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A força normativa dos tratados internacionais de direitos humanos e a Emenda Constitucional nº 45/2004
Anselmo Henrique Cordeiro Lopes*
Sumário:1. Introdução. 2. A concepção de direitos humanos. 3. A
controvérsia sobre a hierarquia normativa dos tratados internacionais de
direitos humanos antes da EC 45/2004. 4. A interpretação autêntica imposta pela
EC nº 45/2004. 5. A questão da discricionariedade do Congresso Nacional para
realizar o procedimento de constitucionalização dos tratados de direitos
humanos. 6. Direitos humanos fundamentais implícitos e explícitos. 7.
Direitos humanos e cláusulas pétreas. 8. Conclusão.
1. Introdução
No
dia 8 de dezembro de 2004, a Proposta de Emenda Constitucional da Reforma do
Judiciário foi aprovada e promulgada, surgindo a Emenda Constitucional nº 45. O
texto entrou em vigor no dia de sua publicação, 31 de dezembro de 2004,
ressalvado o prazo de 180 dias para ser implantado o Conselho Nacional de
Justiça e o do Ministério Público.
A
chamada Reforma do Judiciário, em verdade, é muito mais que regramentos novos
ao Poder Judiciário; traz alterações que permeiam todo o mundo jurídico. Entre
as alterações, está o surgimento do parágrafo 3º do art. 5º da Constituição da
República.
O
parágrafo acrescentado determina que tratados (1) internacionais
relativos a direitos humanos ratificados pelo Brasil tenham status
constitucional, desde que sejam "aprovados, em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros", passando a ter, após tal procedimento, valor de emenda
constitucional.
O
Constituinte Derivado, nesse ponto, veio tratar de tema que parecia resolvido
no seio do Supremo Tribunal Federal, mas que continuava maldigerido no campo
doutrinário: o enquadramento hierárquico das normas internacionais de direitos
humanos dentre as fontes normativas do sistema jurídico brasileiro. Ressurge,
assim, a já antiga questão, devendo sofrer nova análise com base na
interpretação imposta pelo novel preceito de nosso Diploma Fundamental.
A
questão é relevantíssima, uma vez que há inúmeros preceitos internacionais cuja
compreensão ainda não foi bem desenvolvida e cuja força deôntica também não vem
sendo bem aplicada na solução dos casos concretos, em casos, p. ex., de prisão
de depositário infiel, de garantias penais e processuais, dentre outros.
A
mudança no Estatuto Magno, como voltaremos a ressaltar mais à frente, não é
meramente técnica ou estilística; traduz, em verdade, a preocupação do
Constituinte em preservar os interesses básicos do homem e da humanidade, ainda
que muitos deles não estejam expressos claramente nos textos de direito
positivo nacional, mas que já começam a brotar nas fontes internacionais.
2. A concepção de direitos humanos
Para
melhor entender a alteração constitucional ora estudada, o primeiro passo é
verificar o que se entende por direitos humanos.
A
idéia sobre direitos que sejam próprios da razão humana e de sua essência
remonta à Antigüidade, tendo paralelo com as chamadas "leis
não-escritas" percebidas pelos filósofos gregos e com o ius gentium
averbado pelos jurisconsultos romanos, como bem lembra F.K. COMPARATO (2).
Contemporaneamente,
as expressões "direitos fundamentais" e "direitos humanos"
vêm sendo empregadas como se sinônimas fossem, sendo a primeira preferida pelos
estudiosos do Direito Internacional e a segunda pelos constitucionalistas.
Contudo, é necessário perceber a diferença semântica aí presente. Nota-a J.J.
CANOTILHO: "Segundo a sua origem e significado poderíamos distingui-las da
seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os
povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos
fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente
garantidos e limitados espacio-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam
da própria natureza humana e daí o seu carácter inviolável, intemporal e
universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes
numa ordem jurídica concreta" (3).
Assim,
a compreensão do que sejam os direitos humanos dá-se pelo seu conteúdo: a
tutela dos interesses comuns de todos os seres humanos e que deve abranger
todos eles. Já os direitos fundamentais são conhecidos pela sua forma
positivada, com a qual o Estado protege posições jurídicas especialmente, entendendo
serem essenciais ao homem e à coletividade. A princípio, pela concepção de J.J.
