e determina outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 62 da Constituição, adota a seguinte Medida Provisória, com força de lei:

ou

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA. Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º  O art. 18 da Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973, passa a vigorar com as seguintes alterações:

‘Art.18................

§1º................

§2º................

§3º................

§4º Será punido com multa de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), por trabalhador, sem prejuízo

das sanções penais cabíveis, o empregador rural que, direta ou indiretamente:

I ‑ Reduzir alguém a condição análoga à de escravo:

a) mediante erro, dolo, simulação, coação ou fraude, ardil ou artifício, de modo a subtrair‑lhe a livre manifestação de vontade quanto as reais condições de trabalho que lhe foram propostas; ou

b) mediante ameaça, violência ou privação de direitos individuais ou sociais, ou de qualquer outro meio que dificulte a pessoa de se libertar da situação em que se encontra; ou

c) não assegurando condições do seu retomo ao local de origem; ou

d) vendendo aos seus empregados, mercadorias ou serviços com inobservância do § 3º do art. 462 da

CLT, bem como coagindo‑os ou induzindo‑os para que se utilizem de seu armazém ou serviços com o intuito de obter lucro ou mantê‑los em dívida; ou

e) efetuando descontos não previstos em lei, não efetuando o pagamento de débitos trabalhistas no

prazo legal ou retendo documentos, com a finalidade de manter o trabalhador no local da execução dos

serviços; ou;

f) mediante a imposição de maus-tratos ou sofrimento degradante ao trabalhador; ou

g) vinculando contrato de trabalho, ainda que informal, a pagamento de quantia, direta ou indiretamente ao empregador, por meio de erro, dolo, coação, simulação, fraude, ardil, artifício ou falta de alternativa de subsistência; ou

h) mediante imposição de condições penosas ou insalubres de trabalho, negando‑lhe proteção mínima de vida, saúde e segurança; ou

i) mediante a omissão, a dissimulação ou negação de informação sobre a localização ou via de acesso do local em que se encontra o trabalhador; ou

j) cerceando, de qualquer modo, o livre deslocamento do trabalhador; ou

1)     mantendo vigilância sobre o trabalhador com o emprego de violência ou ameaça.

II ‑ aliciar trabalhadores de um local para outro do território nacional;

III - recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, mediante fraude ou cobrança de qualquer dívida do trabalhador;

§5º Exaurida a via administrativa, o empregador sancionado, em qualquer das hipóteses do parágrafo anterior, não poderá receber e perderá, imediatamente, o direito a benefícios ou incentivos, fiscais ou creditícios, concedidos pelo poder público, diretamente ou através de agentes financeiros.

§6º As hipóteses do parágrafo quarto, também sujeitam o infrator aos efeitos da rescisão indireta do contrato de trabalho, implicando no pagamento das verbas rescisórias ocorrer em procedimento fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego, sob pena de pagamento das multas previstas no parágrafo 81 do art. 477 da CLT.

§7º As multas previstas no parágrafo quarto serão aplicadas pelo Delegado Regional do Trabalho que encaminhará, no prazo de 10 (dez) dias do seu recebimento, cópia dos autos de infração e relatório de inspeção à Procuradoria Regional do Trabalho e à Procuradoria da República, sob pena de responsabilidade.

§8º Em caso de reincidência, embaraço, resistência à fiscalização, desacato à autoridade, emprego de artifício ou simulação com o objetivo de fraudar a lei, ou em caso de trabalho de criança ou de trabalho irregular ou ilícito de adolescente, a multa será aplicada em dobro, sem prejuízo da sanção penal cabível.’

Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 3º Revogam-se as disposições em contrário.”

 

Apesar de extensa, esta caracterização viria a suprir de forma definitiva o vazio legal existente atualmente, trazendo segurança e efetividade jurídica às questões atinentes à matéria, evitando embargos protelatórios nos processos em trâmite nos Tribunais.  

