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A doutrina política do Vaticano e o
direito internacional na busca pela paz
Israel
Alves Jorge de Souza*
Sumário: 1. Introdução. 2. A Santa Sé e o Vaticano. 3. A Doutrina
Político-Internacional dos Papas. 4. As Soluções Pacíficas de Conflitos
Internacionais. 5. Histórico de Participação Papal. 6. Projeções para o futuro.
7. Conclusão. Referências Bibliográficas.
1.
Introdução
Após
o Tratado de Latrão, de 1929, não restaram dúvidas sobre a personalidade
internacional do papa, ou da Santa Sé. Entretanto, tal soberania não deriva
desde tratado, sendo a criação do Estado pontifício uma base material à
soberania espiritual, inerente ao papado, e uma garantia de direito público.
A
doutrina política da Igreja Católica concernente à comunidade dos estados foi
desenvolvida somente no século XX, destacando-se Pio X, Bento XV e Pio XII, mas
a atuação da Igreja no cenário internacional há muitos séculos tem sido
significativa. Seja por ambições pessoais, representação de interesses alheios
ou objetivos mais nobres, os papas marcaram a história em muitos momentos,
tanto negativa quanto positivamente. Neste histórico de influências, exerceram
muitas vezes, também, importante papel na solução de conflitos internacionais.
Em certas ocasiões tal atuação foi belicosa, utilizando-se os papas de
exércitos pessoais ou financiando guerras. Em outras, porém, eles atuaram como
árbitros e mediadores, marcando a história das soluções pacíficas de conflitos
internacionais.
Uma
apresentação desta participação pacífica na resolução de controvérsias
internacionais, bem como uma análise das possibilidades futuras neste sentido,
de acordo com a atual importância política do Estado pontifício, constituem os
objetivos deste artigo.
2.
A Santa Sé e oVaticano
Desde
o início da instituição do papado, vige a soberania espiritual do papa. Além
dela, porém, o pontífice exerceu o poder temporal por muitos séculos. A Santa
Sé possuía grande território e tinha sua personalidade reconhecida pela
comunidade internacional.
Em
1870, entretanto, o reino da Itália derrubou o poder temporal do papa, e
conseqüentemente sua personalidade internacional começou a ser questionada. De
1870 a 1929 a soberania do chefe da Igreja Católica se limitou ao âmbito
espiritual, e todos os papas viveram como prisioneiros do Vaticano até 1929.
Esta situação não significa, porém, segundo Accioly, a inexistência de
soberania, tendo-se em vista sua concepção moderna. [1]
Em
11 de fevereiro de 1929, então, conclui-se o Tratado de Latrão, pelo qual a
Itália reconheceu a soberania da Santa Sé, bem como sua propriedade, poder e
jurisdição sobre o Vaticano. Criava-se assim a Cidade do Vaticano, sede do
governo da Igreja. Considerado pelo Tratado um território neutro e inviolável,
é dotado de personalidade jurídica própria, distinta, inclusive, da
personalidade da Santa Sé. O papado abrange, assim, duas pessoas distintas, ou
seja, o papa é ao mesmo tempo um chefe de Estado e o chefe da Igreja Católica.
3.
A Doutrina Político-Internacional dos Papas
Iniciado
por Pio X e Bento XV, cujos pontificados foram respectivamente de 1903-1914 e
1914-1922, o desenvolvimento da doutrina papal sobre a comunidade internacional
é creditado principalmente a Pio XII. O princípio central desta doutrina é a unidade
do gênero humano, decorrente de sua origem comum em Deus e visível na natureza
racional de todos os homens, bem como no fato de habitarem todos eles sobre a
Terra. Esta unidade seria alimentada pelo preceito unificante do amor a Deus e
ao próximo, no qual se fundamentaria a lei universal da mútua solidariedade
humana.