CANOTILHO, o conjunto dos direitos humanos seria mais amplo que o dos direitos
fundamentais, pois aqueles podem ou não ser positivados, investindo-se na forma
destúltimos ao serem-no. Porém, a assertiva não é necessariamente correta,
visto que pode o Estado eleger como fundamentais direitos que não sejam
necessariamente inerentes à natureza humana.
O
Constituinte Originário já havia se referido aos direitos humanos, determinando
que a sua prevalência seja princípio de nossas relações internacionais (art.
4º, II). Agora, esse gênero jurídico ganha maior visibilidade e concreção ao
ser inserido no artigo condizente aos direitos fundamentais. Em razão disso, poder-se-ia
ter como veiculado no âmago de nossa Carta Política um conceito de raiz
tradicionalmente jusnaturalista, o que modificaria o fundo axiológico da
Constituição da nação, espraiando efeitos por todo seu corpo normativo.
Todavia, a abertura dada pela menção aos direitos humanos foi compensada pelo
fechamento imposto pelo procedimento legislativo que dá grandeza constitucional
a tais direitos. Não se deve negar, no entanto, a força valorativa da inovação
no Texto Constitucional.
A
par dos interessantes desdobramentos e classificações exibidos pela doutrina
especializada, para efeito de nosso estudo, cumpre-nos, sobretudo, saber o que
se deve entender por "direitos humanos" para que se compreenda o que
pode ou não alcançar altivez constitucional por meio do novo parágrafo 3º do
art. 5º do Diploma Maior.
Segundo
F. PIOVESAN, o que caracteriza o direito do homem e permite sua identificação é
sua universalidade e sua indivisibilidade (4). Universal é o direito
do homem porque deve abranger, necessariamente, todos os seres humanos;
indivisível, porque já básico, não podendo ser reduzido a módulo inferior.
Apesar da universalidade estar no núcleo do conceito histórico da expressão,
vem ela sendo posta em dúvida em razão das diferenças culturais e morais entre
os povos. A indivisibilidade muito mais está sendo criticada, em razão da onda
mundial atual de relativização dos direitos sociais que se entendem como
humanos e fundamentais de segunda geração, como aponta a mesma autora antes citada
(5).
Caminho
mais adequado parece-nos ser a compreensão das normas de direitos humanos como
aquelas necessárias à garantia da vivência digna, do desenvolvimento e da
continuidade existencial dos seres humanos e da humanidade. Pela proteção desta
– a humanidade –, entende-se a tutela das gerações futuras e também a garantia
de perpetuidade dos valores, dos conhecimentos, das obras e das culturas
humanas. Vemos, assim, os direitos humanos como os básicos, necessários e de
interesse comum de todos os seres do globo e que representam os fins
legitimadores não só do Estado, mas de toda organização humana: a busca da
coexistência entre os homens, da liberdade possível dos indivíduos, do
desenvolvimento pessoal e coletivo, do respeito à dignidade de cada um, da
perpetuação da espécie e dos valores humanos.
Sem
dúvida, difícil é, nesse campo, escapar de definições que dependam de valoração
moral, a qual é sempre condicionada à bagagem cultural de quem valora. Que
seria "vivência digna"? Que seria "liberdade possível"?
Conquanto sejam tais expressões abertas em significação, deve-se tomar um
padrão mínimo que seja globalmente (ou quase globalmente) aceito, a fim de que
se atenda aos requisitos da universalidade e indivisibilidade. Logo, vivência
digna é aquela que não ofende o sentimento do homem em geral e liberdade
possível é aquela que não obsta a convivência social.
Enfim,
a noção de direitos humanos deve ser necessariamente aberta para que possa
acompanhar o desenvolvimento das demandas históricas, mas não deve ser
indeterminada, para que não perca em objetividade, eficácia e segurança
jurídica. Não se limita, pois, às três conhecidas gerações de direitos (as
liberdades públicas; os direitos econômicos e sociais; os direitos de
solidariedade: meio ambiente, paz, desenvolvimento etc.). A partir do momento
em que o homem e a humanidade vêem-se diante de novas carências básicas e
comuns a todos, devem elas ser encaradas como direitos humanos. Podemos
exemplificar, no período atual, o direito à diversidade do patrimônio genético
humano (6) e o direito à diversidade cultural dos povos, ambos de
interesse não propriamente do homem singularmente considerado, mas sim da
humanidade; na esfera individual, pode-se citar o direito à livre determinação
não só da orientação sexual (7), mas do próprio sexo fenotípico.
