A
principiologia das relações internacionais brasileiras como óbice à formação de
uma comunidade latino-americana
Alexandre Sturion de
Paula *
Sumário: 1) Introdução; 2) Comunidade e
Sociedade: conceituação; 3) Evolução à comunidade internacional latina; 4) A
principiologia das relações internacionais; 4.1) Princípio da prevalência dos
direitos humanos; 4.2) Princípio da cooperação entre os povos para o progresso
da humanidade; 4.3) Pela Soberania; 5) Adendo Final; 6) Conclusão.
Resumo: As transformações sócio-econômicas
estão conduzindo a humanidade de uma natural comunidade para uma
artificial sociedade internacional. A busca constitucional brasileira da
formação de uma comunidade latino-americana exige, portanto, a ruptura
do superficialismo amparado em codificações nacionais e em acordos e tratados
internacionais, que caracterizam a sociedade, para a elevação de fatores
culturais, morais e de valores intrínsecos à comunidade. Esta mudança
pode validar-se através dos princípios de relações internacionais contidos na
Carta Constitucional de 1988, todavia, estes se apresentam como verdadeiros
obstáculos à implantação de uma comunidade internacional latina,
mormente pela defesa exacerbada à soberania impedindo os avanços
supranacionais.
Abstract: The socioeconomic transformation
are conducting of the hamanity from a natural community to na artificial
international society. In quest of the formation of a latin american community,
require from the brasilian Constitution, the breakage of the superficialism
supported by a national codification and in accordance and international
agreement, that descrive to the raising of the cultural, ethics and of inerent
values that are measure to the community. This change can have value over the
principle of the international relation existent in the Carta Constitutional of
1988. However, these principle are showing up as a real impediment to the
estabrishment of a Latin International Community, principally for the excessive
defense of the sovereing that discourage the supranationals advances.
Palavras-chave: Comunidade; Mercosul;
Princípios; Sociedade Internacional.
Kei-Words:
Community;
Mercosul; Principle; International Society.
1) Introdução.
Em décadas pretéritas onde a expressão ''globalização''
ainda era desconhecida, os Estados do hemisfério norte viviam o desenvolvimento
acelerado de suas regiões urbanas, enquanto, no hemisfério sul, os rurículas
sequer imaginavam outra hipótese de vida que não o labor com a terra; havia uma
genuína comunidade de cunho caracteristicamente regional, cuja exceção
consistia apenas quanto às grandes capitais e cidades que já aderiam-se ao
conceito de metrópoles.
Nesta referida época, a comunidade vivia numa sociedade
quase desestruturada, embora sem caos, gerida em grande parte pelo capital
rural e pelas ideologias acadêmicas de então, sem porém, haver caracterizado
uma internacionalização societária como visível hoje. Passadas a Primeira e a
Segunda Guerra, e permeando-se pela Revolução Industrial, constatamos o início
de uma forte caracterização da sociedade internacional, marcada pelas
transações comerciais entre as denominadas ''multinacionais''. Logo surgiram os
computadores que avançam sem cessar até nossos dias, impulsionando as
sociedades. Com este veio a ''internet'' e a comunicação instantânea que,
somados, constituíram o trampolim para a hodierna globalização, onde já se
torna pacífica a existência de uma sociedade internacional, já
configurada em ambos hemisférios do globo.
Pari passu a esta gradiente evolução social,
política, econômica e tecnológica, também a ciência jurídica esteve
materializada no acompanhamento das transformações e acontecimentos que a
história registrou para a eternidade, e o Direito regulou através das
codificações e legislações nacionais, além dos acordos, convenções,
declarações, tratados e protocolos internacionais, na ânsia de impor normas às
relações havidas na órbita externa e interna dos Estados.
Contudo, este avanço da comunidade interna para a sociedade
internacional gerou um superficialismo amparado tão-somente em leis e
tratados, visto não ter fincado raízes entre as comunidades nacionais
dos vários Estados, gerando uma ausência das peculiaridades do ser humano (sua
cultura, seus valores ético e morais, suas afeições, etc) encontráveis somente
numa comunidade.