Segundo
a doutrina eclesiástica, deste princípio de unidade do gênero humano derivaria
a unidade da "família de povos" que o constituem. Apesar de no
decorrer da história terem esses povos se diferenciado, não deveriam romper a
unidade familiar que lhes remete à sua origem comum. Pelo contrário, deveriam
promovê-la e intensificá-la, mediante comunicação e intercâmbio de seus dons,
bens e riquezas. No atual contexto de globalização, esse ideal se revestiria
ainda de maior necessidade e viabilidade, pois de acordo com a doutrina papal,
nunca os povos necessitaram tanto uns dos outros e jamais puderam ajudar-se de
forma tão eficiente como hoje.
A
mesma lei de caridade que rege a convivência entre os homens deveria reger
também as relações entre as nações, objetivando-se o bem de todos os povos. A
única garantia para essa colaboração seria a existência de uma norma moral
universal, manifestada pelo Criador mediante a ordem natural. Essa norma moral
constituiria o fundamento do direito natural, que, por sua vez, deveria ser a
base da organização de cada Estado e fundamento de todo o direito internacional
positivo. A positivação do direito das gentes, portanto, deveria objetivar uma
definição exata das exigências da natureza e adaptá-las às circunstâncias
concretas.
Quanto
à questão de possível conflito entre a soberania dos Estados e a autoridade
supranacional, afirma-se que não deve haver idéia de contraposição, mas de
harmonia e equilíbrio. Essa idéia parece corroborar com o pensamento de
René-Jean Dupuy, que defende uma dialética do singular e do conjunto e sua
permanência num fenômeno relacional. De qualquer forma, as nações teriam seus
direitos fundamentais, assim como cada indivíduo os possui, sendo os mesmos o
direito à existência, ao respeito e à boa reputação, à uma maneira de ser
própria e à uma cultura peculiar, ao próprio desenvolvimento, à observância dos
tratados internacionais, e outros – conforme enunciado por Pio XII. [2] O amor
pelas tradições e glórias da própria pátria e os esforços em prol de seu
desenvolvimento não deveriam, porém, significar uma incompreensão e desrespeito
diante dos sentimentos patrióticos das outras nações. Qualquer desequilíbrio
decorreria do fato de encarar-se a soberania e a autoridade supranacional como
absolutos, sendo que ambos têm limites.
A
soberania, que pressupõe exclusividade dentro do território nacional e nas
matérias de competência interna, em independência de qualquer ordenamento
jurídico alheio, seria perfeitamente conciliável com uma autoridade
internacional que restringisse sua atuação às relações entre os Estados
soberanos e à busca do bem comum para a coletividade. Desta forma, haveria uma
limitação recíproca que propiciaria a harmonia, e uma futura organização
política mundial proporcionaria uma cooperação conjunta para o bem de toda a
humanidade.
Para
que isso se torne realidade, defende-se um combate ao nacionalismo intransigente
e egoísta. A vida nacional, direito e glória de uma nação, é um conjunto
operante dos valores de civilização de determinado povo, e deve ser promovida.
Já o nacionalismo, egocêntrico e a serviço de ambições de uma nação, é a causa
principal dos conflitos internacionais e guerras, e deve ser reprimido. Contra
essas distorções, os papas defendem a solidariedade internacional, submetida a
um ordenamento jurídico que englobe as relações normais entre os Estados e
também as situações de conflitos.
A
regulação jurídica dessas relações normais entre os Estados se daria,
genericamente, mediante os tratados. Uma efetiva segurança jurídica,
entretanto, só seria possível com o respeito aos acordos, pois valorizar a
faculdade de rescindir-los unilateralmente é não propiciar confiança. Para os
conflitos internacionais, defende-se também um tratamento jurídico, ao invés de
serem entregues à decisão pelas armas. Afirma-se que, na história humana,
chegou-se ao momento de livrar o homem dos conflitos bélicos, que no passado
pareceram consistir numa lei histórica. A paz seria um preceito divino, e em
caso de conflito dever-se-ia substituir a força material das armas pela
"força moral do direito", e restringir-se a guerra apenas ao âmbito
de defesa própria ou de outros. Dever-se-ia se acudir das instituições da
conciliação e da arbitragem, as quais deveriam se tornar obrigatórias, até
mesmo impondo-se sanções ao Estado que se recusasse a submeter-se ou acatar
decisões.