3. A controvérsia sobre a hierarquia
normativa dos tratados internacionais de direitos humanos antes da EC 45/2004
Para
nossa Corte Suprema, como por todos é sabido, o tratado internacional, qualquer
que seja ele, uma vez celebrado em nome do Presidente da República (art. 84,
VIII, CR), referendado pelo Congresso Nacional por meio de decreto legislativo
(art. 49, I, CR), promulgado e publicado por decreto presidencial, entra no
sistema jurídico pátrio com o grau de lei ordinária, não podendo nem mesmo
versar sobre matéria em que exige o Texto Maior lei complementar (ver: STF –
Pleno – ADIn n.1.480/DF – Rel. Min. Celso de Mello – Informativo STF n. 135),
salvo no âmbito tributário, em razão da controvérsia ainda não solucionada
sobre a aplicação do art. 98 do Código Tributário Nacional.
A
linha de entendimento do STF tem o aval dos autores mais restritivos que
atribuem status de lei ordinária a qualquer tratado internacional, seja
relativo a direitos humanos ou não (8). Firma-se esse
posicionamento, principalmente, na interpretação de forte tendência literal do
art. 102, III, b, CR. Deduzem que, se é cabível recurso extraordinário
em caso de decisão que "declarar a inconstitucionalidade de tratado",
não especificando o Constituinte que tipo de tratado seria, é porque
"quis" ele – o Constituinte – afirmar a superioridade da Constituição
em face de todas fontes internacionais de direito. É o conhecido entendimento
do Min. MOREIRA ALVES: "Assim como não o afirma em relação às leis, a
Constituição não precisou dizer-se sobreposta aos tratados: a hierarquia está
ínsita em preceitos inequívocos seus, como os que submetem a aprovação e a
promulgação das convenções ao processo legislativo ditado pela Constituição e
menos exigente que o das emendas a ela e aquele que, em conseqüência,
explicitamente admite o controle da constitucionalidade dos tratados (CF, art.
102, III, b)" (RHC 79785 / RJ, julgado em 29.03.2000, publicado em
22.11.2002, Rel. Min. Moreira Alves, Pleno).
Outrossim,
argumenta-se que o procedimento de entrada do tratado internacional no direito
pátrio tem quorum de votação assemelhado ao da lei ordinária, razão pela qual
deveria a convenção internacional ser a este ente normativo assemelhado.
Apresenta-se, ademais, o fato de que, no direito comparado, fez-se referência
expressa à hierarquia superior dos tratados internacionais quando o Constituinte
desejou elevar seu status normativo, como na Argentina, em que as fontes
internacionais de direitos humanos têm força constitucional (9).
Igualmente, aduz-se que dar relevo constitucional a convenção internacional é
fazer pouco da soberania do Estado brasileiro (10).
Sem
embargo da firmada jurisprudência do STF, bem como dessa ala de estudiosos, há
fortes posições contrárias a ela na doutrina, preferindo muitos autores
reconhecer, senão o status constitucional dos tratados de direitos
humanos, ao menos sua posição normativa supralegal, i. é, seu posicionamento
acima das leis internas, subordinando-se somente à Lei Fundamental da nação.
Arrimam-se os juristas dessa linha, principalmente, no parágrafo 2º, parte
final, do art. 5º do Diploma Magno, que garante a observância dos direitos e
garantias fundamentais decorrentes de tratados internacionais. Demais disso,
menciona-se o art. 4º, II, da CR, que alinha como princípio de nossas relações
internacionais a prevalência dos direitos humanos, bem como o art. 1º, III, CR,
que preceitua a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, da
qual decorreria todos os direitos nucleares de que são dotados os elementos da
humanidade. Nessa corrente, F. PIOVESAN defende que, perante a Carta Constitucional
de 1988, as convenções internacionais de diretos humanos têm natureza
constitucional, enquanto as demais teriam caráter infraconstitucional (11).
De
fato, a melhor solução parecia ser, ainda antes da EC nº 45/2004, a da maior
abrangência possível dos direitos humanos, devendo-se, assim, ter como
hierarquicamente superior qualquer norma que tutelasse o homem em seus direitos
basilares. Não se pode atribuir à interpretação literal força hermenêutica
maior que à leitura valorativa e principiológica, principalmente em sede de
construção de sentido normativo constitucional. Tampouco é possível interpretar
a Constituição de um Estado soberano com base em critério de estilo doutras
Cartas Políticas estrangeiras.
