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Propostas para uma agenda de debate sobre o
constitucionalismo europeu no pensamento de Roberto Mangabeira Unger
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy*
Sumário:1.Introdução. 2.Primeiro Tema: Especificidade do
Projeto do Constitucionalismo Europeu. 3.Segundo Tema: O Problema da Terceira Via. 4.Terceiro Tema:
Caminhos Alternativos. 5.Quarto Tema: Economia e Administração Pública em
Contexto Constitucional Transnacional. 6.Quinto Tema: Constitucionalismo
Europeu e Ascendência Norte-Americana. 7.Conclusões. Referências Bibliográficas
Resumo: Trata-se de ensaio que investiga conjunto de
propostas relativas ao constitucionalismo europeu, de acordo com o pensamento
de Roberto Mangabeira Unger. Indica-se campo conceitual marcado pela busca de
uma democracia radical, em desfavor de mera discussão conceitual, de questões
analíticas, de fixação de competências.
Palavras-Chave: Direito Constitucional. Europa. Democracia.
Abstract: The paper argues for mechanisms of institutional
imagination in order to debate the European Constitution, according to Roberto
Mangabeira Unger. It shows an array of conceptual tools in favor of
programmatic proposals towards radical democracy irrespective of traditional
analytical questions regarding sources of legislative power.
Key Words: Constitutional Law. Europe. Democracy.
1.Introdução
Em março de 2002 realizou-se nos Estados Unidos, em Cambridge,
Massachussets, na Harvard University, discussão
a propósito do constitucionalismo europeu. Roberto Mangabeira Unger, brasileiro
que leciona naquela universidade, preparou roteiro para o debate, o qual se
encontra na íntegra no sítio eletrônico do professor e ativista político
[01]. A exemplo do que se percebe no pensamento de Mangabeira Unger, mais
uma vez, não se justifica o que já existe. Tem-se algo novo, inusitado,
convergente com projeto mais amplo e ambicioso de democracia radical [02].
São propósitos do presente artigo contribuir para a divulgação da proposta,
problematizá-la, vinculá-la a nossa realidade transnacional (em âmbito de
Mercosul), bem como identificar que o tratado constitucional europeu de que se
cogita transcende a meros problemas analíticos [03], a exemplo de
simples renúncia de soberania fiscal [04]. A versão para o português
dos excertos que seguem é de minha autoria, e de minha inteira
responsabilidade.
2) Primeiro Tema: Especificidade do Projeto do
Constitucionalismo Europeu
O tema central que anima as reflexões de Mangabeira prende-se às
relações entre criação ou supressão de possibilidades em nível de União
Européia e em níveis nacionais e locais. A proposta de Mangabeira desdobra-se
em cinco temas, que antecedem conclusão, no sentido de que a constituição
européia pode e deve energizar as sociedades do velho continente,
protagonizando-se função muito mais dinâmica do que efêmera instrumentalização
para coordenação entre os signatários do pacto constitucional que se desenha.
Trata-se de oportunidade única para realização de projeto democrático, que ao
menos no plano retórico parece informar a tradição ocidental, tal como plasmada
no ideário europeu [05], especialmente como concebido na trajetória
iluminista que se fundamenta em Kant [06], quanto a um projeto de
paz perpétua, em Spinoza [07] e em Milton [08], no que se
refere à liberdade de expressão, bem como em Rousseau [09], no que
se reporta a versão mais acabada de um contratualismo visionário.
O primeiro tema que Mangabeira aborda se refere à especificidade do
projeto do constitucionalismo europeu. O formalismo que marca a discussão atual
não deixa de apreciar o problema central, isto é, a definição do campo de competência
da União que se formata e dos Estados-Membros que existem, e que contam com
tradições marcadas pela consistência das opções, identificadoras de amplo campo
experimental, justificando-se tese clássica em Mangabeira, e que nos dá conta
de que sociedades são criadas, são artefatos, e que por isso podem ser
transformadas, sem que o caos, a guerra e a desordem sejam necessários.