Outra
solução seria a limitação dos armamentos, mas afirma-se ser uma ilusão a crença
de que a paz pode ser alcançada somente com essas medidas, pois a ordem cristã
é a verdadeira garantia da paz, sendo as propagandas pacifistas que negam a fé
em Deus mera utopia. Seria necessária, porém, aliada à fé cristã, uma
organização jurídica mundial. Pio XII já defendia a criação de um órgão
investido, por consentimento, de suprema autoridade e capaz de sufocar qualquer
ameaça de agressão, mantendo a paz. Como sanção aos Estados rebeldes, a doutrina
pontífice defende um juízo internacional e afastamento ou isolamento completo
dos perturbadores da paz. A Organização das Nações Unidas (ONU) pode ser o
caminho. Pio XII afirmou sobre ela: "Que a Organização das Nações Unidas
possa chegar a ser a plena e pura expressão da solidariedade internacional da
paz". Neste sentido, busca-se uma transformação dessa organização, tão
significativa atualmente.
Sem
prejuízo dessa pretendida organização universal, defendem-se associações das
nações em famílias de povos, tendo-se como exemplo a União Européia. Pio XII já
destacava em seus discursos os benefícios de uma unificação do continente
europeu, e considerava esse processo um vislumbre do sentimento humano de
unir-se e acabar com a fome e a ignorância da humanidade. Acredita-se que os
países europeus, com essa atitude, tomam um rumo saudável, que pode resultar
numa vida nova em todas as ordens, desde a econômica e cultural até a
espiritual e religiosa.
Para
os papas, o espírito que deve animar essa nova comunidade é a fé cristã, a base
da civilização européia e cuja difusão ao mundo é missão histórica desse
continente. A religião, segundo a doutrina pontífice, era a alma da Europa em
seus séculos de glória, e quando a cultura dos europeus dela se separou, a
unidade e o domínio do velho continente diminuíram. Uma nova união, centrada
nesse espírito religioso, é o rumo para o levante da Europa – que deveria lutar
pela promoção e defesa dos valores espirituais - e conseqüente difusão pelo
mundo dessa filosofia, possibilitando a sonhada comunidade internacional
pacífica.
Fica
claro, enfim, que nesse projeto internacional de pacificação os papas pretendem
ter um papel significativo, já que a fé cristã é considerada o cerne de todo o
processo. Neste sentido trabalha atualmente Bento XVI, com seus expostos
objetivos de recristianização da Europa e difusão de valores cristãos, conforme
será melhor explicitado adiante.
4.
As Soluções Pacíficas de Conflitos Internacionais
Segundo
Accioly, os métodos de solução pacífica de conflitos internacionais se dividem
em três categorias, quais sejam, os meios diplomáticos, os judiciários (ambos
de caráter amistoso) e os coercitivos (de caráter não amistoso). Faz-se uma
ressalva quanto ao enquadramento desta última como meio de solução pacífica, já
que se constitui em sanções. Os meios judiciários, por sua vez, não interessam
ao presente estudo, já que os papas não têm, a rigor, uma participação como
autoridades jurídicas. E Oliveiros Litrento, ainda, considera realmente de
solução pacífica apenas os meios diplomáticos. De qualquer forma, a premissa é
a idéia de os Estados ou organismos regionais de caráter político por eles
formados procurarem solucionar as controvérsias antes que a ONU tome conhecimento.
Os
meios diplomáticos são as negociações diretas, os congressos e conferências, os
bons ofícios, a mediação e o sistema consultivo. A arbitragem é incluída por
muitos autores no rol dos meios judiciários, mas não tendo o foro arbitral
permanência e nem profissionalidade, esse meio pode ser considerado um
mecanismo jurisdicional, mas não judiciário. Dentre esses meios citados,
interessam particularmente ao presente estudo os bons ofícios, a mediação e a
arbitragem.
Os
bons ofícios constituem na tentativa de um terceiro Estado ou de vários Estados
de levar outros, litigantes, a um acordo. O terceiro ou terceiros podem
oferecer a sua atuação ou serem solicitados, e não tomam parte direta nas
negociações, apenas propiciam o contato daqueles em conflito. A mediação é
muito semelhante, diferenciando-se apenas pelo fato de consistir numa
participação direta nas negociações entre os litigantes.
