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Adán Nieto Martín
Tradução de Damásio de Jesus
Outubro/2003
INTRODUÇÃO
A corrupção é, sem dúvida, um dos delitos mais
característicos do mundo globalizado. Por isso, não é de estranhar-se que os
órgãos supranacionais tenham criado nos últimos tempos diversos instrumentos
com a finalidade de estabelecer estratégias comuns. No âmbito europeu,
destacam-se as diversas iniciativas da União Européia (UE) e o Convênio do
Conselho da Europa Contra a Corrupção de 27.1.1999, e, dentre elas, a partir da
ótica do Direito espanhol, surpreende singularmente a formulação de um delito
de corrupção no setor privado, figura delitiva que o legislador espanhol está obrigado
a introduzir em nosso ordenamento, pois, ainda que não tenhamos aderido ao
Convênio do Conselho da Europa, a Ação Comum da UE impunha a inclusão dessa
figura delitiva antes de terminado o ano de 2000[2].
Salvo erro ou omissão da minha parte, nem o legislador, nem a
doutrina reconheceram a obrigação de incluir um delito com essas
características. Além disso, não é exagero indicar que a expressão corrupção
privada é quase desconhecida no dicionário de termos jurídico-penais espanhóis.
No máximo, faz-se menção a ela somente no momento de proceder a uma
classificação dos diversos tipos de corrupção. Nessa situação, a metodologia
mais eficaz consiste em analisar os diversos ângulos que essa tipologia de
condutas apresenta no Direito comparado, para, a seguir, questionar e refletir
acerca de sua possível projeção – de lege lata e lege ferenda – no Direito espanhol.
Ocorre que, ainda que a corrupção privada, tal como está definida na Ação
Comum, resulte em uma figura delitiva singular, algumas de suas conseqüências
ou manifestações alcançam relevância penal ou a possuem em outros setores do
ordenamento, como o Direito da Concorrência ou o Trabalhista, por meio de sanções
civis ou administrativas.
No Direito comparado, de acordo com o útil relatório do Max
Planck Institüt sobre a corrupção[3], podem ser encontradas até quatro
perspectivas diferentes da corrupção privada: a) a trabalhista; b) a que é
efetuada a partir do Direito da Concorrência; c) a que é centralizada nas
implicações penais do processo de privatização da administração e, finalmente,
d) a que considera os aspectos patrimoniais da corrupção.
A CORRUPÇÃO PRIVADA NO DIREITO
COMPARADO
Na França (art. L 152.6 do Código de Trabalho) e na Holanda
(art. 328 do CP), a corrupção entre particulares é abordada a partir da ótica
do Direito do Trabalho. O suborno de empregados constitui uma conduta que
atenta contra o princípio de lealdade nas relações trabalhistas. Provavelmente,
esse é o raciocínio compartilhado também no RU após a Prevention
of Corruption Act de 1906, que compreende tanto a corrupção privada quanto determinados casos de corrupção pública,
pois, na lógica desse texto legal, o nexo comum entre ambos os tipos de
corrupção é a deslealdade com o superior, seja autoridade, funcionário público
ou empresário privado[4]. Esse primeiro modelo acarreta fundamentalmente três conseqüências
na conformação dos tipos penais. De um lado, sujeitos ativos somente são os
“empregados”, mas não logicamente os empregadores; sob outro aspecto, o consentimento
do empresário supõe a atipicidade do comportamento, pois onde este admite ou
tolera as gratificações ou subornos não se pode falar de deslealdade. E,
finalmente, ao se situar a infração do dever funcional que está intrínseca em
todo ato de corrupção[5] na relação genérica de lealdade entre
empresário e trabalhador, o ato a cumprir é definido em termos
extraordinariamente amplos: “pour accomplir
ou s’abstenir d’accomplir un acte de sa
fonction ou facilité par sa fonction”[6].
A segunda aproximação é proporcionada pelo Direito alemão (§
299 StGB)[7] e pelo austríaco (§ 10 UWG). Aqui, o ponto de vista relevante, o
bem jurídico protegido, não é outro senão a tutela da concorrência.