O professor brasileiro vê que o projeto constitucional europeu fraciona
responsabilidades centrais (da União) e periféricas (dos Estados-Membros); a
esses últimos caberiam definição de direitos básicos, e respectivas dotações;
àqueles primeiros se outorgaria regime de competência relativo a políticas
econômicas e internacionais. Assim,
Na União Européia que se vê nascer, a
definição de direitos básicos e de dotações sociais é responsabilidade dos
Estados-membros. Políticas econômicas e internacionais, no entanto, estariam
sob a responsabilidade de instituições supranacionais. A política econômica é
conduzida por um Banco Central Europeu. A política internacional segue receita
norte-americana, embora com distâncias que variam. Há tendência implícita, como
segue: a) manutenção da maioria dos conflitos distributivos relativos a
tributos e dotações em nível local, enquanto, b) fixação de modelo particular
de instituições econômicas, políticas e sociais e, c) obstaculização de amplo
espectro de possíveis desafios para as políticas presentes, bem como para os
arranjos que hoje há, incluindo-se barreiras que com certa plausibilidade
aprofundam tradições liberais e democráticas [10].
Enquanto se localiza a engenharia que faz ligação entre tributação e
dotação local, modelos particulares seriam formatados por concepções
transnacionais. Tradição liberal e democrática oscila junto a velho dilema da
teoria política clássica, relativo à fixação centrífuga ou centrípeta das
fontes do poder. A questão é recorrente nas discussões sobre o federalismo, em
sua feição vertical; fala-se, inclusive, de modelo federalista que decorreria
do esforço para a concepção de uma constituição européia. Para Mangabeira,
tende-se a se restringir a atuação local, quanto a problemas de muita
visibilidade. Segurança social e econômica seriam prejudicadas. Um poder
transnacional não conseguiria adequadamente tratar tais questões, que também
não seriam enfrentadas por poderes locais, na medida em que a esses faltariam
condições institucionais para definição de rumos macroeconômicos. Para
Mangabeira:
Até o presente momento a evolução para uma
União Européia tem agravado restrições regulatórias e macroeconômicas no que se
refere à habilidade de governos nacionais garantirem segurança social e
econômica para seus cidadãos. Ao mesmo tempo, não se consegue criar estrutura
supranacional que assuma tais responsabilidades, libertando-se de tarefas de
governos locais. Questiona-se se há um desenho constitucional europeu
supranacional que reporte a tais problemas. Também se pergunta se há riscos em
se potencializarem tais questões, conferindo-se natureza constitucional para
essas restrições ou limitando-se variáveis constitucionais que poderiam fazer
frente a desafios vindouros [11].
3) Segundo Tema: O Problema da Terceira Via
O segundo tema que Mangabeira desenvolve é relativo à tendência que há
no tratado constitucional europeu no sentido de aderir ao que se nomina de terceira via, tal como a concepção
fora desenvolvida por Anthony Giddens [12]. Por conta dos problemas
sociais que a primeira via
suscita, decorrentes de neoliberalismo de suposta convergência que define
políticas econômicas de globalização [13], e também por causa do
fracasso do socialismo real, que definiria uma segunda via, tenta-se humanizar o inevitável: é a marca dessa
suposta terceira via. Para Mangabeira,
tal tripartição de caminhos é ilusória. O que se tem é apenas uma via, à qual
pode se propor tão-somente uma segunda senda [14], porquanto somos
sufocados por instruções que decorrem do chamado Consenso de Washington
[15]. Mangabeira inquieta-se com ingenuidade que procura amalgamar
proteção social do modelo alemão weimeriano [16] com a flexibilidade
que caracteriza o estilo norte-americano. O professor brasileiro vê muito mais
do que impossibilidades topográficas, na aproximação entre o Vale do Reno e o
Vale do Silício. E de tal modo,
A abordagem que se tem em relação à alocação
de poderes e responsabilidades entre a União Européia e Estados-Membros não é
neutra quanto a direções alternativas de política econômica ou de
desenvolvimento de formas de vida e de consciência. Há certa inclinação para
com opções de terceira via. Do ponto de vista da política econômica, o plano
constitucional que se desenvolve pretende possibilitar que a Europa conte com o
modelo renano de proteção social, bem como com o paradigma norte-americano de
flexibilidade econômica. Quer-se tudo. Paulatinamente, características de
democracia social têm sido abandonadas, na esperança de melhor se preservar o
essencial de democracia social de feição liberal: parcerias sociais e gastos
sociais redistributivos. Esses últimos, calcados em modelos exacionais
regressivos, centrados na tributação sobre o consumo [17].