Observando os princípios que regem as relações
internacionais brasileira, mormente a busca do Brasil na formação de uma
comunidade latino-americana, buscamos em nosso singelo estudo responder a
indagação de Celestino Arenal1: "estamos, na verdade, diante de
uma sociedade internacional envolvida em processo de evolução rumo a uma
comunidade internacional?" Para isto, utilizamo-nos da dialética e dos
métodos de procedimento para aferir as definições de comunidade e sociedade,
e encontrar a resposta ao questionamento formulado por intermédio da
principiologia das relações internacionais brasileira, contida no artigo 4º da
Constituição Federal de 5 de outubro de 1988.
2) Comunidade e Sociedade: conceituação.
Ao falarmos em comunidade e sociedade,
imprescindível conduzirmo-nos à clássica obra de Ferdinand Tönnies2,
"Gemeischaft und Gesellschaft", escrita em 1887, em que o autor
reduz os grupos sociais a duas formas fundamentais: comunidade e sociedade.
O autor alemão definiu a comunidade como o "grupo espontâneo, quase
intuitivo, de larga duração, dotado de cultura comum", onde os seus
membros estão organicamente integrados sem que haja dependência da vontade
individual, pois predomina nela os interesses da comunidade, é o caso da
família e da Nação.
Quanto à sociedade afirma que esta "é
artificial, fruto do raciocínio utilitário, instituída ou constituída
voluntariamente para tender a interesses particulares"3.
Observa-se, simplisticamente, que a comunidade é fruto da própria
natureza, enquanto a sociedade decorre da perene criação humana. Estas
definições possuem importância quando almejamos discutir e distinguir a
"comunidade" e a "sociedade" internacional, ou,
precisamente, a formação de uma comunidade latino-americana de nações.
Tönnies tratou de definir a comunidade e a sociedade
em sentido lato, mas, verificamos que ao transportarmos ambos grupos sociais
para a seara internacional não presenciamos diferenciações relevantes, e isto
comprova-se pelas distinções apresentadas pela emérita professora Odete Maria
de Oliveira (2001:136) que leciona que nas décadas de 40 e 50 debateu-se
prolongadamente sobre a distinção de comunidade internacional e sociedade
internacional. Em síntese, a prestigiosa professora apresenta as seguintes
diferenças fundamentais: 1)"a comunidade constitui uma unidade natural e
espontânea, enquanto a sociedade apresenta-se como uma unidade, de certa forma,
artificial"; 2)"a comunidade contempla uma forma de ser do
indivíduo nela incorporado e a sociedade, ao contrário, representa uma forma de
estar"; 3)"a comunidade forma integração, enquanto que a
sociedade é estabelecida pela soma das partes"; 4)"na comunidade
regem valores convergentes, éticos, comuns; na sociedade valores divergentes,
primando a legislação, a convenção, o normatizado", como observa-se,
permanece intocável a lição de Ferdinand Tönnies.
3) Evolução à comunidade internacional latina.
Não há como se falar em comunidade no Direito
Internacional sem que se relacione, internacionalmente, as sociedades,
com suas peculiaridades sócio-econômicas e jurídicas para o alcance de uma
verdadeira comunidade entre Nações. O professor Celso Albuquerque Mello
(1992:357), a respeito das teses acerca da integração dos Estados no plano
internacional, apresenta a tese de Deutsch, comentando o seguinte: "Karl
Deutsch sustenta que a integração depende de uma efetiva comunicação entre os
Estados de uma região, o que desenvolve o sentido de ''comunidade'' entre eles.
Assim sendo, haveria um aumento das relações entre estes Estados em comparação
com as relações com os demais Estados. As finalidades de integração podem ser
resumidas nas seguintes: a) manutenção da paz; b) aumentar as potencialidades;
c) realizar determinado objetivo; d) possuir uma nova imagem e
identidade".