A
arbitragem, por fim, defini-se como meio de solução de conflitos no qual as
partes escolhem uma ou mais pessoas mediante compromisso arbitral, geralmente,
que estabelece as regras e no qual as partes aceitam acatar a futura decisão.
Na arbitragem se inclui qualquer forma de solução pacífica que abarque
elementos de decisão judicial. Diferentemente da mediação, esse mecanismo se
apresenta como sentença definitiva, pois o árbitro é um juiz e não um
conselheiro, como o mediador.
Na
história política dos papas, as participações na solução pacífica de conflitos
internacionais podem se enquadrar nos mecanismos acima destacados. Claro é que
essa classificação é moderna, e muitos acontecimentos dos últimos dois mil anos
podem conter elementos que fujam às definições apresentadas. Mas, objetivando
esse estudo analisar a participação da Santa Sé como terceiro colaborador na
solução pacífica de conflitos entre outros sujeitos internacionais, os
acontecimentos tangentes a esse escopo podem ser perfeitamente relacionados aos
mecanismos de solução selecionados, por conterem ao menos as principais
características dos mesmos.
5.
Histórico de Participação Papal
A
prática papal, no decorrer dos séculos esteve muitas vezes distante dos valores
altruístas da doutrina sobre a ordem internacional, organizada no século XX. O
próprio Pio XII, principal responsável pelo seu desenvolvimento, apresentou um
escandaloso silêncio durante a 2a Grande Guerra e suas
conseqüências, segundo alguns historiadores. Afirma-se que ele teria acertado
uma concordata com a Alemanha de Hitler, que concedia vantagens religiosas e
educacionais à Igreja Católica em troca de seu afastamento da ação social e
política, e que teria possibilitado a ascensão do nazismo.
A
história dos papas provoca muitas outras desilusões aos fiéis, mas mesmo assim
muitos deles exerceram um papel positivo na política internacional. Embora
grande parte dessas atitudes visasse benefício próprio e o de Roma, também
auxiliaram os Estados envolvidos. A seguir, apresenta-se uma seleção de tais
participações, excluindo-se as que visaram exclusivamente o bem da Igreja por
ser ela uma das partes em litígio, e valorizando-se aquelas em que os papas
agiram como terceiros na solução pacífica de conflitos internacionais.
Leão
Magno, que exerceu o pontificado de 440 a 461, conseguiu realizar um acordo de
paz com o temível Átila, rei dos hunos. Quando estes assolaram o norte da
Itália, o imperador do Ocidente não conseguiu defender o território. Leão,
então, encontrou-se com o rei bárbaro em Mântua, em 452, e com personalidade
decidida logrou afirmar um acordo de paz e salvar Roma. Cheio de prestígio,
Leão ainda conseguiu, em 455, firmar um acordo com o rei vândalo Genserico. O
exército inimigo encontrava-se às portas de Roma, e nenhum exército imperial
trouxe ajuda. O papa, então, dirigiu-se ao acampamento de Genserico e o
convenceu a não eliminar a vida da população e a não destruir a cidade,
restringindo-se o ataque aos saques.
Em
592, Gregório Magno negociou com os longobardos quando os mesmos se encontravam
às portas de Roma. Pagou-lhes uma quantia como resgate e eles se retiraram. Em
598, então, negociou um armistício que pôs fim à guerra por alguns anos. Lúcio
II, já no período de 1144 a 1145, empenhou-se pela paz com os normandos e,
embora sem muito sucesso, alcançou uma trégua de sete anos. Em 1197, com a
morte do imperador alemão Henrique VI, houve uma dupla eleição. Filipe da
Suábia foi eleito por alguns, e Otão de Braunschweig por outros. O conflito
transformou-se em guerra civil, e ambos os candidatos pleiteavam o
reconhecimento do papa, na época Inocêncio III. Em 1201, ele se decidiu em
favor de Otão, e após superar alguns outros desafios o mesmo se tornou rei dos
alemães.
