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Os efeitos da Área de Livre Comércio das Américas sobre os
processos de integração, economia e sociedade na América Latina
Daniel Lopes
Cerqueira
bacharel em Direito pela UFMG, bacharel em
Relações Internacionais pela PUC Minas
"Desejo, mais que qualquer
outra pessoa, ver formar na América a maior nação do mundo, menos por sua
extensão e riquezas que por sua liberdade e glórias (...) Não somos mais
índios, africanos ou europeus, e sim um novo gênero humano, próprio,
característico, inovador ética e culturalmente, a caminho de outras novas
sínteses políticas e sociais."
Simón Bolívar
Introdução
Ensaios
para a integração política na América Latina são conhecidos desde o início do
século XIX, quando do enterro do ideal bolivariano de uma América espanhola
unida. A particularização de interesses e a consolidação de elites locais são
alguns dos elementos que dificultaram todas as tentativas posteriores. A partir
da segunda metade do século XX, esboçam-se tratativas para a criação de um
bloco regional, desta vez, assentado sobre bases comerciais. O contexto de
liberalização da economia mundial no último quartel do século XX remodelou os
arranjos experimentados até então, pressionando os países para a abertura de
seus mercados e a inserção no comércio internacional. Alheios aos movimentos
pendulares de integração no hemisfério ocidental, os Estados Unidos, com
interesse no fortalecimento de sua posição regional, começam a patrocinar a
construção de uma área de livre comércio que englobasse desde o Alasca até a
Terra do Fogo.
Este
novo impulso para o regionalismo não decorre dos antigos ideais almejados pelas
repúblicas latino-americanas e seus libertadores – San Martín, Simón Bolívar,
Francisco Miranda, Antônio José Sucre, Bernardo O’Higgins, entre outros. Da
mesma maneira, não encontra ressonância na proposta comunitária que sempre
revestiu os projetos de integração no continente. Trata-se da criação de um
mercado regional integrado, sem a presença de barreiras físicas e imateriais
entre os países para o fluxo de bens, capitais e serviços. O objetivo deste
artigo é esmiuçar os possíveis efeitos da implementação da Área de Livre
Comércio das Américas sobre a economia, sociedade e o processo histórico de
integração na América Latina.
Num
primeiro momento, é feita a contextualização de tais processos com foco nos
elementos contingenciadores da integração vigentes na ordem internacional
bipolar contrastados com o cenário favorável ao integracionismo no pós-Guerra
Fria. Os pilares da integração hemisférica, outrora dosados de uma identidade
política e cultural, são situados em uma conjuntura mais ampla, qual seja as
reformas econômicas estruturais difundidas nos anos oitenta e noventa. A partir
deste recorte, são vislumbrados os dilemas para a sociedade latino-americana
advindos da agenda neoliberal.
Na
terceira seção, frisamos a necessidade de revisão crítica dos modelos macro e
micro-econômicos implementados na América Latina nas duas últimas décadas, vis-à-vis
os princípios que norteiam o projeto da ALCA. A título de conclusão, faz-se um
apanhado geral da mudança de posição dos Estados Unidos em relação ao
regionalismo hemisférico, a partir da metade dos anos noventa, com a inflexão
das negociações no âmbito multilateral. Desta maneira, vicejamos a
possibilidade de constituição de um bloco coeso de países em desenvolvimento
nas negociações da ALCA capazes de reivindicar uma agenda mais conducente aos
seus interesses.
1. Origens históricas do integracionismo
no continente americano
As
origens do integracionismo americano podem ser creditadas ao Congresso do
Panamá de 22 de junho de 1826, no qual delegados de países centro e
sul-americanos discutiram a criação de uma confederação entre os Estados
recém-independentes da Espanha. Marcado pela liderança de Simón Bolívar, o
Congresso reuniria, a princípio, apenas governos latino-americanos, refletindo
um ideário com raízes muito mais históricas e identitárias que comerciais. Em
fins de 1825, no entanto, os EUA foram convidados por sua ligação geográfica e
econômica ao resto das Américas e, pelos laços de união comercial e financeira,
convidou-se também, com status de observadores, a Grã-Bretanha e a
Holanda. [01]
Manifestado
o interesse sobre a independência do restante da América em 1823 pelo
então presidente James Monroe, os Estados Unidos apresentaram posições
divergentes e muitas vezes conflitantes durante a maior parte do século XIX.
