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Soberania x Direito Internacional
Eduardo Carlezzo*
A soberania é una e indivisível, não se
delega a soberania, a soberania é irrevogável, a soberania é perpetua, a
soberania é um poder supremo, ei os principais pontos de caracterização com que
Bodin fez da soberania no século XVII um elemento essencial do Estado"
(BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10ª ed. São Paulo: Editora Malheiros. 1996,
p. 126).
Com esta passagem ilustrando o pensamento de um dos grandes juristas da
monarquia francesa, iniciamos estas breves linhas que tem por objetivo tecer
algumas considerações sobre este espinhoso tema que põe em posição de choque a
questão da soberania interna em relação ao direito internacional e,
conseqüentemente, a relativização daquela em prol de um ordenamento jurídico
internacional.
A soberania, que no passado esteve umbilicalmente jungida à figura do monarca,
o qual por sua vez encarnava o caráter da divindade, hoje se apresenta de uma
forma bastante diversa. Sob o prisma da democracia, ainda abordando questões
históricas, podemos dividir a doutrina da soberania em soberania popular e
soberania nacional. A primeira, mais democrática, difundia a soberania a todos
os membros da comunidade, sendo, por conseqüência, cada um deles titular de uma
parcela da mesma, de modo que todos fossem iguais politicamente. A soberania
nacional, de outro lado, ao invés de pulverizar a soberania, absorve-a e delega
a um único ente, qual seja, a Nação. A diferença básica entre ambas as
doutrinas reside na legitimidade para o sufrágio popular: uma restringe tal
legitimidade e a outra concede-a a todos os cidadãos.
Por óbvio que a questão da soberania não adstringe-se apenas às citadas
características doutrinárias e históricas, de modo que atualmente seu conceito
é bastante abrangente, sendo utilizado em inúmeras situações para justificar
vários atos do Poder Público, e, por que não dizer, dos entes privados. Apenas
para citar alguns exemplos da positivização deste conceito, a nossa
Constituição Federal declara que o Brasil constitui-se em um Estado Democrático
de Direito, tem como fundamento a soberania (art. 1º, I) e rege-se nas suas
relações internacionais pelo princípio da independência nacional (art. 4º, I).
O Brasil, que tem no processo de democratização das instituições políticas e da
sociedade um fato bastante recente, vê-se hodiernamente situado em uma posição
delicada, que é a de decidir sobre a preservação total de sua soberania, na sua
feição interna, ou paulatinamente delegar uma parcela da mesma em prol do
direito internacional, mais especificamente ao Mercosul.
Como dissemos, o nosso pais tem na democracia, e, por conseqüência, no Estado
Democrático de Direito, uma figura relativamente nova, de maneira que a questão
da delegação da soberania interna a terceiros ainda causa arrepios. Para melhor
delinear tal situação, mister que façamos uma análise de como tal fato ocorreu
na Comunidade Européia, a qual, como hoje sabemos, funda-se sob as bases da
supranacionalidade, o que demanda que os seus Estados membros delegam uma
parcela de sua soberania interna a um sujeito internacional.
O processo de integração europeu, até alcançar um patamar de
supranacionalidade, não ocorreu de uma hora para outra, mas sim começou a cerca
de 50 anos atrás, com Tratado de Paris, que constituiu a Comunidade do Carvão e
do Aço (CECA), inicialmente composta por seis Estados. Este tratado estabeleceu
instituições independentes dos respectivos Estados membros que passaram a ser
responsáveis pela gerência do carvão e do aço dos mesmos. Outro passo
importante foi dado em 1957, com o Tratado de Roma, que criou a Comunidade
Européia de Energia Atômica (CEEA ou EURATOM) e a Comunidade Econômica Européia
(CEE). Assim, com o desenvolvimento das relações entre os Estados e com as
semelhanças dos dirigentes destas três comunidades, em 1992, assinou-se o
Tratado de Maastricht, que criou a União Européia.