Alexandre
VI, papa de 1492 a 1503, alcançou prestígio político ao dirimir uma
controvérsia entre Espanha e Portugal. Estes países entraram em conflito devido
à discussão de direitos de domínio sobre as colônias recém-descobertas.
Alexandre traçou uma linha demarcatória e ambas as partes aceitaram. Clemente
IX, cujo papado foi de 1667 a 1669, exerceu importante papel político como
intermediário da paz entre a França e a Espanha, e Inocêncio XIII (1721-1724),
admirado por sua habilidade política, conseguiu melhorar as relações entre as
potências européias.
Já
em 1885, uma histórica mediação foi realizada pelo papa Leão XIII. O conflito
era entre a Alemanha e a Espanha, a respeito das ilhas Carolinas. No século XX,
destacaram-se os esforços pela paz de Bento XV, após a entrada da Itália na 1a
Grande Guerra. Ele enviou um manuscrito ao imperador Guilherme II, dirigiu uma
nota aos governos dos países em guerra e, mesmo não tendo alcançado resultados,
ficou conhecido como o papa da paz.
João
Paulo II, o antecessor do atual papa, a exemplo de João Paulo I se empenhou na
solução dos graves problemas da época, inclusive o da ausência de paz. Viajou
muito e visitou regiões afetadas por conflitos internacionais. Apelou
constantemente à reconciliação de povos da África e do Oriente Médio, afirmando
sempre que não acreditava em uma paz obtida à força."O mundo aspira
ardentemente a paz, precisa da paz, tanto ontem como hoje, mas, às vezes, a
procura por meios impróprios, recorrendo à força ou com o equilíbrio entre
potências opostas", afirmou. No governo Bush, não pôde impedir a invasão
do Iraque, mas o peso de sua reprovação foi sentido pelo presidente americano
como uma forte causa de seus problemas junto à opinião internacional. Karol
afirmou que "uma guerra representaria uma derrota para a humanidade e não
seria moral nem legalmente justificada", e após o ataque criticou a
atuação das tropas invasoras defendendo que o povo iraquiano "se torne o
protagonista da reconstrução de seu país, com a ajuda da comunidade internacional".
6.
Projeções para o futuro
A
Igreja Católica vive, atualmente, um processo ascendente de recuperação rumo a
posição e participação mais efetivas no cenário internacional. Inicialmente, na
Idade Média, seu poder e influência foram incontestáveis, porém ao final desse
período, chamado escuro, as fortunas acumuladas e a reiteração de condutas
repreensíveis fragilizaram sua credibilidade. A Renascença, a Reforma, o
Iluminismo e a Revolução Francesa, então, acabaram por configurar o quadro da
Igreja na metade do século XX: estava sem poder político.
O
Concílio Vaticano II, de 1966, iniciou uma nova postura frente à modernidade,
mas foi João Paulo II quem realmente proporcionou o levante. Contribuiu
significativamente para a queda do comunismo, aproximou-se dos judeus,
muçulmanos e protestantes e pediu desculpas em nome da Igreja pelos erros
cometidos no passado; procurou unir a visão bíblica da criação à teoria
evolucionista e valorizou a razão na busca da verdade. Enfim, conservador no
âmbito moral, ele significou a modernização da Igreja na área filosófica,
política e científica.
Nesse
crescimento da Igreja, entretanto, João Paulo II atingiu o ponto ótimo de ação,
com relação à sua capacidade, personalidade e o contexto mundial. Ele fez muito
pela Igreja, mas fez tudo o que poderia ter feito, esgotou seus meios de
atuação. A recuperação que proporcionou, com sucesso, conviveu com um problema
de cuja resolução depende, agora, a continuação do crescimento. Durante seu
pontificado vislumbrou-se uma forte secularização na Europa, além de
significativo êxodo de fiéis, em países como o Brasil. Paradoxalmente, então,
sua morte e toda a repercussão que obteve proporcionaram um verdadeiro reforço
a tudo o que construiu e conquistou, bem como fertilizaram o solo sobre o qual
Bento XVI deverá prosseguir o crescimento eclesiástico.