Assim, sendo a comunidade o alicerce da sociedade,
exsurge a necessidade de se erigir um elo entre a comunidade nacional à comunidade
de nações, que deve permear pela comunidade nacional, até atingir a
sociedade nacional, esta criará uma sociedade internacional, até aterrar-se na
comunidade internacional, onde, então, existirá uma legitima inter-relação
entre os países latino-americanos, não por força de acordos, pactos e
princípios, mas oriundo, sobretudo, de uma sólida fraternização cultural, moral
e de valores intrínsecos à comunidade. Igualmente, é requisito imprescindível à
formação de uma comunidade latino-americana de nações, o cumprimento de
diretrizes que se consubstanciam sinteticamente nos princípios de relações
internacionais expostos no mencionado artigo 4º, da Carta Magna de 1988,
incisos I a X.
Oportuno considerar, contudo, que Adam Watson4
constatou que na sociedade mundial mais do final do século XX, um grande número
de Estados se aproximavam, tão-somente por aspectos reguladores, isto é,
acordos, pactos e princípios, sem, contudo, se sentirem ligados por valores e
códigos morais, ou seja, sem nenhum fator cultural de valores, somente através
de elites diplomáticas, mas sem raízes compartilhadas. Significa dizer, então,
que há apenas uma sociedade internacional que é utilizada como instrumento de
comunicação entre comunidades e sociedades nacionais.
O Brasil "buscará a integração econômica, política,
social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma
comunidade latino-americana de nações", assim dispõe o parágrafo único do
art. 4º da Lex Fundamentalis brasileira. O eminente jurista Valério de
Oliveira Mazzuoli (2000:28) salienta que "a proposta revisional (PRE) n.º
001079-1, de autoria do Deputado Adroaldo Streck, (na revisão constitucional de
1994), apresentou a substituição do referido parágrafo único do art. 4º da
Constituição, pelo seguinte texto: 1.As normas de direito internacional são
parte integrante do direito brasileiro; 2.A integração econômica, política,
social e cultural visando à formação de uma comunidade latino-americana de
nações, constitui objetivo prioritário da República Federativa do Brasil; 3.Desde
que expressamente estabelecidos nos respectivos tratados, as normas emanadas
dos órgãos competentes das organizações internacionais, de que o Brasil seja
parte, vigoram na ordem interna brasileira", ressalta ainda que, mesmo
após modificações do relator-geral do processo de revisão constitucional, o PRE
foi rejeitado.
No entanto, como verificado acima, indiscutível que a sociedade
mundial está ligada artificialmente por acordos, pactos e princípios, desta
forma, para se atingir a comunidade internacional, uma vez já existente a
sociedade internacional, imperioso a condução, sobretudo dos princípios, rumo a
formação da almejada comunidade latino-americana.
O Constituinte brasileiro erigiu dez princípios de
ralações internacionais que devem ser hermeneuticamente estudados e aplicados
com o escopo de atingir a meta prevista no citado parágrafo único, mesmo sem a
aprovação da relevante substituição então proposta. Os princípios são: I -
independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação
dos povos; IV - não-intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da
paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao
racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X -
concessão de asilo político. Estes consistem verdadeiros desafios das
relações internacionais rumo a efetiva implantação de um comunidade
latino-americana de nações.
Os princípios acima consistem desafio das relações
internacionais para a formação de uma comunidade latino-americana
justamente por sintetizar a elaboração de uma sociedade internacional,
ou melhor dizendo, não ultrapassa o artificialismo dos acordos, pactos e
princípios, pois não objetiva a inserção de instrumentos que fomentem a criação
de mecanismos culturais, ético e morais entre os povos das diversas comunidades
nacionais.
O Brasil e, principalmente, os demais países do Mercosul
precisam sair do superficialismo formado pela sociedade internacional,
artificial portanto, que formaram na América do Sul, para ingressarem numa
verdadeira comunidade internacional que motive as potencialidades do
bloco sulista, não apenas na seara econômica, mas principalmente, no campo
cultural e humanístico. Os países do Cone Sul devem apresentar-se para o
Continente Europeu e para os países anglo-saxãos como uma única Nação. Para que
isto aconteça, entretanto, imperioso que cada país mude sua postura
protecionista e de resguardo exacerbado à Soberania, desobstruindo a efetivação
da necessária supranacionalidade, motora do desenvolvimento entre nações.