Esta dicotomia manifestava a disputa de interesses entre os grupos políticos e
econômicos internos em relação ao pan-americanismo. Os Estados sulistas,
temendo o aumento da competição na comercialização de seus principais produtos
(cereais, açúcar, gado, tabaco e algodão) se opunham ao discurso
pan-americanista e ao envio de representantes a congressos de tal gênero. Já os
Estados industrializados do nordeste enxergavam na América Latina um importante
mercado para escoar sua promissora produção manufatureira. Para os
representantes destes últimos Estados no Senado estadunidense, os referidos
congressos seriam um foro diplomático fundamental no qual poder-se-ia expandir
a influência econômica ao longo do continente em substituição às potências
européias.
O
Congresso do Panamá de 1826, apesar de realizado com a presença de poucas
delegações (México, América Central e Grande Colômbia), sendo a ausência mais
destacada a dos EUA, e de o modesto "Tratado de União, Liga e Confederação
Perpétua" resultante do encontro não ter sido sequer ratificado por todos
os países signatários [02], teve grande importância ao simbolizar um
embrionário pan-americanismo. Outrossim, serviu para distinguir, desde o início
do século XIX, dois enfoques em torno das negociações para a integração
americana. Os grupos norte-americanos favoráveis à integração buscavam
instituir no novo continente uma união aduaneira nos moldes do bem sucedido Zollverein
alemão, ao passo que outras nações latino-americanas buscavam acrescentar
às negociações um conteúdo político, visando a uma integração mais ampla.
Ao
longo do século XIX, especialmente entre o período de 1831 e 1864, uma série de
convenções foram assinadas por nações americanas versando sobre navegação,
comunicação postal, alianças defensivas, paz e comércio. Em tais acordos, a
participação dos EUA foi praticamente nula, devido, sobretudo, a divisão
interna entre norte e sul no que tange ao direcionamento da política externa
para América Latina. A posição favorável à integração consolidou-se somente
após a vitória da União sobre os Confederados na Guerra de Secessão (1861-65),
ao representar o triunfo do industrialismo do norte sobre o agrarismo sulista.
Lograda
rapidamente e com impressionante sucesso a reconstrução estadunidense após anos
de guerra civil, o vigoroso capitalismo norte-americano não mais cabia em suas
próprias fronteiras, o que impunha a expansão comercial para novos mercados. É
nesta conjuntura que a retórica pan-americanista de integração ganha novos
contornos, desta vez incentivada e liderada pelos próprios Estados Unidos. Nas
palavras de Bueno:
"O
período que vai de 1870 a 1893 é denominado ‘idade áurea da América’. A
jovem nação, já com a maior economia do planeta, reivindicou sua integração no
rol das grandes potências e procurou formar sua esfera de influência. O
comércio e a grande finança passaram a informar sua política externa. A América
Latina passou a ser vista pelos norte-americanos como uma área naturalmente
destinada à expansão econômica do seu país, tanto por razões geográficas quanto
históricas, pois americanos latinos e americanos anglo-saxões tinham em comum o
passado colonial." [03]
Convocada
pelos EUA uma primeira conferência na cidade de Washington entre os anos de
1889 e 1890, outras seriam organizadas com o mesmo objetivo: ampliar o
intercâmbio comercial entre os países americanos. Já na conferência de 1889
criou-se a União Internacional das Repúblicas Americanas, destinada a compilar
dados sobre o comércio hemisférico. Tal órgão seria o carro chefe das futuras
conferências. Dentro de sua estrutura organizacional, destacava-se o Bureau
Comercial das Repúblicas Americanas, responsável pela publicação de boletins
com dados estatísticos, tarifas e regulamentos aduaneiros entre as nações
representadas.
A
institucionalização das conferências pan-americanas prenunciava a constituição
de outro importante organismo, o Escritório Comercial das Repúblicas
Americanas. Sua internacionalização propiciou o ingresso de distintas
representações diplomáticas, abrindo espaço para a criação de uma organização
internacional hemisférica mais ampla, matriz principiológica e regrativa dos
futuros processos de integração no novo continente. Em 1948, na cidade de
Bogotá, de uma das conferências é firmado o Tratado Constitutivo da
Organização dos Estados Americanos (OEA). "A Carta de Bogotá estabelece
os propósitos essenciais para o cumprimento das obrigações regionais elaboradas
desde o início do século XIX; eis, portanto, a matriz regular para todos os
processos de integração nas Américas." [04]
Impulsionada
pelos EUA, a criação de uma organização política composta por todos os países
americanos parecia ser o primeiro passo para a continuidade das negociações
rumo a uma ampla integração econômica. Entretanto, a dinâmica da Guerra Fria
situou os interesses americanos além do novo continente, adiando em décadas tal
projeto. De 1948 até o início da década de noventa, apenas projetos regionais
fizeram-se presentes, sendo que em nenhum deles se deu a participação direta
dos EUA.
