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A Ética da Economia
 

ALMIR PAZZIANOTTO PINTO
Ex-Ministro do Trabalho e Ministro Vice-Presidente do Tribunal Superior do Trabalho



Escreveu Jürgen Kuczinski que a classe trabalhadora moderna é produto da máquina, ou resultado da utilização da energia em equipamentos mecânicos com finalidades econômicas, e conclui afirmando que sem máquinas inexistiria classe operária.

Apesar disso, observa Kuczinski, forte antagonismo desde logo se manifestou entre homem e maquinário, porque a cada novo engenho mais se acentuavam as chances de o trabalhador ficar privado da sua ocupação ou do emprego.

Relata o antigo catedrático do Instituto de Economia Histórica de Berlim que um abade italiano de nome Lancellotti, em escrito publicado no ano de 1636, referia-se a certo Anton Müller, de Dantzig, que havia visto "una máquina muy ingeniosa en aquella ciudad, unos cincuenta anos antes", utilizada na produção de cintos e capaz de fabricar de quatro a seis peças simultaneamente. Por ordem do conselho local, temeroso de que o invento "podia dejar en la calle a gran número de obreros, la habia destruido, y al inventor asfixiado o ahogado en secreto". Segundo Kuczinski, "las batallas libradas por los trabajadores contra la máquina fueron violentas, sangrientas, crueles y ampliamente dispersas, y, naturalmente, no tuvieram exito". (Evolución de la Clase Obrera, ed. Guadarrama, Madrid, 1967).

Revoltas desse tipo se multiplicariam ao longo do tempo e, em determinadas ocasiões, atraíram a tomada de medidas protecionistas, como se deu com o decreto de Leopoldo I, em 1685, proibindo o emprego de equipamentos mecânicos em todo o Sacro Império Romano-Germânico.

De algum modo, a história se repete três séculos depois, quando acelerados avanços da tecnologia, sobretudo na área da informática, provocam o desaparecimento de antigas profissões, suscitando apreensões acerca do futuro de milhões de desempregados. Serviços antes desempenhados por escriturários, bancários, datilógrafos, secretárias, torneiros, desenhistas, soldadores, gráficos, tecelões, são extintos em conseqüência das novas tecnologias e de imperativos de redução dos custos, tornando a cada instante maior o volume dos sem-trabalho ou daqueles que mal conseguem ocupação precária, geralmente no mercado informal.

Em profético livro escrito na década de 1980, Peter Drucker afirmou: "A dinâmica populacional está modificando as prioridades e restrições da política social, tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos. Obrigará os administradores a assumirem a liderança nas mudanças de crenças e convicções largamente difundidas, na mudança das prioridades e na formulação de novas diretrizes de segurança de emprego e renda – diferentemente das abordagens ocidentais de seguro-desemprego e de restrições punitivas à dispensa de pessoal, e diferente também do ‘emprego-vitalício’ japonês. No mundo em desenvolvimento, a primeira prioridade será criar empregos para grandes massas de jovens. Ela terá que preceder o orgulho nacionalista e as convicções, os slogans, os sentimentos e os ressentimentos tradicionais. Pois trata-se de uma questão de sobrevivência; e a sobrevivência é prioritária". (Administração em Tempos Turbulentos, p. 119).

Informações da Organização Internacional do Trabalho revelam existirem mais de um bilhão e duzentos milhões de desempregados e subempregados nos países desenvolvidos e subdesenvolvidos. De acordo com relatório do Banco Mundial, "tanto nos países ricos como nos pobres, há temores de crescente insegurança, na medida em que a mudança tecnológica, a expansão das interações internacionais e o declínio das estruturas comunitárias tradicionais parecem estar ameaçando empregos, salários e a assistência aos idosos". (1995, p. 2).

Especialistas como William Bridges e Jeremy Rifkin, autores de Um Mundo sem Empregos e O Fim dos Empregos, advertem para o fato de o desemprego e o subemprego haverem atingido o seu mais alto nível desde a grande depressão da década de 1930, convertendo-se seus livros em fontes obrigatórias de informações e reflexões, parte de todos aqueles que se ocupam deste tema. A escritora francesa Viviane Forrester lembra, em Horror Econômico, que o sem-trabalho de hoje não é apenas um marginal provisório e ocasional, vítima de infortúnio que abalou apenas alguns setores. Pelo contrário, diz ela, "está às voltas com uma implosão geral", equivalente a tempestades, ciclones, tornados, que não visam a ninguém em particular, mas aos quais ninguém consegue resistir, como se fora "objeto de uma lógica planetária, que supõe a supressão daquilo que se chama trabalho, vale dizer, emprego".

O fenômeno, como se vê, é universal. Excetuando-se os Estados Unidos da América, cuja economia aparentemente se revigora em épocas de crise, e algumas outras poucas nações densamente industrializadas, com altos padrões educacionais e elevada renda per capita, o cenário dominante se caracteriza pela constante subida do número de desempregados, sobretudo nas camadas mais jovens, trazendo como subprodutos instabilidade política, empobrecimento, fome, desesperança, violência.