As mudanças que se fazem urgentes, podem vir através do
cumprimento de princípios constitucionais. Ressaltamos que hodiernamente os
países se aproximam tão-somente por aspectos reguladores, ou seja, através do
acatamento de acordos, pactos e princípios, como constatado por Adam Watson.
Assim, os princípios podem levar a sociedade internacional à efetiva
formação de uma comunidade latino-americana.
4) A principiologia das relações internacionais.
Como a Constituição de um país representa a norma
fundamental que indicará, determinará ou apenas programatizará o que os seus
Poderes deverão fazer no âmbito interno e externo, é dela que deve ser extraído
os princípios que nortearão o Estado em suas relações internacionais. E estes,
por sua vez, conduzirão o país a uma maior ou menor abertura social, política,
econômica e jurídica diante das relações exteriores, conforme o grau de
resguardo que os princípios derem à ''Soberania'', que exerce relevante papel
na formação do Estado e na sua ação frente a seus pares. Os princípios,
portanto, permitirão ou não que o Brasil deixe o artificialismo da sociedade
internacional e forme a comunidade latino-americana juntamente com
seus pares.
Ao erigir a principiologia das relações internacionais, o
legiferante constitucional demonstrou ora um acompanhamento com os ordenamentos
jurídicos modernos, ora um anacronismo por manter princípios que não se
compatibilizam com as exigências internacionais atuais, e que à época, 1988, já
se tornavam consideravelmente visíveis. Os avanços consistiram, em síntese,
quanto à solidificação do país na defesa da paz, na solução pacífica dos
conflitos, na igualdade entre os Estados, na cooperação e na defesa dos
direitos humanos, que, considerando-se as turbulências historicamente
existentes na América Latina representam respeitável posição. Entretanto, o
mesmo Constituinte obstaculizou, de certa forma, não só a formação de uma comunidade
latino-americana, como a aplicação dos próprios princípios que beneficiam a
relação internacional brasileira, quando fez marcar indelevelmente a perene e
reverberadora presença do resguardo exacerbado à Soberania, através dos
princípios da independência nacional, da autodeterminação dos povos,
não-intervenção, e subjetivamente, nos princípios da igualdade entre os
Estados, repúdio ao terrorismo e concessão de asilo.
Verifica-se que os princípios da prevalência dos direitos
humanos e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, acabam
por sintetizar os princípios que não estão isolados na restrita defesa da
Soberania, por abrirem-se à inserção de conceitos e diretrizes para a
fomentação de fatores culturais, compartilhando-se, desde a sua gênese, os mais
diversos valores que promovam a elaboração de uma efetiva comunidade
intrinsecamente ética e moral. O professor Celso A. Mello (2000:131) observa
que o nosso Texto Maior consagrou "uma antinomia da ordem internacional: a
soberania e a cooperação internacional, vez que esta só se realiza às expensas
daquela", por isto ressalta o emérito professor carioca, que "a
tendência atual é a da soberania existir como um conceito meramente
formal". Frise-se que a cooperação está arraigada na ''moral
internacional'', caminhando tenuamente com o princípio da solidariedade e auxílio
mútuo. Desta forma, conveniente um singelo dizer sobre ambos princípios.
4.1) Princípio da Prevalência dos Direitos Humanos.
Relevante a lição de Pedro Dallari (apud Mazzuoli,
2000:132) acerca deste princípio: "a prevalência dos direitos humanos,
enquanto princípio norteador das relações exteriores do Brasil e fundamento
colimado pelo País para a regência da ordem internacional não implica
tão-somente o engajamento no processo de edificação de sistemas de normas
vinculados ao Direito Internacional Público. Impõe-se buscar a plena integração
das regras de tais sistemas à ordem jurídica interna de cada Estado".