A
primeira onda efetiva de constituição de blocos econômicos na América Latina
ocorreu no início da década de sessenta, com a criação da ALALC - Associação
Latino-Americana de Livre Comércio (dando origem em 1980 à ALADI - Associação
Latino Americana de Integração) e do MCCA - Mercado Comum Centro Americano. No
final da década de sessenta surge, dentro da estrutura da ALALC, a Comunidade
Andina de Nações e a Comunidade do Caribe. É, contudo, no início da década de
noventa, que a temática do regionalismo ganha maior relevo na política externa
não só dos países latino-americanos, mas dos próprios Estados Unidos. Na
primeira Cúpula das Américas em 1994, o então presidente Bill Clinton propõe a
criação de uma Área de Livre Comércio abrangendo todo o continente. A retomada
das negociações e o surgimento de novos blocos regionais nas Américas e em
outros continentes no período posterior à Guerra Fria não é, obviamente, casual
e merecem uma explanação mais detalhada. [05]
2. Os Blocos de integração regional :
diferentes realidades em duas ordens globais
Os
argumentos utilizados por estudiosos de Relações Internacionais para explicar o
surgimento dos blocos de integração regional perpassam, normalmente, elementos
como a interdependência, grau mínimo de simetria macro-econômica,
compartilhamento de valores e instituições, cálculo de interesses e uma série
de variáveis endógenas aos Estados negociantes. [06] A nosso ver,
tais elementos tomados isoladamente não permitem a elucidação do fenômeno em
toda sua complexidade, sendo mister levar em conta circunstâncias conjunturais
características do sistema internacional. Nesta direção, vale destacar que
iniciativas de integração já se faziam presentes em diferentes regiões do globo
desde as décadas de cinqüenta e sessenta, sendo, entretanto, o pós-Guerra Fria,
a belle époque do integracionismo em praticamente todos os continentes.
A
natureza da ordem internacional bipolar ofuscava as temáticas ditas como low
politic, dentre as quais a cooperação econômica era enquadrada. Questões
envolvendo a integridade e segurança dos Estados, então qualificadas como high
politic, estavam no centro das preocupações das duas potências hegemônicas
- EUA e URSS - e da própria agenda internacional no seio das Nações Unidas,
seus órgãos e comissões. Os tratados de cooperação econômica seguiram a lógica
do conflito leste-oeste, tendo logrado êxito somente os blocos cuja
constituição fosse conducente ou não-conflitante com os interesses geopolíticos
das duas potências dentro de seu âmbito geográfico de influência. Pode-se
afirmar, v.g., que os avanços das negociações no bloco europeu
deveram-se, em grande parte, ao apoio norte-americano, uma vez que a
reconstrução européia e a constituição de um mercado comum segundo os ditames
da economia de mercado afastariam a influência soviética à esquerda da cortina
de ferro.
Situação
inversa se deu na América Latina, onde a participação dos Estados Unidos foi
muito mais impeditiva do que impulsionadora de uma integração efetiva. A única
organização regional no novo continente que de fato recebeu apoio
norte-americano foi o Mercado Comum Centro Americano (MCCA), em função da
proximidade dos países integrantes à influência de Cuba. Na lição de Andrés
Malamud:
"Não
havia apenas razões econômicas na origem do acordo (Tratado de Manágua), mas
também causas políticas. Dentre elas, a ameaça representada pela revolução
cubana foi altamente significante e isso parcialmente explica o maior apoio que
a nova região recebeu dos EUA em detrimento da ALALC." [07]
Até
a década de noventa é impreciso afirmar categoricamente que o sucesso ou o
fracasso das diversas iniciativas integracionistas se deveu à falta de vontade
ou empenho político-diplomático. Da mesma maneira, as razões para as
fracassadas experiências de integração na América Latina se situam além das
variáveis endógenas aos Estados. As diferenças econômicas, políticas e sociais,
além de eventuais desavenças históricas deveras constituíram e constituem um
empecilho para a integração. Contudo, não se deve olvidar que as diferenças
entre os países europeus culminaram, somente no século XX, em duas guerras
mundiais e, ainda assim, a União Européia é a mais bem sucedida experiência de
integração regional.Chamamos atenção, desta maneira, para o fato de que a
conjuntura histórica do período pré-1991 é, em parte, elucidativa do fracasso de
inúmeras tentativas de integração.