O que se tem como resultado é a generalização da insegurança, dado que
não se consegue aproximar segurança social com flexibilidade, por intermédio de
modelo tributário que se concentre tão-somente na regressividade. Isso é,
embora a tributação indireta sobre o consumo seja mecanismo regulador e
propiciador de distribuições e de dotações sociais, não se atingem esses dois últimos
objetivos, sem que propicie, realmente, condições de acesso ao trabalho e ao
consumo. E ainda, o que mais problemático, a ampliação do poder de consumo
resulta em degradação ambiental e em disfunções ecológicas que marcam mais um
nicho complicador [18]. Mangabeira questiona como se conciliar a
flexibilidade do capitalismo norte-americano com passivo social que se deve
prioritariamente enfrentar:
Reformas modernizadoras podem ser
justificadas em nome da renovação econômica, de gerenciamento prudente das
finanças públicas e, principalmente, da mitigação de barreiras que separam
insiders e outsiders no mercado de trabalho. Todavia, o resultado não tem
propiciado flexibilidade que beneficie a todos. O que se percebe com mais
freqüência é a generalização da insegurança econômica, bem como a concentração
de recursos e de oportunidades nas mãos de elite com interesses voltados para a
economia mundial. Pergunta-se qual a estrutura transnacional que se busca com o
objetivo de se alcançar uma Europa que garanta o que descrevi acima. E a
questão se desdobra em duas outras: que estrutura específica seria
provavelmente materializada na constituição européia que se prepara, bem como
qual modelo propiciaria espaço para o desenvolvimento de alternativas
progressista [19].
4) Terceiro Tema: Caminhos Alternativos
Colocado o problema, nos termos de conciliação entre opção social e
flexibilidade negocial, não resolvido pelo tratado constitucional europeu,
Mangabeira passa para terceiro tema, que suscita conjunto de caminhos
alternativos para o constitucionalismo europeu. Como ponto de partida,
Mangabeira cogita da criação de estrutura normativa transnacional que se mostre
independente de qualquer compromisso com a suposta terceira via, embora o realismo da circunstância presente não
possa descartar a possibilidade. Mangabeira então apresenta duas hipóteses.
Trata-se da imaginação institucional levada ao limite na análise do direito
[20].
Na primeira delas desenha-se rota de mudanças progressistas, afeiçoada
às condições contemporâneas da Europa. Propõe que seja dada ênfase a dotações
sociais básicas, mediante a redistribuição de bens, ao invés da utilização de
mecanismos de extrafiscalidade, a exemplo da regressividade que identifica a
tributação indireta sobre o consumo. Outro passo consiste na potencialização de
investimentos em programas educacionais, com o objetivo de se fortalecerem
habilidades práticas e conceituais, em detrimento de iniciativas pedagógicas de
mera repetição mnemônica. Mangabeira insere nessa primeira proposta a
radicalização da competitividade. Dá-nos conta de meios negativos e
afirmativos; entre esses últimos o uso de capitais de risco para o apoio de
empreendimentos; entre os primeiros, a concepção de modelos normativos
eficientes, a exemplo de adequada legislação antitruste.
Essa primeira hipótese ainda cuida de um projeto para ampliação do
conjunto nacional de poupança e investimento produtivo. Para tal, prevê-se
poupança compulsória que objetive fortalecimento da produção; tais mecanismos
se desenvolveriam em ambiente alternativo ao do mercado de capitais.
Concomitantemente, ter-se-ia tentativa para desenvolvimento de parcerias entre
iniciativa privada e poder governamental. Optar-se-ia por esquema que fugiria
da igualdade formal do modelo norte-americano, bem como de fórmulas asiáticas
orquestradas por burocracia centralizada, e que exigem criação de fundos e de
núcleos de apoio que aproximem empresas e Estado.
Mangabeira ainda sugere modelo constitucional que possibilite
desenvolvimento de esforço obstinado para se aproximar sistema produtivo e
assistência social não governamental. Possibilitar-se-ia o incremento de
organizações civis independentes: associações de moradores, de grupos civis
preocupados com educação, assistência à saúde e prevenção do crime, bem como
com sindicatos que defendam trabalhadores temporários, a par de trabalhadores
empreendedores, isto é, que também sejam patrões. Essa hipótese orienta-se
também pela combinação de traços de democracia direta e representativa nos governos
locais e nacionais.