Cremos que não estaríamos equivocados em dizer que a lição do professor Dallari
que buscar a aplicação dos direitos humanos do genérico regramento transnacional
para a efetiva aplicação em solo nacional, ou seja, abstrair da sociedade
internacional para implantar na comunidade regional.
O professor Fernando Barcellos de Almeida (1996:24),
acerca deste tópico, tece o seguinte conceito: "Direitos humanos são as
ressalvas e restrições ao poder político ou as imposições a este, expressas em
declarações, dispositivos legais e mecanismos privados e públicos, destinados a
fazer respeitar e concretizar as condições de vida que possibilitem a todo ser
humano manter e desenvolver suas qualidades peculiares de inteligência,
dignidade e consciência e permitir a satisfação de suas necessidades materiais
e espirituais". Inegável que dentre todos os princípios este é o mais
abrangente, além de nele estar sintetizado todos os demais direitos
fundamentais, uma vez que respeitados os direitos humanos estar-se-á
homenageando os demais princípios, que de certa forma, estão intrinsecamente
alicerçados nele.
A prevalência dos direitos humanos na América Latina
consiste, contudo, num desafio ardoroso, visto que historicamente os países
latinos são marcados por caudilhismos, ditaduras que foram extintas
recentemente, golpes de Estado que persistem até o presente milênio, além dos
eternos movimentos guerrilheiros e sociais de luta armada e da inconstante
efetividade constitucional dos países deste Continente, conforme leciona o
professor Paulo Napoleão Nogueira da Silva (2000:267s). A efetivação de uma comunidade
latino-americana de nações não subsistiria paralelamente a tais anacronismos.
Portanto, pejorativo que os países sul-americanos promovam com autenticidade e
veemência a aplicação dos direitos humanos que é o berço da democracia e da
completa e plena configuração de uma comunidade internacional.
O princípio da prevalência dos direitos humanos, contido
na Carta Magna de 1988 do Brasil, deve ser engendrado como requisito ou
princípio do Mercosul para os países que o compõe e para os que nele pretendem
inserir-se, de forma que haja uma democratização política na América de um modo
geral. Uma sociedade pode suportar as diferenças existentes noutra sociedade
vizinha, mas jamais isto aconteceria numa única comunidade, e o nosso escopo é
de que haja uma comunidade internacional, portanto, imprescindível a
existência intrínseca, perene e incomodadora, se for o caso, dos direitos
humanos e dos direitos subjacentes que este comporta, em todas as Nações que
pretendam harmonizar-se numa só comunidade internacional. Os países
latino-americanos poderiam aplicar os Tratados, Convenções, Protocolos, etc, já
existentes em relação aos direitos humanos como, por exemplo, o Pacto de São
José da Costa Rica, que aliás, já foi ratificado pelo Brasil através do Decreto
n.º 678, de 6 de novembro de 1992.
4.2) Princípio da Cooperação entre os Povos para o Progresso
da Humanidade.
Sobre o mencionado princípio, previsto no art. 4º da Lei
Maior, Tupinambá Miguel C. do Nascimento (1997:219) afirma que a
"cooperação indicada no inciso IX do artigo em comento é finalística. Há a
cooperação com o objeto de alcançar o progresso da humanidade. Não é uma
simples cooperação; é o ato de cooperar altamente positivo", isto por,
como sabemos, poder existir uma cooperação entre países para um fim destrutivo,
aliás, bem visível hodiernamente, tanto nos interesses estadunidenses quanto
nos conflitos do Oriente Médio. O mencionado doutrinador salienta ainda, que
"esta cooperação pode se realizar de duas formas diferentes: como ato
unilateral brasileiro, colaborando e ajudando outros Estados em sua tentativa
de progredir, e como ato bilateral".