O
argumento de que reconhecer a primazia de diploma internacional em face de lei
nacional, ainda que em tema de direito humanitário, seria afrontar a soberania
do Estado também não procede. Ora, os direitos fundamentais nasceram e até hoje
representam uma limitação ao poder soberano, a par de também terem eficácia no
meio privado. Todo o direito positivo, em si, é uma limitação, seja à liberdade
individual, seja ao poder estatal. A questão da hierarquia das fontes
normativas não interfere na soberania, até porque soberano é o povo e foi em
nome deste que foi posta a Carta Fundamental, com base na qual é desenvolvida a
controvérsia ora em apreciação.
Não
temos dúvida de que, antes da Reforma dada pela EC nº 45/2004, a doutrina da
agregação dos direitos humanos às normas constitucionais era a mais consentânea
com o espírito de nosso Poder Constituinte Originário, cujo ato instituidor da
ordem jurídica só pode ser tomado legitimamente como protetor dos interesses
capitais do verdadeiro senhor da soberania: o povo.
Por
fim, é dever salientar que, segundo entendemos, não são bem os tratados
internacionais de direitos humanos que adentram nossa ordem jurídica com
energia constitucional, mas sim as normas internacionais que protegem tais direitos.
As normas derivam da interpretação do texto, fonte do Direito objetivo, mas com
ele não se confundem (12). É possível que haja uma convenção
internacional que contenha em seu bojo regras e princípios de direito
humanitário e também preceitos de outra natureza; nesse caso, somente as normas
do primeiro tipo pertencerão ao conjunto normativo do Diploma Fundamental. Essa
constatação vale também para a aplicação atual do preceito contido no art. 5º,
parágrafo 3º, CR.
4. A interpretação autêntica imposta
pela EC nº 45/2004
É
preciso estar atento para o seguinte fato: ao estabelecer que os "tratados
e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada
Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos
respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais", está
o Poder Constituinte Derivado a afirmar que os tratados que não passarem por
tal procedimento não terão vigor constitucional. Como todas as convenções,
inclusive as de direitos humanos, não passaram até hoje pelo escrutínio
descrito, não teriam elas, assim, eficácia de emenda constitucional. Eis a
interpretação autêntica – porque subscrita pelo próprio Constituinte – dada EC
nº 45/2004: os documentos normativos internacionais de direitos humanos anteriores
à ela – a EC 45 – não têm altura constitucional, e somente passarão a tê-la
após votação especial em dois turnos, pela maioria de três quintos, em cada
Casa Parlamentar. Dessarte, a Reforma em análise veio a expressar a posição
abraçada pela visão restritiva do Supremo Tribunal Federal e dos autores que o
seguem.
Sem
embargo disso, para quem crê, como nós, que as normas internacionais de
direitos humanos já haviam ingressado em nosso sistema de direito como
niveladas às já expressas na Lei Maior, qualquer emenda à Carta Fundamental que
negue tal presença normativa é abolitiva de direitos e garantias fundamentais,
estando, portanto, em conflitos com a cláusula pétrea do art. 60, parágrafo 4º,
IV, CR, sendo, pois, inválida.
Nessa
ótica, para se esquivar da declaração de inconstitucionalidade, a única saída
hermenêutica é entender que a exigência do procedimento legislativo expresso no
parágrafo 3º do art. 5º só é exigível para tratados internacionais ainda não
incorporados ao nosso sistema, continuando a valer como de raiz constitucional
todas as convenções anteriores de direitos humanos.
Essa
é a nossa posição e, cremos, será a de todos que adotavam antes a tese do valor
constitucional das normas internacionais de direitos humanitários, se se
mantiverem em coerência com a doutrina defendida anteriormente. Todavia,
sabemos que o STF, mantendo-se também coerente com o que já vinha deliberando,
entenderá que poder constitucional tão-somente terão os tratados de direitos
humanos que sofrerem a votação delineada no preceito já citado. A. de MORAES,
aliás, mesmo antes da EC 45, já havia se manifestado nesse sentido (13).
De
qualquer forma, qualquer que seja a orientação defendida, por questão de
segurança jurídica e de eficácia social dos direitos humanos, é de suma
importância que o Congresso Nacional se reúna para cobrir os tratados em
questão na forma querida pelo Constituinte Reformador.