Sob a denominação de hipótese
A, esses elementos informariam o conteúdo do texto constitucional
europeu. Tem-se democracia social altamente experimental, cuja compatibilidade
com o tratado constitucional que se tem é implacavelmente duvidosa. O que
Mangabeira sugere é que a realização desses mecanismos exige o enfraquecimento
do esquema constitucional da União Européia em favor de seus Estados-Membros,
de modo que o conjunto que se tenha acomode o programa explicitado na hipótese A. Junto à mesma questão,
Mangabeira alonga o debate e pergunta se o modelo que se desenha permite que se
cruzem os limites que caracterizam instituições e ideologias presentes.
Depois de colocar o problema sob o enfoque de proposta progressista, de
fortalecimento da democracia, Mangabeira passa a considerar a questão sob
ângulo oposto, tendo como vértice o próprio tratado constitucional europeu. Na
agenda que preparou para o debate, Mangabeira identifica esse segundo conjunto
como hipótese B. E para tal propõe
que se tenham parâmetros no texto constitucional europeu que hoje se conhece.
Em primeiro plano cogita da definição precisa de dotações e proteções sociais
básicas, com recursos oriundos (se necessário) de transferências
redistributivas no contexto interno da União, garantindo-se sobrevida a
mecanismos de fundos estruturais. Pensa na observação de conjunto de garantias
normativas, que instrumentalizem os cidadãos para que possam obter compensações
de Estados-Membros que tenham falhado em alcançar patamares sociais mínimos.
Tem-se em vista modelo de prestação jurisdicional, que escapa a concepções
clássicas de responsabilidade do Estado, em suas nuances objetiva e subjetiva.
De qualquer modo, é imprescindível a garantia de amplo espaço de ação
para que governos nacionais, regionais e locais possam experimentar
alternativas que se desenvolvam com independência em relação a restrições
regulatórias e macroeconômicas. Mangabeira exemplifica o conjunto dessas
restrições com doutrinas de saneamento econômico difundidas pelo Banco Central
Europeu. Tudo, evidentemente, à luz de esforços para que se combinem traços de
democracia direta e representativa em níveis transnacionais e nacionais. E em
seguida, a dúvida:
Questiona-se agora se tal projeto
constitucional não qualificaria justamente o inverso do desenho que prevalece,
frágil em dotações sociais universais, prenhe de fortes limites macroeconômicos
e regulatórios para inovações nacionais, regionais e locais. Pergunta-se se não
seria o tratado constitucional de que se cuida expressão mais plausível de
comprometimento professo para com modelo social que supostamente se encontra no
centro de uma nova identidade européia, também preocupada com compromissos de
paz perpétua. Também se questiona se essa alternativa constitucional não seria
mais receptiva para amplo espectro de alternativas futuras que europeus
poderiam desenvolver em seus respectivos países e comunidades. E, por fim,
ainda se pergunta se tal modelo não seria conseqüentemente mais receptivo para
com preocupação fundamental dividida por liberais e sociais democratas, para
que se possa descobrir, por meio da experimentação, o que melhor funciona
[21].
5) Quarto Tema: Economia e Administração Pública em
Contexto Constitucional Transnacional
Apresentadas as duas hipóteses, a primeira delas centrada em alternativa
progressista, e a última mais adequadamente afeiçoada ao que se tem
presentemente, Mangabeira avança para um quarto tema, que se desdobra dos
anteriores, e que é no entanto nuclear: a coordenação entre economia e
administração pública em contexto constitucional transnacional.
Parte da argumentação que dá conta de que modelo diferenciado de
trabalho e de cooperação tem se verificado em setores mais avançados de
produção e de aprendizagem, isto é, em fábricas, centros produtivos e
universidades de ponta [22]. Entre esses focos forma-se rede
tecnológica que detém o comando da economia mundial. E ainda segundo
Mangabeira:
Setores avançados são caracterizados pela
atenuação de contrastes fortes entre regras de supervisão e de execução, por
mistura fluída de convergência e de competição (a exemplo do que se passa em
regimes de cooperação entre empresas pequenas e de tamanho médio), pela busca
de inovação permanente, bem como por disposição para se redefinirem interesses
e identidades. A emergência dessa forma de coordenação aberta em muitas das
áreas da vida prática, dentro e fora do sistema produtivo, faz-se acompanhar
por insistência em elos horizontais em detrimento dos verticais. A
experimentação, em decorrência de conseqüências morais, sociais e econômicas, é
o grito de guerra que estimula tal perspectiva [23].