O Brasil, diga-se, possui várias relações internacionais
de cooperação, reflexo do princípio em questão, citamos, apenas a título de
exemplo: a Declaração de Princípios sobre a Cooperação entre o Governo da
República Federativa do Brasil e o Governo do Canadá para a Manutenção da Paz e
da Segurança Internacionais, realizado em Brasília, em 15 de janeiro de
1998, e o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República
Portuguesa e a República Federativa do Brasil, aprovado pela Resolução da
Assembléia da República n.º 83/2000, de 14 de dezembro de 2000. O próprio
Tratado de Assunção, de 1991, não deixa de ser uma cooperação entre os países
do Cone Sul.
Há de estender as relações internacionais no sentido de
promover a cooperação cultural, sócio-econômica, tecnológica e científica, e o
intercâmbio educacional, entre outras diversas áreas, no seio da comunidade
latino-americana, pois possuem características mais próximas que os europeus
conosco. Entre os países da comunidade latina, não deve pairar o
artificialismo, a mera camaradagem existente na cooperação entre sul-americanos
e europeus, asiáticos ou anglo-saxãos, mas sim, um efetivo enraizamento
cooperativo entre as nações aqui presentes, que além de vizinhos, necessitam
viver numa fraternidade política, econômica, jurídica e social, harmonizando as
peculiaridades culturais inerente a cada um.
4.3) Pela Soberania.
Noutro pólo, temos que os referidos princípios são
tolhidos pelos princípios que resguardam a Soberania, que merecem brevíssimo
comentário. O princípio da independência nacional a bem da verdade
retrata, redundantemente, segundo Cretela Jr (5), a afirmativa da
soberania como fundamento da República, como previsto no artigo 1º da Lex
Legum, embora Tupinambá Miguel do Nascimento (1997:209s) entenda que não
houve repetição pois entende que o Constituinte deixou a aplicação de tal
princípio como se discricionário o fosse. Por mais merecedor de atenção que
seja as palavras do ilustre autor, indizível que o princípio in quaestio
é cópia fiel do artigo 1º, ou seja, apenas veio solidificar a soberania
nacional. Aliás, Celso Albuquerque Mello (2000:134) afirma que a expressão
‘independência nacional’ é uma expressão que não possui definição no campo do
direito a não ser que se entenda como sinônimo da palavra soberania no seu
aspecto externo".
Este princípio é o carro-andor dos demais princípios que
irão realizar uma defesa inquestionada e irracional da Soberania. A
conseqüência desta principiologia restritiva é a obstaculização da aceitação da
supranacionalidade, pejorativa para a formação de uma comunidade
latino-americana, assim, o Mercosul pode estar ameaçado pelas políticas
conservadoras e restritivas, reflexo desta principiologia. Tratados, acordos,
convenções,... acabam comprometidos com a adoção de princípios refletores da
Soberania, como, por exemplo, a própria Área de Livre Comércio das Américas,
sem discutirmos o mérito dos benefícios que a implantação da Alca traria aos
países latinos.
O princípio da autodeterminação dos povos também
está marcado pela Soberania. Trata-se da rejeição a todo e qualquer poder
colonizante, ou seja, o presente princípio visa dar a cada Estado o direito de
livre condição política, além da liberdade quanto ao desenvolvimento cultural,
econômico e social dos povos. Aparentemente não oferece nenhum óbice à formação
de uma comunidade internacional mas, em suas entrelinhas, podemos
constatar o isolacionismo que pode surgir através do fiel e dogmático
seguimento deste princípio, uma vez que o mesmo pode redundar num trancamento
não apenas de uma nação a outra, mas pior que isto, pode gerar vários
microestados dentre de um único Estado, como ocorreria facilmente na África e
em alguns países latinos, como a própria Colômbia.
O princípio da não-intervenção, embora esteja
associado à soberania, não apresenta um verdadeiro obstáculo aos anseios
comunitários, uma vez que almeja, a bem da verdade, a liberdade dos países
pelos demais, ou seja, um Estado não deve intervir nos assuntos de outro, o que
não ocorre na América Latina, máxime pelo imperialismo norte-americano. Este
princípio possui uma face oculta que é de que a não-intervenção está em sentido
lato, o que pode ocasionar um entrave para intercâmbios culturais, por exemplo,
ou apoio econômico, etc. Cremos que não haverá a existência de tais obstáculos
na prática, mas preferível que este princípio fosse excluído ou melhor redigido
pelo Constituinte, dado a abrangência que este suscita, pois não se resume
tão-somente ao colonialismo.