Um dos pontos de grande relevância e que com certeza contribuiu para o
fortalecimento da Comunidade Européia é o fato de a mesma contar com diversos
órgãos, todos com funções bem delimitadas, e, principalmente, com um Tribunal
de Justiça, localizado em Luxemburgo, responsável pela interpretação Direito
Comunitário. Todavia, para chegar-se a tal ponto, fora necessário uma mudança
de visão, seja da população seja dos mandatários políticos, e, sobretudo, uma
mudança na Constituição de cada Estado.
Isto porque uma das principais conseqüências da submissão às normas
comunitárias é a sujeição a chamada doutrina do efeito direito. Tal dialética
parte do pressuposto de que as normas comunitárias que forem claras e
auto-suficientes deverão se consideradas como normas internas de cada Estado
membro. Portanto, sendo lei interna, as normas comunitárias podem ser invocadas
perante o Judiciário dos respectivos Estados. Intrinsecamente ligada a doutrina
do efeito direto e lhe dando sustentação, surge o entendimento de que também
era necessário que o direito comunitário tivesse força hierárquica superior ao
direito interno dos Estados. Esta primazia não nasceu de qualquer norma ou
tratado, mas sim de uma interpretação do Tribunal de Justiça, eis que os
tratados constituintes da Comunidade silenciavam sobre o assunto. Deste modo,
entendeu o Tribunal que se as normas comunitárias pudessem ser anuladas por
qualquer norma de direto interno, a construção de uma Europa unida estaria
comprometida, sendo necessário que as mesmas tivessem uma aplicação
uniformizada, conferindo-se primazia as normas comunitárias em relação ao
direito interno dos Estado membros.
Tendo então as normas comunitárias efeito direito, incorporando-se
imediatamente aos ordenamentos internos, sem a necessidade de qualquer processo
de internalização, e hierarquia frente a quaisquer outras normas dos Estados
membros, resta saber: o direito comunitário tem primazia sobre a Constituição de
cada Estado? Questão tão polêmica quanto confrontar a soberania de uma Estado
frente as normas de direto internacional é saber se uma norma de direito
internacional (neste caso de direito comunitário) pode sobrepor-se a
Constituição (que não deixa de ser uma forma de externar a soberania de um
país). Tal celeuma ocorreu internamente em vários Estados comunitários, tendo
inúmeros destes inicialmente refutado a idéia de delegar funções outrora
privativas e soberanas a uma entidade de caráter internacional. Todavia,
posteriormente, embuídos de um ideal maior, qual seja, a construção de uma
Europa sem fronteiras, os Estados cederam, e, inclusive, fizeram modificações
nas respectivas Constituições visando transferir competências anteriormente
internas a um sujeito externo, como, para citar, foi o caso da Alemanha e
França.
Feitos estes comentários que nos pareciam obrigatórios para melhor situar o
tema, cabe volver a nossa realidade, ao nosso conceito de soberania e a
possibilidade restrição da mesmo em proveito de um sujeito de direito
internacional, que em nosso caso seria (ou poderia ser) o Mercosul.
A questão da soberania, aqui interpretada no sentido de delegação de
competências internas a um ente exterior, está intimamente associada à
possibilidade de admitir-se que normas de direito internacional possam ser
hierarquicamente superiores às normas constitucionais. Tenhamos como exemplo o
art. 21, VII, da CF, que assegura competência exclusiva da União para emitir
moeda. Esta é uma questão de soberania nacional, pois apenas o Banco Central
está legitimado a imitir o Real, a moeda oficial do nosso país. Agora
imagine-se que tal atribuição fosse delegada, em caráter privativo ou
concorrente, a um órgão monetário a ser formado no âmbito do Mercosul, nos
moldes do Banco Central Europeu, com competência para emitir a moeda oficial do
bloco, que passaria também a ser aceita em todas as transações realizadas
dentro do Brasil, com mesma "força" do Real. Haveria assim uma
delegação de soberania, pois um órgão internacional poderia emitir moeda a ser
aceita com mesma oficialidade da moeda nacional, e haveria ainda a necessidade
das normas de política monetária instituídas por este hipotético sujeito
internacional (agora de caráter supranacional) serem observadas diretamente no
país, mesmo que colidissem com a Constituição. O que fazer? Mudar a
Constituição ou simplesmente admitir a supremacia deste direito internacional?