O modelo europeu tem aderido a tal ponto-de-vista. De acordo com
Mangabeira, tem-se menos um programa
do que um modismo [24]. Existe obstinação nos projetos
europeus, porquanto parece para Mangabeira que se tentam proliferar Vales do
Silício no velho continente. Também, ao que consta, para Mangabeira, a própria administração pública, em níveis
transnacionais e nacionais, tem reagido entusiasticamente a esses slogans
[25]. Mangabeira percebe ainda uma comitologia, isto é, a proliferação de comitês, que acabam
fortalecendo burocracias intermediárias que tratam de políticas e modelos
fiscais, sempre em nome de coordenação possível de flexibilidade. Porém, esse
experimentalismo é tímido, conservador, não transcende aos limites da chamada terceira via. Mangabeira propõe
ideário mais ambicioso e completo, utilizando-se o que imaginou na hipótese B, que deve ser intercalada
com proposta mais nacionalista que identificou na hipótese A.
6) Quinto Tema: Constitucionalismo Europeu e
Ascendência Norte-Americana
Alcança então Mangabeira um quinto tema, pertinente às relações entre o
constitucionalismo europeu e a ascendência sobre ele exercido pelos Estados
Unidos da América. Mangabeira coloca o problema nos seguintes termos:
Uma forte alternativa constitucional em nível
transnacional, concebida para favorecer a criação, coexistência e rivalidade de
alternativas no contexto europeu exige vontade para realização fática. Isso
também significa que a Europa deva defender ordem global que seja amistosa para
com a potencialização da diversidade, baseada na democracia e no
experimentalismo. Trata-se de diversidade de instituições, de estratégias
nacionais e de desenvolvimento de formas de vida e de consciência. Uma Europa
intimidada pelos Estados Unidos amargará falta de recursos práticos e
espirituais com os quais poderia protagonizar tarefa transformadora [26].
O tratado constitucional europeu deve propiciar modos de se dialogar com
a presença norte-americana. O engrandecimento europeu vincula-se a política de
enfrentamento, de concepção de posição firme, viável, independente.
Especificamente, segundo Mangabeira:
Uma constituição européia alternativa
permanece comprometida com a construção de multilateralismo global mais
genuíno. Exige comprometimento para com problemas que resultam da hegemonia
norte-americana. A Europa não consegue isoladamente resolver tal dilema.
Nenhuma solução, no entanto, provavelmente emergirá sem que se conte com o
engajamento europeu [27].
É então que Mangabeira sugere uma hipótese
C, identificadora do constitucionalismo europeu em face da composição
internacional de forças. Para tal, Mangabeira sugere opção alternativa ao
modelo das Nações Unidas, vigente desde o término da segunda guerra mundial, em
1945. Esse novo modelo teria três pontos de apoio. O primeiro deles seria
formado por corrente de opinião internacionalista que viceja em setores
progressistas dos Estados Unidos da América [28]. O segundo foco de
poder seria representado pela própria União Européia. E o terceiro ponto de
apoio seria cristalizado por alguns países periféricos continentais, que
Mangabeira localiza na China, na Índia, na Rússia, no Brasil e na Indonésia. O
ponto de partida da referida hipótese
C desenvolve-se dentro desse triângulo geopolítico hipotético que não dá
atenção aos modelos clássicos de política internacional, a exemplo das
concepções que marcaram as tipologias de Metternich, de Bismarck e de Woodrow
Wilson. Nega-se totalmente a fórmula das Nações Unidas, contingencial e
realisticamente inadequada para problemas presentes, a exemplo do que se
verifica com a presença norte-americana no Iraque. Embora, bem entendido,
negue-se também feição encolhedora do Estado contemporâneo [29].