Os princípios do terrorismo e racismo e asilo
político, entendemos que ambos princípios não deveriam estar no rol
principiológico das relações internacionais brasileira, uma vez que tanto o
terrorismo, quanto o racismo e o asilo já estão pacificamente sedimentados na
ordem jurídica internacional, de forma que não há afetação à soberania de
nenhum país a sua adoção, por isto redundante a sua previsão no Texto
Constitucional, bem como, não obstaculizam a formação de uma comunidade
latino-americana pois ao se falar em prevalência dos direitos humanos e
cooperação para o desenvolvimento da humanidade já se está inserindo implícita
e explicitamente tais princípios, motivo de nossa escusa quanto a inserção
destes princípios como fomentadores ou não de uma comunidade internacional.
5) Adendo Final.
A doutrina do humanismo social que busca integrar o homem
ao Estado está sofrendo uma inversão pelo que até então se pode verificar, pois
entre o indivíduo e o poder político existem grupos naturais, tais quais a
família, que estão intrinsecamente relacionados ao conceito de comunidade,
no entanto, as transformações sócio-econômicas estão conduzindo esta comunidade,
essencialmente natural, a um artificialismo concentrado na sociedade
internacional. Ecoa, desta forma, as palavras de Rousseau6,
segundo o qual ''o homem nasce livre e em toda parte se acha aprisionado''.
Verificamos isto com a prisão que a sociedade impõe
através de sua codificação nacional e também internacional, por intermedio da
soberania, aos brasileiros e estrangeiros. Em épocas pretéritas, mas não muito
longínquas, o ser humano vivia verdadeiramente em família, sem os rebuscos da
famigerada –mas necessária hoje– globalização. Com o progresso da humanidade a comunidade
passou a se relacionar mais, surgindo a sociedade. E a globalização, e
tudo o que está subjacente a esta palavra, pacificaram a existência de uma sociedade
internacional.
Nesta mutação, o homem deixou de ser homem para ser
representado por papel. Sua existência não está mais no que "é", mas
no que "tem" ou no que pode "comprovar ser". Surgiram as
legislações e as codificações em cada Estado, regulando o que a comunidade
poderia fazer dentro da sociedade. A lei intrincou-se no cerne da
população de tal forma que a comunidade foi relegada a segundo plano. Em
seguida os Estados começaram a se relacionar entre si, assim, as ciências
jurídicas logo resolveram de criar tratados, convenções, princípios... que
regulassem a convivência e as diversas relações existentes entre as sociedade
formando uma autêntica sociedade internacional como está hoje, agrupada
em blocos econômicos (NAFTA, MERCOSUL, CEE), sobrepondo as relações comerciais
aos valores culturais na Nação, que transcende o conceito de povo, como já
dizia Emmanuel Joseph Sieyès7, em seu clássico Qu''est-ce que le
Tiers État?.
Percebe-se que o mundo está vivendo um caos justamente por
desprestigiar a sua natureza, seus conceitos primordiais, que estavam bem
alicerçados na arcaica comunidade. Desta forma, necessário a implantação
de uma comunidade internacional, que motive os valores ora relegados.
Neste sentido, a Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 4º, parágrafo
único, ensejou a formação de uma Comunidade Latino-Americana de Nações, para
isto arrolou princípios de relações internacionais que serviriam como norte para
a realização deste objetivo, visto ser a principiologia adequada para a relação
exterior, mas que, infelizmente, não encontrou êxito em seu escopo.
6) Conclusão.
É de se concluir que a principiologia arrolada no artigo
4º, da Constituição Federal brasileira, de 5 de outubro de 1988, opôs-se à
formação da ensejada Comunidade Latino-Americana de Nações, pois obstaculizou,
com a axiologia exacerbada da Soberania, a viabilização dos princípios que
realmente promoveriam os anseios do referido parágrafo único do Texto
Constitucional.