Já se foi o tempo em que o trabalhador escravo era aquele que era castigado quando descumpria as suas obrigações para com o seu senhorio. Nos dias atuais o castigo é ainda maior, estejam eles laborando do nascer ao por do sol em fazendas longínquas no norte da país, ou em fabriquetas imundas do estado de São Paulo, ou quem sabe ainda, em um lar qualquer, próximo de onde residimos.

Nos casos dos trabalhadores encontrados nas fazendas do norte do Brasil, faltam-lhes condições dignas na hora do descanso, pois os alojamentos são simples barracos cobertos com um plástico de cor preta sujeitos às intempéries do tempo; não podem sair, tendo em vista normalmente não haver transporte regular para a cidade mais próxima; não há remédio para o caso de acidentes; a água que bebem é a mesma que os animais bebem e fazem suas necessidades fisiológicas; as necessidades fisiológicas dos trabalhadores são feitas no mato; a comida custa quase sempre o dobro do valor de mercado; e pagam pelas ferramentas de trabalho e equipamentos de proteção.

Constata-se pois, que são pessoas com a cidadania subtraída, ludibriadas e mantidas reféns da ignorância e do medo. Por vezes passam pior do que o gado criado com mimos; são vistos também com desconfiança; normalmente, não mantêm contato com os proprietários das Fazendas; e, às vezes, até mesmo com o gerente desta. Ao chegarem à fazenda são imediatamente largados próximo aos locais de labor - ou escravidão - e os contatos são efetivados através do arregimentador, o chamado “gato”, que faz a empreitada do serviço a ser executado.  

Já endividados desde o início, passam a fazer parte de um círculo vicioso, no qual cada vez mais se vêem com mais dívidas. Se quiserem ir embora, normalmente têm que pagar o transporte de retorno, pois não lhes é oferecido este direito e têm ainda que pagar a dívida impagável para com o contratante que monopoliza a cantina ou o barracão.

É possível a caracterização da condição análoga à de escravo mesmo ante o quase vazio legislativo. Primeiramente, temos quase sempre configurada a ameaça de sanção, quer em face das dívidas a que o empregado foi obrigado a constituir e terá que trabalhar para pagá-la, quer em face da inexistência ou do não-fornecimento de transporte regular para o retorno do trabalhador antes do final do pseudocontrato de trabalho. Esta situação coloca o trabalhador sempre a mercê do intermediário, o gato.  

Em outras ocasiões, que não são poucas, identificam-se ameaças reais à integridade física dos trabalhadores subjugados. Casos há, inclusive, de morte ou mutilação do Trabalhador, veja-se:

 

O calor é tão intenso que o menor movimento provoca um rio de suor. Mesmo procurando encher meus pulmões ao máximo, ainda me falta ar. Na sala do hospital, todos parecem atônitos com tanto calor e tanta dor. Até as moscas parecem indiferentes. Agachada no piso de cimento, tento falar com Albertino. No rosto tem feições indefinidas, como se fosse de mármore negro e liso. Está sentado em um colchão de plástico, mal coberto por uma pequena toalha amarela. Tem o tórax e braço direito totalmente enfaixados. Em uma semana perderá o braço, mas tem sorte, pois ainda está vivo. Dois dias atrás, Albertino, com seu amigo Batista, voltou de um acampamento no meio da selva, onde ambos estavam sendo mantidos como escravos.”[1] [4] (grifou-se)

 

SENADO APROVA A PRIMEIRA INDENIZAÇÃO POR TRABALHO ESCRAVO.

Os integrantes da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado aprovaram nesta terça-feira (17/06/2003) parecer favorável a projeto de lei da Câmara dos Deputados que concede a primeira indenização por trabalho escravo no país. Encaminhado no dia 10 de março pelo governo e tramitando em regime de urgência no Congresso Nacional, o projeto será submetido afora ao Plenário do Senado.

...