Essa hipótese C,
concebida para o tratado constitucional europeu, porém, orientada para
concepção alternativa de política internacional, indica que questões mais importantes de segurança internacional e de redesenho
de instituições internacionais seriam decididas por consenso entre parceiros
multilaterais [30]. Segundo Mangabeira, esse consenso seria definido por meio de acordo firmado pelos Estados
Unidos, pela União Européia e pela pluralidade dos países periféricos continentais
[31].
É premissa que os parceiros dos
Estados Unidos reconheceriam o fato de que existe ascendência norte-americana,
sem que isso signifique legitimidade ou eternidade [32]. Essa
suposta entente não toleraria
nenhuma ameaça a interesses vitais norte-americanos, objetivamene, a partir de
alguns termos que seguem. É que, segundo Mangabeira, o mecanismo exige que os Estados Unidos reconheceriam que não
desafiariam o consenso que brotasse da entente, exceto em circunstâncias
extremas [33]. E ainda, de acordo com Mangabeira, a decisão relativa ao que seria interesse
vital da segurança norte-americana seria apenas em última instância uma opção
isolada dos Estados Unidos [34].
O professor brasileiro fia-se no fato de que como poder hegemônico de fato, com interesse em se livrar dos perigos
da anarquia e dos ônus de situação imperial que protagoniza, os Estados Unidos
da América funcionariam como garantidores do regime multilateral [35].
O modelo ainda tem como premissa a assertiva de que os Estados Unidos somente
em condições extremas definiriam o cardápio de interesses vitais de segurança,
em desacordo com definições e agenda dos demais países protagonistas da
fórmula. Mangabeira cogita de mecanismo de estabilização, isto é, o desafio da entente aumentaria a possibilidade de
implemento daquilo que a política externa norte-americana mais teme: uma
aproximação prenhe de segundas intenções por parte da Europa e de poderes
emergentes, contra a hegemonia norte-americana.
Nos termos da proposta de Mangabeira, tal como traduzo:
Tal modelo circunstancializa tentativa de se
escapar dos contrastes perigosos que há entre fato bruto e consumado que dá
conta da hegemonia norte-americana, cotejado com ideal normativo fantasioso
relativo à igualdade jurídica entre Estados. Não se tem situação legal ou
extralegal. Tem-se concepção proto-legal, que nos remete a modelo clássico
europeu de equilíbrio de poderes nacionais. Tem-se desenho que remonta a
Bismarck, em detrimento de percepções baseadas em teses de Metternich ou de
Woodrow Wilson. Ao contrário dos modelos fossilizados em um Conselho de
Segurança, tem-se engenharia institucional internacional flexível e atenta ao
balanço de forças. Tem-se conseqüentemente um atributo vital: pode-se evoluir à
luz da experiência sob a pressão da realidade [36].
E com o torneio retórico e apelativo que qualifica sua fala, Mangabeira
suscita posição visionária, no estilo de Jefferson e de Mill:
No âmago de tal concepção encontra-se uma
barganha. Por meio das vozes de países de menor poder o mundo reconhece o fato,
mas não o direito, de que há ascendência norte-americana, o que faz em troca de
avanço do multilateralismo. Os Estados Unidos da América, em contrapartida,
aceitariam regime que aumenta o preço a ser pago por qualquer atuação
unilateral que desafie o acordo multilateral. Assim, os Estados Unidos
concordariam com o modelo proposto, em permuta por reconciliação com o núcleo
de seus interesses morais e materiais, que países de menor poder aceitariam,
defenderiam e desenvolveriam [37].
O tratado constitucional europeu exerceria papel nuclear nesse mecanismo
proposto. A referida hipótese C tem
alcance mundial, embora colocada originalmente em termos de proposta para o
constitucionalismo europeu. Alavanca a tese final da proposta de Mangabeira,
relativa à discussão do constitucionalismo europeu:
Considere-se agora a tese que segue. Embora
em primeira vista não pareça assim, o desenvolvimento de um projeto europeu
forte, definido como capaz de promover diferenças européias, bem como
diferenças dentro da Europa, é inseparável da formação de uma nova ordem
mundial multilateral. Para que tal ordem se implemente, a União Européia deverá
tomar iniciativas no sentido de desenvolver um regime tal como definido na
hipótese C. Uma constituição européia alternativa e um novo globalismo
multilateral exigem responsabilidades paralelas e recíprocas. Demandam-se
alianças difíceis de engenharia governamental e de visão institucional
[38].