A formação de uma comunidade internacional exige
que os Estados cedam um pouco de sua Soberania, permitindo a interação de
valores ético, morais e culturais, dentre outros humanísticos, se insiram no
seio dos povos latinos, fomentando a junção dos povos numa única comunidade.
As diferenças culturais não são obstáculo, mas fatores de encontro, pois é
nestas peculiaridades de cada Estado que se forma uma sociedade comunitária,
que, motivados pelo laço existente desta relação harmoniosa, conseguirá, com
maior afinco, o desenvolvimento de outros setores como, inclusive, o econômico
e o político, sem contar as áreas de ciência e tecnologia que já seriam
beneficiadas, até mesmo independente de cooperação política.
O Mercosul é um instrumento firmado que poderia ser
readequado aos anseios da comunidade por ele abrangida, e não
tão-somente à discussões econômicas. Talvez se desde sua formação tivéssemos
considerado os ideais do parágrafo únicos do art. 4º supra, nosso irmãos
argentinos e a própria República Federativa do Brasil não estivesse passando
por tanto caos financeiro e apertos sociais.
A solução para o panorama até então exposto é uma
incógnita, no entanto, no intuito de apenas contribuir, entendemos que a
priorização dos princípios da prevalência dos direitos humanos e da cooperação
entre os povos para o progresso da humanidade, bem como os similares existentes
nos países-irmãos, produziriam uma reviravolta positiva no cenário
internacional para os países do Cone Sul. Não se trata de um abandono da
Soberania nacional, mas da busca de um objetivo maior do que apenas assegurar o
que não precisa ser assegurado. O ser humano não pode ser aprisionado por
"papéis", pois ele próprio já se aprisiona consideravelmente. Os
Estados deveriam promover a integração cultural, a troca de intercâmbios
tecnológicos e científicos, através de maciço incentivo às universidades
nacionais e estrangeiras, bem como solidificando as estruturas educacionais
básicas, com a utilização de línguas latinas. Note-se que os princípios acima
mencionados conduzem justamente à materialização de tais objetivos.
Por derradeiro, diante da indagação de Celestino Arenal em
nossa introdução, somos obrigados a afirmar que, infelizmente, não estamos
envolvidos no processo de evolução rumo a uma comunidade internacional, pois
não conseguimos superar o egocentrismo social, político, econômico e jurídico
existente em nossas sociedades, que se esqueceram de que o homem não é
um animal para ser domado, persistindo na realização de um aprisionamento deste
pela obstaculização de sua vontade no território nacional, e pelo impedimento
dos brasileiros na interação com outros povos, através dos óbices promovidos
pela principiologia das relações internacionais pátria que buscou priorizar a
Soberania, trancando o acesso à supranacionalidade.
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Notas
1 ARENAL Celestino. apud OLIVEIRA, Odete
M. Relações Internacionais: estudos de introdução. Curitiba: Juruá,
2001. p. 137.
2 TÖNNIES, (Gemeinschaft und Gesellschaft).
apud GUSMÃO, Paulo D., Manual de Sociologia, 3. ed., Rio de
Janeiro: Forense, 1970, p. 78.
3 Id. ibid., p. 170.
4 WATSON, Adam. apud OLIVEIRA, Odete M. Relações
Internacionais: estudos de introdução. Curitiba: Juruá, 2001. p. 138.
5 CRETELA Jr., José. Comentários à
Constituição de 1988. 1. v., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990,
p. 170.
6 ROUSSEAU, Jean Jacques. In
Do Contrato Social. Hemus, 1997.
7 SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte
Burguesa, trad. Norma Azeredo, 3. ed., Lumem Juris, 1997.
* Advogado em Londrina (PR), especialista em Direito
do Estado, mestrando em Direito Negocial pela UEL.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6211>. Acesso em: 18 jul. 2006.