A Constituição Federal, no parágrafo único do art. 4º, declara que "a
República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social
e cultural dos povos da América Latina, visando a formação de uma comunidade
latino-americana de nações". Deste modo, vê-se que o Brasil confere
preponderância à integração de todos os países da América Latina, muito embora
atualmente o nosso processo integracionista esteja adstrito ao Mercosul.
Sendo então o Mercosul a nossa realidade em termos de integração internacional
(inobstante a tensão vivenciada em razão da grave crise econômica que enfrenta
a Argentina), percebe-se, como não poderia deixar de ser, as inúmeras
diferenças com o bloco comunitário europeu. Uma das principais concerne às
bases supranacionais sob as quais está formatada a CE, o que dá outra dimensão
jurídica, política e social a uma união de nações, ao contrário do Mercosul,
que trabalha sobre estruturas intergovernamentais, isto para não dizer-se ainda
que o nosso bloco preocupa-se preponderantemente com os temas econômicos,
relegando a segundo plano outras questões de caráter social.
A problemática da eventual cessão de uma parcela da soberania interna que goza
o Brasil, a nosso ver, é apenas uma questão de tempo (muito embora também
admitimos que este tempo possa vir a ser bastante dilatado). Num mundo
extremamente globalizado, onde a informação não tem mais dono e as tecnologias
avançam e disseminam-se (guardadas as devidas exceções) numa velocidade
impressionante, o Brasil, como umas das maiores economias do planeta (não
olvidando a gravidade dos problemas sociais existentes), fatalmente irá aderir
a um modelo que vise a formação de uma comunidade de nações, não apenas em sua
faceta econômica, como criticamente podemos dizer ser o caso do Mercosul. Todavia,
o grande empecilho que surge para tanto, e este não é de ordem jurídica e sim
econômica, é a fragilidade da economia latino-americana. E quando diz-se
economia leia-se também saúde, educação, enfim, questões estruturais nas quais
nós todos (inclusive o Brasil, com uma pequena vantagem) estamos atrasados. Assim,
até que não haja harmonia interna dentro dos países é realmente difícil a
consolidação do Mercosul, e mais ainda a construção de uma comunidade
latino-americana.
Por tais razões, muito embora a temática aqui a ser discutida era de ordem
jurídica, não há como olvidarmos quando falamos em integração regional ou
cessão de soberania a um órgão externo, de questões de cunho social e
econômico, eis que as mesmas refletem diretamente nas questões jurídicas. Portanto,
até que tenhamos uma solidez interna, de modo que não seja necessário a cada
crise econômica ter-se que tomar medidas (unilaterais) protetoras da economia
interna, em prejuízo dos demais países que formam um bloco integracionista,
ficará muito difícil, para não dizer quase impossível, formar-se uma comunidade
de Estados onde todos, não apenas o Brasil, delegam parcela de sua soberania a
um órgão internacional, inobstante acreditarmos ser este um rumo natural.
*Advogado. Assessor
Jurídico do Sport Club Internacional. Consultor Jurídico da Maurênio Stortti
Consultores Associados. Pós-graduando em MBA em Direito da Economia e da
Empresa pela Fundação Getúlio Vargas. Mestrando em Unión Europea y Integración
Económica Latinoamericana pela Universidad Politecnica de Madrid. Membro do
Instituto Brasileiro de Direito Desportivo e da International Association of
Sports Law
CARLEZZO, Eduardo. Soberania x Direito Internacional. Dispoível em: < http://www.escritorioonline.com/>. Acesso em: 23 ago 2006.