7) Conclusões
De tudo segue conclusão que propõe constituição européia que possa e que
deva ajudar na potencialização da democratização das sociedades européias, não
apenas protagonizando mecanismo de colaboração para políticas possíveis, que
humanizem o inevitável, tal como proposto pela terceira via.
Segundo Mangabeira:
Uma constituição européia poderá fortalecer
as condições para a criação de modelos novos e diferentes de iniciativa nas
vidas econômica, social e política dos Estados-Membros. É tão-somente pelo
desenvolvimento, pela rivalidade, bem como por testes em experimentos locais e
nacionais que as sociedades européias conciliarão solidariedade social e ganhos
em eficiência, obtendo-se muito de ambos, ao invés de um pouquinho dos dois,
como propõe a terceira via. Requisito essencial consiste na predisposição para
inovação institucional em âmbito de União, bem como no contexto dos
Estados-Membros. E a promessa de tal resultado exige que se quebre o ritmo
pouco esperançoso da história européia [39].
Criticando determinismo que exige catástrofes como mecanismo de mudança,
Mangabeira admite esse naturalismo da teoria social clássica como alternativa a
ser enfrentada, embora desnecessária e falaciosa:
Seja mediante a guerra ou depressão
econômica, seja pela rendição em tempos de paz para pequenos prazeres e
ambições (entusiasmo entre sofrimento e matança ou segurança com sonolência),
tal escolha parece ser o preço que se tem que pagar se há pretensões em se
escapar do que hoje há. Assim, a questão central que o momento constitucional
nos põe, consiste em um quebra-cabeça familiar ao europeu, e que é
substancialmente humano: como se acordar, e se permanecer acordado,
independentemente do estímulo produzido pela crise e pela catástrofe. Paz
desmerecida torna-se o ponto central. Mas pode se tornar parte da solução. O
requisito básico consiste na aproximação entre uma visão de oportunidades até
hoje não realizadas na Europa com um conjunto inovador de arranjos
institucionais [40].
Os cinco temas desenvolvidos por Mangabeira suscitam duas hipóteses
internas e uma hipótese de política internacional. Essa última despreza o
modelo da Organização das Nações Unidas e centra-se em mecanismos de consenso
que sugerem aproximação entre três núcleos de poder: setores progressistas dos
Estados Unidos, Europa e países emergentes. Em que pese bem engendrada a
hipótese, duvida-se de sua factibilidade, porquanto desafia realismo que marca
a política internacional.
Em âmbito mais endógeno, Mangabeira promove leitura democrática radical
(que segue seu projeto conceitual) que se intercala com mecanismos
substancialmente mais tradicionais. De qualquer modo, para Mangabeira, a agenda
de debates em torno do constitucionalismo europeu carece de mecanismos
normativos ou interpretativos que levem em conta políticas macroeconômicas que
ensejem medidas locais determinantes de redistribuição de riquezas. Tem-se
conjunto que mitiga o Estado tradicional, sem que isso signifique adesão a terceira via, que combinaria soluções
de protecionismo renano com a flexibilidade típica do capitalismo
norte-americano. Mangabeira bem sabe que não há como se obter tudo ao mesmo
tempo. Não há método de Pôncio Pilatos; é o sacrifício que constrói o bem
estar, e a regra de experiência também é válida para o constitucionalismo
contemporâneo.
Transposição para constitucionalismo sul-americano, de eventual
concepção normativa mais ampla de Mercosul, em princípio, suscitaria o mesmo
conjunto de precauções. Na proposta de Mangabeira fica muito explícita a
necessidade de que mecanismos supranacionais de constitucionalidade sejam menos
instrumentos de coordenação de políticas internas, em favor de articulações de
alternativas progressistas ensejadoras de políticas democráticas.
Especialmente, no que toca à relação com os Estados Unidos, o pensamento
de Mangabeira parece agregar-se à percepção que hoje se desenha, de
hostilidade, para com o projeto universalista norte-americano. Nesse sentido,
em âmbito de tratado constitucional europeu, tem-se oportunidade para se
cogitar de mecanismos de enfrentamento garantidores de maior liberdade de ação,
levando-se em conta, naturalmente, a hegemonia norte-americana, e a ascendência
exercida por esses últimos junto à economia européia, circunstância que se
afirma desde a intervenção norte-americana na primeira guerra mundial.