5. A questão da discricionariedade do
Congresso Nacional para realizar o procedimento de constitucionalização dos
tratados de direitos humanos
A
leitura do texto incorporado à Lei Fundamental leva à conclusão de existência
duma faculdade, não dever, para nossas Casas Parlamentares, que poderão ou não
proceder de modo a prestigiar o diploma internacional com a altura hierárquica
constitucional. Leiamos a letra da Constituição, verbis: " § 3º Os
tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos QUE forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos
dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais" (destaque nosso). Observe-se que pronome relativo
"que" destacado no texto introduz oração subordinada adjetiva
restritiva, e não explicativa. Daí se tira que não são todos os "tratados
e convenções internacionais sobre direitos humanos" que "serão
equivalentes às emendas constitucionais", mas somente os que "forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos
dos votos dos respectivos membros". Logo, pelo método gramatical de
interpretação, o Constituinte Derivado consentiu com a coexistência de tratados
internacionais com valor de emenda constitucional e doutros sem este status.
Se há as duas possibilidades, é porque o Congresso Nacional detém faculdade
sobre o tema; se existe faculdade, há igualmente discricionariedade.
A
interpretação lógica confirma a gramatical acima exposta. De fato, não haveria
sentido em submeter um documento normativo a um quorum especial de
votação se houvesse o dever de aprová-lo.
Apesar
das considerações acima feitas, há pontos outros que devem tomados em
consideração.
Primeiramente,
lembremos que o Estado-tratadista, ao declarar sua vontade de se submeter a um
acordo internacional, fica obrigado perante o Direito Internacional a tomar
todas as providências para que sejam válidas e eficazes, em sua ordem jurídica
interna, as normas dispostas na convenção. Se não procede dessa forma, comete
ato ilícito e deve se responsabilizar por ele (14). Logo, o
Parlamento pode até, no plano interno, ser livre para manifestar-se ou não em
favor da atribuição de força normativa ao tratado, mas, no plano internacional,
poderá estar manifestando conduta ilícita se não o fizer.
Em
segundo lugar, como já dissemos, os direitos humanos estão relacionados
diretamente com o princípio da dignidade humana, o qual é um dos fundamentos de
nossa República (art. 1º, III, CR); tais direitos nada mais são que meios para
alcançar esse fundamento maior. Sendo assim, a inexistência de norma concreta
que tutele um dos aspectos da dignidade, diminuindo o grau de sua eficácia
jurídica, pode ser considerada uma inconstitucionalidade.
Conquanto
não se possa forçar juridicamente, ao menos de acordo com a atual
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, qualquer atitude positiva da Câmara
dos Deputados ou do Senado, estas Casas do Poder Legislativo têm o dever
funcional de atuar em defesa da coletividade de homens que são representados.
Eis o limite da discricionariedade política para que se proceda na forma do
art. 5º, parágrafo 3º, CR, ora comentado.
6. Direitos humanos fundamentais
implícitos e explícitos
Como
bem ensina um eminente tributarista de nosso país, todas as normas são
implícitas, pois somente são descobertas (ou construídas, na linha do renomado
jurista) após uma necessária atividade de interpretação (15).
Contudo, há normas que são mais facilmente detectadas no direito positivo e
outras de percepção mais sutil. Nos incisos do art. 5º da Lei Magna, bem como
noutros dispositivos do mesmo documento, extrai-se com simplicidade direitos
humanos positivados como fundamentais. Ao lado deles, há uma série doutros que
remanescem nas entrelinhas constitucionais, e são incorporados pelo hermeneuta
ao conjunto normativo dos preceitos maiores, basicamente, por três razões: a)
são constitucionais todas as regras e os princípios corolários da forma de
Estado e da de Governo adotados pelo Brasil (é o que se extrai da primeira
parte do parágrafo 2º do art. 5º, CR); b) estão no altiplano da Lei
Primeira todas as normas que se afiguram absolutamente necessárias para a
preservação da dignidade humana (guiamo-nos, mais uma vez, pelo art. 1º, III,
da CR); c) são, finalmente, de altivez constitucional todas as garantias
sem as quais deixam de subsistir faticamente os direitos fundamentais
reconhecidos pelo Constituinte (aplicamos o chamado princípio da máxima
efetividade ou da eficiência constitucional (16)).