No Brasil estes problemas adquirem cores particularmente dramáticas, por não conseguirmos superar as barreiras da pobreza, nem mesmo durante passageiros períodos de expansão da economia e do mercado de trabalho. Jamais nos sobressaímos no terreno da pesquisa, pela excelência da mão-de-obra, tampouco em razão do poder aquisitivo dos salários. De outra parte, a legislação trabalhista, essencial para que se tornem nítidas e seguras as regras de convivência entre patrões e empregados, continua sendo essencialmente a mesma desde 1943, consubstanciada na antiga Consolidação das Leis do Trabalho. A Constituição de 1988, que poderia ter sido passo avançado no terreno das instituições jurídico-políticas, transformou-se num manancial de frustrações e, a cada vez que se faz necessário testá-la ou aplicá-la, surgem novas propostas de introdução de mudanças.

A população brasileira está prestes a atingir o patamar de 160 milhões. Oitenta por cento nas cidades e vinte por cento, se tanto, nas zonas rurais. As mais elevadas taxas de urbanização se encontram no sul e sudeste. As mais baixas, no nordeste. A PEA (população economicamente ativa) é de 75 milhões. Os não economicamente ativos estão em torno de 46 milhões. Os desocupados, ou seja, desempregados, correspondem a mais ou menos 9% da PEA, distribuídos desigualmente pelo território nacional. Na região metropolitana de São Paulo, por exemplo, o desemprego já é de 20%. O tempo necessário para se conseguir nova colocação subiu de 44 para 48 semanas.

A história econômica ensina que o progresso tecnológico é irreversível e não causa desemprego, a não ser entre povos incapazes de utilizá-lo vantajosamente. Com tecnologia moderna combatem-se melhor as doenças, salvam-se vidas, reduz-se a mortalidade infantil, amplia-se a expectativa de vida, torna-se mais suave a velhice. Afastam-se trabalhadores de atividades insalubres, perigosas e penosas, aumenta-se a produtividade, cortam-se custos, aprimora-se a qualidade e a durabilidade de alimentos e produtos industrializados. Telecomunicações e transportes fazem-se mais rápidos, eficientes e seguros. Seria ridículo, além de inócuo, no mundo interdependente em que vivemos, se algum êmulo de Leopoldo I decretasse a proibição de empresas se atualizarem, valendo-se de robôs, computadores ou da internet.

Com o território de que dispõe, população em crescimento e tantas necessidades básicas por serem atendidas, ao Brasil outra alternativa não resta senão a de crescer. É indispensável que a economia se desenvolva entre 5% e 6% ao ano, ininterruptamente, gerando algo em torno de 150 mil novos empregos qualificados e bem remunerados a cada mês, para nos livrarmos da estagnação e recuperarmos mais de uma década econômica e socialmente desperdiçada.

Indagado por Arjo Klamer sobre as razões que o levaram a gostar de economia e escolhê-la como área de estudos, Robert E. Lucas Jr., especialista em macroeconomia, Prêmio Nobel de 1995, disse: "Porque sempre gostei de pensar sobre problemas sociais".

A resposta, surpreendente para quem talvez aguardasse ouvir alguma coisa acerca de matemática, moeda ou inflação, coloca em relevo o lado humano desse ramo experimental do conhecimento, cujos objetivos prioritários não deveriam, em hipótese alguma, deixar de lado questões como bem-estar coletivo, prosperidade, mercado de trabalho, poder de compra dos salários.

Também Prêmio Nobel, o economista Amartya Sen observa que uma das surpreendentes características da economia moderna resulta do seu caráter conscientemente nada ético. Registra o professor hindu que a ciência econômica teve dupla origem, as duas relacionadas com a política, embora de maneiras distintas. Uma concernente à ética e a outra "ao que poderíamos denominar de engenharia". Após situar as fontes históricas de cada um desses ramos, o professor Sen admite terem ambos certa capacidade de convencer e conclui registrando, sem disfarçar sua decepção, o "distanciamento crescente entre economia e ética". (Sobre Ética e Economia, Companhia das Letras, 1999).

Todos sabem como as coisas ocorreram neste século. Cabe-nos perquirir como se passarão no próximo, pondo em prática salutar esforço premonitório. Com mais de seis bilhões de habitantes, o planeta ingressará no século XXI amedrontado com a multiplicação – segundo alguns inexorável – do desemprego e preocupado com a ausência de políticas econômicas aptas a promoverem, sobretudo entre pobres e subdesenvolvidos, muito mais do que a estabilidade monetária, o controle da inflação e orçamentos equilibrados.

Existem, devo admitir, promessas de soluções para os graves problemas sociais, mas a longo prazo. A longo prazo, entretanto, como lembrou Keynes, estaremos todos mortos.


Retirado de: http://www.genedit.com.br/2rdt/rdt81/Estudo1-Almir.html