O projeto de lei da Câmara trata de caso específico, permitindo que a União indenize a família de José Pereira Ferreira, no valor de R$ 52 mil, por ter sido submetido a trabalho escravo aos 17 anos de idade, em condições desumanas  e sem remuneração, na fazenda Espírito Santo, no sul do Pará. José Pereira sofreu lesões permanentes em seu olho direito quando tentou escapar e foi alvejado por funcionários da fazenda, como relata o secretário especial dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, em sua exposição de motivos.”[2] [5] (grifou-se)

 

O segundo requisito previsto na Convenção nº 29 da OIT diz respeito ao não oferecimento espontâneo do trabalhador. Este requisito é observado em todas as relações nas quais se faz presente a figura do intermediador – o gato. É que este normalmente promete aos trabalhadores, durante a arregimentação, um retorno financeiro sempre superior ao real, havendo muitos casos em que há a promessa da formalização do contrato de trabalho. Ocorre, ainda, quase sempre, o desconhecimento do local de labor, com fins inclusive a dificultar a identificação das fazendas nas quais se utiliza deste tipo de mão-de-obra e o total desconhecimento das condições às quais serão submetidos durante a execução do contrato.

Assim, quanto ao oferecimento para o trabalho, apesar do consentimento do empregado, este sempre há de ser tido como viciado por não representar a real vontade do trabalhador arregimentado sob falsas promessas. Deve-se levar em conta, também, que normalmente estes trabalhadores estão passando por graves situações financeiras e na maioria das vezes devendo às donas de pensão ou mesmo às mercearias onde fazem a feira do mês ou da semana e, ao ouvirem o canto da sereia não têm, infelizmente, como recusar as propostas que lhes são apresentadas.

Constata-se na prática que a maioria dos trabalhadores são aliciados nos bolsões de pobreza da Região Nordeste, em especial no Piauí, Maranhão, Ceará e Pernambuco, Estados assolados por secas e desprovidos de uma rede social capaz de manter seus cidadãos nos seus locais de origens com condições financeiras mínimas para alimentar a si e suas famílias, o que os leva à escravidão involuntária.

 

CONCLUSÃO

Em síntese, percebe-se claramente a necessidade de legislação que venha em definitivo caracterizar de forma mais objetiva o que deva ser entendido como trabalho em condição análoga à de escravo, sob pena de vir a se constatar um abrandamento na efetividade das medidas judiciais em detrimento da situação de real descumprimento dos direitos humanos mínimos dos trabalhadores, que são levados de forma fraudulenta e criminosa a situações de exploração extrema do homem pelo homem, visando unicamente um maior percentual de lucro e a irresponsabilidade total do empregador para com os riscos do empreendimento.* 

[1] Procurador do Trabalho. Membro da Coordenadoria Nacional de Combate ao Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho.

[2] Trecho extraído da Sentença prolatada em 29 de novembro de 2002 pelo Dr. Jorge Antônio Ramos Vieira, Juiz Titular da Vara do Trabalho de Parauapebas/PA em face de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho da 8ª Região contra a Fazenda Palmar de Propriedade do Sr. José Humberto de Oliveira.

[3] O COMBATE AO TRABALHO FORÇADO NO BRASIL – ASPECTOS JURÍDICOS; Texto distribuído pela AJUFE – Associação dos Juízes Federais do Brasil.

[4] BRETON, Binka Le. Vidas roubadas: a escravidão moderna na amazônia brasileira;Trad. Maysa Monte Assis; Edições Loyola: São Paulo, 2002, p. 17.

[5] Informação divulgada pela Agência Senado no dia 27 de junho de 2003. 

 

* Cabe registrar que enquanto a presente revista encontrava-se no prelo, ocorreu substancial mudança do texto do artigo 149 do Código Penal Brasileiro, vindo o crime de Redução à Condição Análoga a de Escravo a ser definido, pela Lei Nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003, da seguinte forma: "Art. 149 <file:///C:\Documents%20and%20Settings\Marlos%20Ápyus\Configurações%20locais\Decreto-Lei\Del2848.htm> . Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.”. Todavia, em face da impossibilidade material de refazer todo o artigo, adequando-o ao novo tratamento legal, decidi mantê-lo com sua redação original, servindo o mesmo para compreensão histórica tema.

 

 

Disponível em: http://www.prt21.gov.br/revista4/texto_06.html Acesso em 08 de junho de 05.