Decorrência
da circunstância supramencionada é que muitas das cláusulas dispostas em
convenções internacionais são já, independentemente destas, compreendidas no
seio do sistema constitucional nacional. Nesses casos, por óbvio, a negativa do
Parlamento em dar força de emenda constitucional a tais fontes de Direito não
deve influir em sua aplicação.
No
caso em que comentamos, apesar de não ser indispensável a inserção do tratado
no sistema interno, ela possui o mérito de dar conhecimento aos destinatários
da norma sobre o conteúdo de direitos humanitários os quais, em muitas das
vezes por ignorância de quem aplica o Direito e de quem lhe deve obediência,
permanecem tempos sem eficácia social alguma.
7. Direitos humanos e cláusulas
pétreas
Uma
vez incorporadas ao Texto Constitucional, os direitos humanos reconhecidos pelo
tratado internacional abraçado por parte do Brasil passam a ser fundamentais e,
por conseqüência, irreformáveis pelo Poder Constituinte Derivado (art. 60, parágrafo
4º, IV, CR).
Anote-se
que, conforme a posição do STF ditada no julgamento da ADIn nº 939/93,
irreformáveis não são somente os direitos e garantias individuais previstos no
art. 5º do Diploma Fundamental, mas quaisquer outros reconhecidos na Constituição
da República. E mais: segundo o entendimento do Min. Carlos Velloso, expresso
nos autos da mesma ADIn, irreformável não é somente o núcleo dos direitos e
garantias individuais, mas sim o de todos os fundamentais, sejam individuais,
sociais, econômicos ou de solidariedade (17). Pensar diferente seria
dar um caráter individualista a uma Lei Constitucional de cunho eminentemente
social. O eminente ministro citado defende ainda, pelo texto da época, o
caráter de cláusula pétrea dos direitos e garantias fundamentais veiculados por
tratado internacional, por força do art. 5º, parágrafo 2º, da CR.
Conclusão
Os
estados modernos passam por transformações desde seus surgimentos. Essas
mudanças refletem-se, usualmente, em seus Diplomas Constitucionais. A tônica,
hoje, já não é mais o confronto entre as ideologias liberal e socialista, mas
sim a integração mundial entre as nações. Como já se podia refletir pela
evolução dos direitos fundamentais acolhidos pelas Leis Magnas, a tendência mundial
é a passagem do Estado Social para o Estado Solidário. Os entes estatais, após
suas consolidações no desenrolar histórico, salvo algumas exceções, passam a
substituir a necessidade de auto-afirmação soberana para se preocupar com a
criação de conexões mundiais. Com razão fazem-no, pois, no mundo hodierno, quem
se isolar tende a perder força não só política, mas também econômica (18).
Numa realidade com essas características, será cada vez mais comum o
fortalecimento das fontes internacionais de direito, invertendo-se o fluxo
normativo do antes "interno ao externo" para o agora "externo ao
interno".
As
alterações introduzidas em nosso sistema constitucional coincidem com o momento
em que o país busca apoio internacional para ingressar no Conselho de Segurança
da ONU como membro permanente, bem como procura fortalecer relações econômicas
com outros estados, assim como pleiteia a formação de fundos financeiros
globais para o apoio de demandas dos países pertencentes ao Terceiro Mundo
(como o fundo contra a fome, p. ex.) etc..
Eis
a explicação da relevância atual dos direitos humanos. Como percebemos, no
âmbito semântico que envolve a expressão, estão os direitos humanos para o
Direito Internacional assim como os direitos fundamentais estão para o Direito
Constitucional interno. Estando o estado moderno mais dependente do exterior, o
direito interno passa também a depender do direito global. Os direitos
humanitários, antes esquecidos pelos juristas de cá, passam a ganhar prestígio
especial.
A
EC nº 45/2004, em dois momentos, mostra esse espírito que descrevemos: no
preceito que comentamos neste estudo (art. 5º, parágrafo 3º, acrescentado à
CR), e no parágrafo 4º adicionado ao mesmo artigo, em que prevê a adesão do
Brasil ao Tribunal Penal Internacional.
Nota-se,
pelo que expomos, que a inovação no Texto Constitucional não é um mero adorno,
senão o marco duma verdadeira transformação axiológica. O Direito Internacional
deixa de ser "perfumaria jurídica". Não que vá subjugar nossas fontes
legiferantes internas, mas deverá ser aplicado harmoniosamente com estas.