Graças
a João Paulo II, Ratzinger lidera uma Igreja que tem, novamente, a capacidade
de lutar por seus objetivos não de forma utópica, e sim confiante em seu
potencial. É possível que o Vaticano realize alianças com grandes potências
objetivando alcançar essa organização universal que promova a paz e a
cooperação entre os povos - conforme a já explicitada doutrina política dos
papas -, e conseqüentemente o controle pacífico e controlado dos conflitos
internacionais. Exemplo de tal possibilidade é a aliança do Vaticano com os
Estados Unidos ocorrida no governo de Ronald Reagan, o qual, objetivando
reformar a ligação com o papa, suspendeu sua ajuda financeira a programas de
planejamento familiar em países subdesenvolvidos. Wojtyla, ferrenho opositor
dos métodos contraceptivos artificiais e da legalização do aborto, agradou-se
da medida, e a retribuição veio com o recuo dos bispos nas críticas abertas à
política armamentista americana. A relação continuou até que o inimigo comum, o
comunismo, foi derrotado.
Mas
esse processo de construção de uma futura organização política mundial deve se
fundamentar, conforme exposto na doutrina político-internacional dos papas, na
fé cristã, a verdadeira garantia da paz. Neste sentido, seria necessário que a
Europa recuperasse os valores religiosos que já abraçou tão fortemente no
passado, e posteriormente os difundisse mundo afora. Curiosamente, neste âmbito
moral houve uma forte proximidade ideológica entre o neoconservador
norte-americano Bush e o pontificado de João Paulo II. No que diz respeito à
família, por exemplo, Bush afirmou: "se queremos ter uma sociedade
esperançosa e decente, devemos chegar ao ideal, e o ideal é que o casamento
deve ser, e deveria ser, uma união entre um homem e uma mulher". João
Paulo II, por sua vez, disse que "o projeto de Deus para a família é o de
uma comunidade baseada na união estável e fiel entre um homem e uma mulher".
Tal
concepção não se traduz em mera retórica, nos Estados Unidos, pois a afirmação
de Bush pode representar uma proposta de emenda constitucional para banir o
casamento entre pessoas do mesmo sexo. Além disso, essa moralização americana
tende a se expandir, e é aí que se encontra um possível elo entre Bush e o
atual papa, uma aliança que objetive a promoção dos valores cristãos e em
contra-partida dos interesses norte-americanos. Rocco Buttiglione, amigo
pessoal de Wojtyla, anunciou em 2004 sua intenção de percorrer a Europa para
promover "valores cristãos na vida pública". Tal empreendimento pode
parecer fadado ao fracasso num continente que, ao contrário dos Estados Unidos,
caminha mais e mais para separar Igreja e Estado. Entretanto, não se deve subestimar
a força das idéias nascidas e propagadas na América.
Ratzinger
demonstrou ter precisa consciência deste contexto e de sua missão, no mesmo, ao
escolher o nome Bento XVI. Em sua primeira audiência pública, ele explicou a
escolha citando Bento XV, o papa que buscou a paz ao lutar contra a I Guerra
Mundial, e Bento de Norcia, cuja comunidade monástica foi fundamental na
difusão do cristinianismo pela Europa. O "corajoso e autêntico profeta da
paz" - Bento XV, nas palavras do homônimo XVI - e o "ponto de
referência para a unidade da Europa" - Bento de Norcia, segundo o atual
papa - simbolizam perfeitamente a missão de Bento XVI.
Com
a promoção do ecumenismo – o novo papa afirmou, por exemplo, que "a igreja
quer continuar a construir pontes de amizade com os seguidores de todas as
religiões" -, o combate ao relativismo e a utilização do poder político e
carisma que a Igreja herdou de João Paulo II, o novo papa pretende coroar de
sucesso essa estratégia eclesiástica que foi a sua eleição. É importante notar
e reforçar, por fim, que estes planos para uma futura organização política
mundial, apesar de fundamentarem-se na fé cristã, não constituem um projeto
meramente ético, mas principalmente político.