Concretamente, trata-se de sancionar um ato de concorrência desleal[8]. Nesse âmbito, a infração do dever
funcional situa-se no contexto das obrigações dos operadores econômicos do
mercado. Na formulação típica, essa conceituação da corrupção privada
manifesta-se da seguinte forma: a corrupção somente será relevante enquanto
afetar fornecimentos de mercadorias ou prestações de serviços que se efetuam
num regime de concorrência; o caráter supra-individual do bem jurídico
protegido faz com que o consentimento do empresário seja irrelevante; dado que
a concorrência desleal é uma instituição destinada a tutelar tanto os
participantes do mercado quanto a comunidade, esse delito é um crime privado[9], salvo naqueles casos em que o
comportamento afeta de forma relevante os interesses públicos (§ 301 StGB). É significativo, contudo, que, a partir da
formulação do bem jurídico protegido, os sujeitos ativos continuam sendo
somente empregados ou encarregados. Coerente teria sido também incluir os
próprios empresários no círculo de autores. A concorrência altera-se de igual
forma quando é o proprietário da empresa quem solicita ou recebe a oferta de
contraprestação econômica em troca de preferir, de maneira desleal, o
fornecimento de serviços ou mercadorias de um determinado concorrente.
Dissimuladamente, a lealdade nas relações trabalhistas também está presente na
conformação do tipo. A esse modelo responde claramente a Ação Comum da UE, e
igualmente o preceito (art. 36: suborno de empregados e encarregados) da
proposta de eurodelitos efetuada pelo professor Tiedemann[10]. Em ambas, o bem jurídico protegido
é a concorrência. Se bem que, nas duas propostas, se continua a não incluir o
empresário como sujeito ativo.
A terceira aproximação a esse fenômeno pode ser efetuada a
partir dos conceitos de privatização e distanciamento do Direito
Administrativo. Convivem, nesse ponto, duas situações diferentes. A primeira é
a que nos apresenta o Direito sueco, no qual, desde 1978, existe um tipo
unitário de corrupção, que compreende tanto a corrupção privada quanto a
pública[11]. Essa opção se baseia em um
argumento de política criminal que pode ser compartilhado por todos, uma vez
que se sustenta em uma análise econômica do fenômeno da corrupção: esta sempre
gera ineficiência econômica e custos excessivos que acabam onerando os
cidadãos, seja como administrados, seja como
consumidores. Mas a opção sueca não pode ser compreendida completamente sem
considerar-se o respeito que a esfera pública tem nesse país, o que faz com que
as formas de gestão públicas tenham sido adotadas pela empresa privada, além de
ser o setor público particularmente amplo.
Este último argumento – tão “nórdico” – tem difícil amparo,
tendo em vista o ocorrido nas duas últimas décadas na maioria dos países da UE,
onde a tendência é justamente o contrário: reduzir o setor público por meio do
processo de privatizações, delegar a prestação de serviços públicos e a
realização de tarefas públicas às empresas privadas, “fugindo do Direito
Administrativo” mediante a sujeição de determinadas atividades desenvolvidas
pela administração ao Direito comum[12]. Essa espécie de confusão entre o
público e o privado provocou, em países como a Alemanha, uma redefinição do
conceito de funcionário público (§ 11 StGB),
cujo objetivo é, sobretudo, incluir dentro desse termo os particulares que, por
encargo da administração, realizam funções públicas[13]. Na Áustria, e a partir de uma perspectiva complementar,
formulou-se um tipo penal específico, no qual se sanciona a corrupção de
empregados de empresas públicas [§ 305.1 (2) e § 307.1 (2) ÖStGB][14]. Nos antigos países socialistas essa é a preocupação que inspira
as reformas ocorridas nos últimos anos. O interesse pela criação de um delito
de corrupção no setor privado provém do desmantelamento do setor público e do
conseqüente horror vacui
perante a anomia jurídica-penal em que ficam os outrora funcionários
públicos. Político-criminalmente, os argumentos colidem com os dos suecos: onde
tudo era público, é difícil indicar os motivos que farão com que os
trabalhadores atualmente privados tenham um cenário penal tão diferente[15].