Definitivamente,
os chamados direitos do homem e da humanidade não podem mais ser olvidados por
quem tenha a pretensão de compreender corretamente nosso direito positivo. A
modificação introduzida pela EC nº 45/2004 não é meramente técnica, pois conota
uma opção valorativa do Constituinte. É um espelho da revalorização do homem e
da humanidade no centro das preocupações jurídicas; é, quiçá, um testemunho do
início da Era da Solidariedade, como achamos que pode ser batizado o século
XXI.
Em
que pese a esperança depositada nas palavras acima averbadas, não somos
ingênuos o bastante para imaginar que a reforma da EC nº 45/2004 seja a panacéia
de todos os males jurídicos e sociais. Pouco ou nada vale o direito sem a
garantia. Atualmente, em nosso país, a omissão tem sido um dos meios mais
perversos para afastar ilicitamente os efeitos de normas constitucionais. Até o
átimo em que se resolva atribuir força normativa positiva ao Poder Judiciário
para resolver tais afrontas à Lei Maior, por meio de ações diretas de
inconstitucionalidade por omissão ou de mandados de injunção, não se terá um
sistema efetivo de proteção dos direitos humanos.
Notas
1
Não faremos, no presente estudo, distinção entre tratado e convenção
internacional; utilizaremos as duas expressões como sinônimas, na linha do
magistério de J.F. REZEK, Direito Internacional Público – Curso Elementar,
São Paulo, Saraiva, 2002, p. 15.
2
A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, 3ª ed., São Paulo, Saraiva,
2003, p. 14.
3
Direito Constitucional – e Teoria da Constituição, 7ª ed., Coimbra,
Almedina, 2003, p. 393.
4
A Universalidade e a Indivisibilidade dos Direitos Humanos: Desafios e
Perspectivas in Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita, org. C.A.
BALDI, Rio de Janeiro, Renovar, 2004, p. 45.
5
Ob. cit., pp. 66-70.
6
Cf. P.G.C. LEIVAS, A Genética no Limiar da Eugenia e a Construção do
Conceito de Dignidade Humana in A Reconstrução do Direito Privado,
org. J.MARTINS-COSTA, São Paulo, RT, 2002, pp.560-6.
7
Cf. R.R. RIOS, Dignidade da Pessoa Humana, Homossexualidade e Família:
Reflexos sobre as Uniões de Pessoas do Mesmo Sexo in A Reconstrução do
Direito Privado, org. J.MARTINS-COSTA, São Paulo, RT, 2002, pp.484-90.
8
Cf. M.G. FERREIRA FILHO, Direitos Humanos Fundamentais, 3ª ed., São
Paulo, Saraiva, 1999, pp.98-9.
9
Cf. o voto do Min. Celso de Mello no HC 76.561-3/SP, p. 7.
10
Cf. A. de MORAES, Direito Constitucional, 14ª ed., São Paulo, Atlas,
2003, p. 613.
11
Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional, São Paulo, Max
Limonad, 1996, p. 111.
12
Cf. E. GRAU, Ensaio e Discurso Sobre a Interpretação/Aplicação do Direito,
São Paulo, Malheiros, 2002, p. 17.
13 Ob. cit., p.571, nota 2.
14 Cf. J.F. REZEK, ob. cit., p. 96.
15
P. de B. CARVALHO, Curso de Direito Tributário, 13ª ed., São Paulo,
Saraiva, 2000, p.10.
16
Cf. J.J. CANOTILHO, ob. cit., p. 1224.
17
P. 7 do voto, disponível em:
"http://www.stf.gov.br/Jurisprudencia/It/FrameDown.asp?classe=ADI&Processo=939&Origem=IT&
Recurso=0&TIP_JULGAMENTO=&CodClasse=504&Ementa=1737&tipo_colecao=EMENTARIO".
Data de acesso: 30.12.2004.
18
Daí a busca e a necessidade dos países em se acoplarem a algum megabloco
econômico.
Bibliografia (somente as obras
citadas)
-
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; Direito Constitucional – e Teoria da
Constituição, 7ª ed., Coimbra, Almedina, 2003.
-
CARVALHO, Paulo de Barros; Curso de Direito Tributário, 13ª ed., São
Paulo, Saraiva, 2000.
-
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*advogado em São Paulo
Disponível em: http://jus2.uol.com.br/ Acesso em: 22 fev. 2007.