A
já explanada doutrina política do Vaticano deixa claro que a Igreja Católica
não procurará agir como centro único do poder. O consenso é buscado, e esta
visão se adequa perfeitamente, de forma muito interessante, às observações de
John Rawls sobre as noções de justiça. Segundo ele, no contexto das democracias
modernas pretende-se uma sociedade pluralista, e nesta situação a concepção
ideal e funcional de justiça tem de ser a política. Rolf Kuntz, comentando o
pensamento de Rawls sobre esta concepção política de justiça, afirma que é
possível "pensá-la como um consenso capaz de sobrepor-se a todas as
doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, sem as negar, e de
permitir a coexistência segundo normas de equilíbrio bem determinadas".[3]
Isto
é o que Rawls chamou de overlapping consensus, acreditando que nenhuma
concepção ética geral poderia proporcionar tal situação, sendo apenas uma
vertente a mais em confronto com as outras. Se este consenso for o caminho
político a ser seguido pela Igreja, num contexto de promoção do ecumenismo,
resta saber se não existe a possibilidade de, por trás de uma aparente
concordância, serem estabelecidas uma concepção de justiça particular e uma
única doutrina religiosa. Afinal, uma ideologia política não surge do nada,
obviamente, e sua fundamentação jamais será isenta de particularismos que
objetivava sobrepor.
7.
Conclusão
A
história ocidental, marcada pela tradição cristã, é melhor compreendida quando
se analisa a influência política dos papas no seu decorrer. No âmbito das
soluções pacíficas de conflitos internacionais, a participação da Santa Sé foi
significativa. Apesar de a Igreja ter vivido altos e baixos no concernente à
influência política, hoje, no século XXI, tenta continuar um processo de
ascendência iniciado no século passado. "É provável que haja papas
enquanto houver espécie humana", afirma Paul Johnson.
Esse
crescimento está estreitamente ligado à solução de conflitos internacionais,
tendo-se em vista que a doutrina política do Vaticano defende um processo de
unificação da comunidade internacional que possibilite um controle pacífico e
eficaz das controvérsias entre os Estados.
A
eleição do conservador Bento XVI se adequa perfeitamente a esse processo,
consistindo em nítida estratégia eclesiástica. Para cumprir seus propósitos, o
novo papa tem o desafio do tempo, devido à idade avançada, e por isso procurará
ser rápido. Portanto, pode ser que daqui a alguns anos o mundo presencie
resultados um pouco mais satisfatórios no que diz respeito à solução pacífica
dos conflitos internacionais, criando-se uma situação de aparente paz.
Notas
1.
SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e & Accioly, Hildebrando. Manual de
direito internacional público. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pp. 174-175.
2. ARTAJO, Alberto Martin.
Doctrina Política de los papas. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos,
1958, p. 88.
3.
KUNTZ, Rolf. A redescoberta da igualdade como condição de justiça. In: FARIA,
José Eduardo (org.). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo:
Malheiros, 2002. p. 154.
Referências
Bibliográficas
ARAÚJO,
Luís Ivani de Amorim. Curso de direito internacional público. 10. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2001.
ARTAJO, Alberto Martin. Doctrina
Política de los papas. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos,
1958.
CORNWELL,
John. O papa de Hitler: a história secreta de Pio XII. Rio de Janeiro:
Imago Ed., 2000.
DUPUY, René-Jean. O
direito internacional. Coimbra: Livraria Almedina, 1993.
JOHNSON,
Paul. O livro de ouro dos papas: a vida e a obra dos principais líderes da
igreja. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
KUNTZ,
Rolf. A redescoberta da igualdade como condição de justiça. In: FARIA,
José Eduardo (org.). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo:
Malheiros, 2002.
LITRENTO,
Oliveiros. Curso de direito internacional público. 4. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2001.
SILVA,
Geraldo Eulálio do Nascimento e & ACCIOLY, Hildebrando. Manual de
direito internacional público. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
WOLLPERT, Rudolf Fisher. Os papas. 4. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
*Bacharelando em Direito pela UNESP, em Franca (SP).
Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9031
>. Acesso em: 17/10/06.