A aproximação ao fenômeno da corrupção privada não estaria
completa se não se fizesse menção a uma última perspectiva: a patrimonial. Os
fundos que saem de uma empresa para subornar um empregado público ou privado
supõem um prejuízo patrimonial, a partir do ponto de vista econômico de que
somente se admite como contraprestação econômica a expectativa patrimonial que
supõe a promessa de o funcionário público ou privado poder considerar-se
compensado. Igualmente, em contrapartida, na empresa cujo representante recebe
o suborno, no mínimo, existe o perigo da administração desleal por parte do
administrador subornado, que ao encontrar-se em uma situação de conflito de
interesses, pode preterir os interesses patrimoniais de sua empresa. Esse
problema, até tempos muito recentes, somente encontrou resposta na
jurisprudência, que em alguns países, como a Áustria, considerou que os fatos,
tanto por parte do “que dá” quanto do “que recebe”, constituem um delito de
administração desleal[16]. Como se pode comprovar, a pergunta
que surge dessa perspectiva é em que proporção os delitos de “administração
desleal” devem contribuir para a função social de lutar contra a corrupção[17]. O legislador italiano acaba de
responder afirmativamente a essa pergunta. Na recente reforma do Direito Penal
Societário, ele incluiu, como tipo especial de administração desleal, o delito
de “infidelita a seguito di dazione o promessa di utilitá” (art.
2634 c.c.)[18],[19].
[1] Paper
apresentado no Convênio de Estudos sobre: A Corrupção Privada: experiência
comparativa e perspectiva de reforma, Jesi, 12-13,
abril de 2002. Trad. de La corrupción en
el sector privado: reflexiones desde el ordenamiento español a la luz del Derecho comparado (Revista Penal
[2] Sobre a estratégia internacional contra a corrupção, vide HUBER, La
lotta alla corruzione in prospetiva sovranazionale, RTDPE,
p. 467 e ss., 2001; em relação à formulação dos delitos de corrupção no setor
privado realizada pelo Convênio do Conselho da Europa e pela Ação Comum da UE, vide DE
Ação Comum sobre a corrupção no setor privado (Diário Oficial de las Comunidades Europeas, L 358, p. 2, 1998):
Art. 2. Corrupção passiva: “Para efeitos da presente Ação Comum, constituirá
corrupção passiva no setor privado o ato intencional de uma pessoa que,
diretamente ou por meio de terceiros, solicitar ou receber, no exercício de
atividades empresariais, vantagens indevidas de qualquer natureza, para si
mesma ou para um terceiro, ou aceitar a promessa de tais vantagens, em troca de
realizar ou se abster de realizar um ato descumprindo suas obrigações”.
Art. 3. Corrupção ativa no setor privado: “1. Para efeitos da presente Ação
Comum, constituirá corrupção ativa no setor privado a ação intencional de quem
prometer, oferecer ou der, diretamente ou por meio de terceiros, uma vantagem
indevida de qualquer natureza a uma pessoa, para esta ou para um terceiro, no
exercício das atividades empresariais da referida pessoa, para que esta realize
ou se abstenha de realizar um ato descumprindo suas obrigações”.
[3]
ESER/ÜBERHOFEN/HUBER (HRSG.), Korruptionsbekämpfung durch Strafrecht. Ein rechtsvergleichendes Gutachten zu den Bestechungsdelikten im Auftraf des Bayerisches Staatsministeriums der Justiz, Iuscrim, Freiburg i.
[4] HUBER/BECK (nota 3), p. 84.
[5] Na definição do conceito de corrupção, parto do
elaborado por MALEM SEÑA, Globalización, comercio internacional y corrupción,
Barcelona, Gedisa, 2000, p. 25 e ss. e p. 28:
“pode-se definir aos atos de corrupção... como aqueles que constituem a
violação, ativa ou passiva, de um dever posicional ou do descumprimento de
alguma função específica realizados em um marco de discrição com o objetivo de
obter um benefício extraposicional, qualquer que seja
sua natureza”.
[6] DELMAS-MARTY; GIUDICELLI-DELAGE, Droit Pénal des affaires, 4.ª ed., Paris, Puf,
2000, p. 289.
[7] O § 299 StGB corresponde ao
antigo § 12 UWG, pelo qual a Alemanha conta com um delito de corrupção privada,
a partir do início do século XX. A transcendência prática desse preceito foi,
contudo, escassa, devido tratar-se de um delito privado, e as empresas, seja
por questões de perda de imagem ou por outras razões comerciais, decidiam não
denunciar. Sua transferência ao StGB
foi efetuada mediante a Lei alemã de 20.8.1997, de luta contra a corrupção, com
a intenção de incrementar a prevenção geral, motivo que provocou também uma
agravação das penas, e de gerar maior consciência social acerca do dano desse
tipo de comportamento, que na expressão da Exposição de Motivos representa uma
conduta ética socialmente desaprovada. Em qualquer caso, como surge da leitura
dos primeiros comentários à Lei de 1997, essa reforma não foi objeto de atenção
especial.