Roberto Mangabeira Unger, professor de direito na Harvard Law School, nos propõe
orientação constitucional instrumental e pragmática, com vistas à construção de
entorno humano democrático e solidário. Visionário e romântico, embora intrigante
e estimulante, o projeto de Mangabeira desponta por não justificar o que já
existe, praga que marca a ciência social contemporânea, bem como incomoda por
propor o que a primeira vista parece utópico e impossível: o desmonte
consensual da hegemonia norte-americana e a realização de dotações sociais no
continente europeu. Mangabeira desafia a história.
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Notas
01 O interessado na
íntegra do texto da proposta deve acessar www.robertounger.net.
02 Ver Roberto
Mangabeira Unger, Politics, The
Central Texts, bem como copioso debate que segue a obra, especialmente
em Robin Lowin e Michael Perry (editores), Critique and Construction- a Symposium on Roberto Unger´s Politics.
03 A União Européia
é tema de extensa bibliografia. Consultar Timothy
Bainbridge, The Penguin Companion to
European Union. Em lingual portuguesa, especificamente, João Mota
de Campos e João Luiz Mota de Campos, Manual
de Direito Comunitário, bem como Miguel Gorjão-Henriques, Direito Comunitário. Do ponto de
vista dogmático, Philippe Manin, Droit
Constitutionnel de L´Union Européenne. Por fim, e por todos,
reminiscências de um dos maiores lutadores por uma União Européia, Jean Monnet,
Memórias, a Construção da Unidade
Européia.
04 Consultar Victor
Thuronyi, Comparative Tax Law.
05 Ver Richard Tarnas,
The Passion of the Western Mind,
especialmente p. 341 e ss.
06 Itinerário de
Kant é tema de biografia lançada em 2001, de autoria de Manfred Kuehn,
especialmente p. 329 e ss.
07 Ver Rebecca
Goldstein, Betraying Spinoza.
08 Fundamental a
leitura e o estudo parcimonioso de Aeropagítica-
Discurso pela Liberdade de Imprensa ao Parlamento da Inglaterra.
09 Ver recente
estudo (2005) de Leo Damrosch, Jean-Jacques
Rousseau, Restless Genius.
10 Roberto
Mangabeira Unger, Constitucionalismo
Europeu: Propostas para uma Agenda de Debate, doravante, Propostas.
11 Roberto
Mangabeira Unger, Propostas.
12 Consultar Anthony
Giddens, The Third Way, bem
como, do mesmo autor, Beyond Left and
Right, The Future of Radical Politics.
13 Ver Paul Hirst e
Grahame Thompson, Globalization in
Question, e Richard Falk, Predatory
Globalization, a Critique.
14 Roberto
Mangabeira Unger, Necessidades Falsas.
15 Crítica
contundente ao Consenso de Washington é tema do seminal The Globalization of Poverty, de Michel Chossudovsky. Quanto ao
Brasil, p. 191 e ss.
16 Para a
Constituição de Weimar e o debate que marcou aquela época, Peter C. Caldwell, Popular
Sovereignty and the Crisis
of German Constitutional Law, bem como Arthur J.
Jacobson e Bernhard Schlink (editores), Weimar,
a Jurisprudence of Crisis. Do ponto de vista histórico, Martin Kitchen, A History of Modern German, 1800-2000,
p. 220 e ss. Ainda, James Joll, Europe
since 1870, p. 239 e ss.
17 Roberto
Mangabeira Unger, Propostas.
18 Ver Lester R.
Brown, Eco-Economy, Building an
Economy for the Earth, p. 233 e ss.
19 Roberto
Mangabeira Unger, Propostas.
20 Roberto Mangabeira
Unger, What Should Legal Analysis
Become?
21 Roberto
Mangabeira Unger, Propostas.
22 Conferir Manuel
Castells, The Rise of Network Society,
p. 28 e ss.
23 Roberto
Mangabeira Unger, Propostas.
24 Roberto
Mangabeira Unger, Propostas.
25 Roberto
Mangabeira Unger, Propostas.
* Professor universitário em Brasília (DF).
Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP.
Procurador da Fazenda Nacional.
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10769
Acesso em: 09 set.
2008.