Sobre a Lei contra a corrupção, vide
KÖNIG, Neues Strafrecht gegen die Korruption,
JR, 10, 1997, p. 297 e ss.; KORTE, Bekämpfung der Korruption und Schutz des freien
Wettbewerbs mit dem Mitteln des
Strafrechts, NStZ,
1997, p. 513 e ss.; MÖHRENSCHLAGER, Strafrechtliche Vorhaben zur Bekämpfung
der Korruption auf nationaler und internationales Ebene, JZ, 1996,
p. 822 e ss.; SCHAUPENSTEINER, Das Korruptionsbekämpfungsgesetz,
Kriminalpolitik, 11/97, p. 699 e ss. Um resumo da
reforma também se acha em WASSMER, Revista
Penal, n. 3, p. 123 e ss.
[8] Vide,
por todos, entre os diversos comentários, BLESSING, em MÜLLER-GUGENBERGER;
BIENECK, Wirtschaftsstrafrecht,
3 Aufl., Köln, Verlag Dr. Otto Schmidt, 2000, § 53, marg.
48 e ss. e SCHUBERT, WABNITZ/JANOVSKY, Handbuch des Wirtschafts
und Steuerstrafrecht,
München, Verlag C.H.Beck, 2000, 12 Kapitel. Korruption, marg. 72 e ss.
[9] N. do T.: crime de ação penal privada.
[10]
TIEDEMANN in TIEDEMANN (HRSG.), Wirtschaftsstrafrecht in der Europïaschen
Union, Freiburg-Symposium, Carl Heymans Verlag, 2002, p. 287-228
e art. 36.
[11] Vide
CORNILS in nota 3, p. 501 e ss.
[12] Em relação às causas políticas e ideológicas desses
fenômenos, vide por todos:
MARTÍN MATEO, Liberalización de la economía, Más Estado, menos Administración,
Madrid, Trivium, 1988.
[13] Especificamente sobre o conceito de funcionário
público em relação aos problemas mencionados, além da bibliografia citada na
nota 7, vide LECKNER, Privatisierung der Verwaltung und “Abwahl des
Strafrechts”?, ZStW 106 (1994), p. 502 e ss.; RANSIEK, Zur Amtsträgereigensachaft nach § 11, I, n. 2 c StGB, NStZ 1997.
[14] Além do relatório sobre a Áustria efetuado por
ÜBERHOFEN in nota 3, p. 379 e ss., vide
também BERTEL, Infedeltá ed
accettazione di regali da parte del repressentante, RTDPE,
p. 43 e ss., 1988. Na doutrina italiana, já apontava essa direção
político-criminal nos anos 60: PEDRAZZI, Problemi e prospettive del
Diritto Penale dell’impresa publica, RIDPP, 1966.
[15] Vide
os relatórios de antigos países socialistas in nota 3, e também em relação à
Rússia, que em 1997 introduziu a corrupção entre particulares no seu Código
Penal (art. 204), vide
SEREBRENNIKOVA in Wirtschaftskriminalität und Wirtschaftsstrafrecht,
in einem Europa auf dem Weg zu
Demokratie und Privatisierung (Hrsg.
Grobb), Leipziger Universitätverlag, 1998, p. 232.
[16] Vide
BERTEL (nota 14), passim.
[17] Confira GÓMEZ BENÍTEZ, José Manuel, Curso de Derecho Penal de
los negocios a través de
casos: reflexiones sobre el desorden legal, Madrid, Colex,
2001, p. 161 e ss.
[18] Vide
sobre o Projeto Milittelo, RTDPE, p. 905 e ss.,
De lege lata,
o art. 204 do CP russo pode se enquadrar também nessa direção, já que se situa
em conjunto com dois delitos pertencentes ao marco da administração desleal no
capítulo denominado “Proteção da lealdade na prestação de serviços”.
[19] N. do T.: entre nós, a corrupção ativa e a passiva no
setor privado configuram delitos de concorrência desleal, definidos no art.
195, IX e X, da Lei n. 9.279, de 14.5.1996.
Como citar este artigo:
MARTÍN, Adán Nieto. A corrupção no setor
privado (reflexões a partir do ordenamento espanhol à luz do Direito
Comparado). São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, out. 2003.
Disponível em: <http://www.damasio.com.br/?page_name=art_012_2003&category_id=33>
Acesso:
20/07/06
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