Na
agenda internacional pós-Guerra Fria, ainda que se possa identificar
determinados temas de natureza eminentemente estatocêntrica, errônea é a sua
elevação a um nível hierárquico superior aos demais, sendo anacrônica a
distinção entre high e low politics. A emergência de uma
variedade de temas até então pouco considerados como meio-ambiente, terrorismo,
tráfico de drogas, crises correntes, AIDS e direitos humanos põe em xeque a
validade da velha hierarquia de assuntos em que prevaleciam as questões de
segurança. Neste sentido, o sistema internacional não mais poderia ser
definido, dentro da máxima do realismo clássico, como "um conjunto
constituído de unidades políticas que mantêm relações regulares entre si e que
são passíveis de entrar em uma guerra generalizada." [08]
Na
esfera econômica, a transnacionalização da economia, perceptível, sobretudo, a
partir da década de sessenta, caracterizar-se-ia por três elementos
fundamentais: i) proliferação das empresas transnacionais e da produção
flexível, ii) reconfiguração da divisão internacional do trabalho, com o
aumento da exportação de bens manufaturados pelos chamados New
Industrialized Countries - NIC’s e iii) aumento do financiamento off
shore cujo controle dos Bancos Centrais torna-se praticamente inexistente.
[09] De forma progressiva, os Estados nacionais contracenam com outros
atores públicos e privados em âmbitos diversos das relações internacionais.
O
Estado agora divide o palco central com outras entidades, organizações
internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional,
organizações não-governamentais como o Greenpeace e a Anistia Internacional, e
corporações multinacionais, ou talvez, não haja mais um palco central afinal,
mas apenas uma multiplicidade de locais, alguns reais outros virtuais, onde as
transações globais são governadas. (Krasner,
2001: 03 – tradução livre). [10]
Com
a transnacionalização da economia, os territórios e fronteiras dos Estados não
mais seriam o esquema operatório por excelência das atividades econômicas, mas,
antes, fatores complicadores à livre circulação de capitais, bens e serviços.
[11]
A
globalização e a interdependência entre os atores viriam a enfraquecer o modelo
de gerenciamento macroeconômico e as políticas desenvolvimentistas autônomas
por parte dos governos nacionais, os quais se voltam, cada vez mais, às
exigências do mercado internacional em detrimento das necessidades locais. A
partir desta lógica, o modelo neoliberal ganha respaldo nas práticas
governamentais, revolucionando as políticas econômicas de inúmeros países.
Assim explica Rosenau:
"O
rápido crescimento e maturação do mundo multicêntrico pode em boa parte ser
traçado pelo extraordinário dinamismo e expansão da economia global. Desta
maneira, constata-se o enfraquecimento do Estado, o qual não é mais o
gerenciador da economia nacional e tem se tornado, ao contrário, um instrumento
de ajuste da economia nacional para as exigências da economia global."
(tradução livre) [12]- [13]
O
saldo final desta discussão está na identificação de uma realidade
contemporânea distinta à vigente durante a Guerra Fria, em que se diminui os
impedimentos de ordem geopolítica para os movimentos de integração regional.
Apesar dos avanços no livre comércio com os acordos de Bretton Woods e a
criação do GATT em 1947, raras foram as experiências perenes de integração
regional neste período. A própria extensão do sistema multilateral de comércio
se limitava aos países desenvolvidos do bloco ocidental. Nas palavras de Eric
Hobsbawm, o período de maior crescimento econômico do século XX (1945-1973) foi
marcado pelo livre comércio, liberdade de movimento de capitais e moedas tal
qual os planejadores de Bretton Woods haviam vicejado. Entretanto, acrescenta o
historiador que a conjuntura de prosperidade para o capitalismo tinha como
causa a direção da economia por parte dos Estados Unidos e a estabilidade do
padrão dólar-ouro. [14]
Se
no plano geopolítico a década de noventa é de calmaria para a inclusão dos
antigos países socialistas no sistema multilateral do comércio, no plano
econômico, a necessidade de inserção competitiva em um mercado cada vez mais
globalizado confere um novo impulso ao fenômeno da integração. Irmã gêmea do
processo de globalização, a formação dos blocos econômicos regionais se mostra
uma ferramenta estratégica tanto para a inserção competitiva no mercado global
quanto para o aumento do poder de barganha nas negociações com os demais
atores.
3. Reforma do Estado e neoliberalismo no
mundo e na América Latina
Os
efeitos das mudanças na natureza do sistema internacional fizeram-se sentir não
só na relação dos Estados entre si, mas, também, nas relações entre governo e
sociedade civil no âmbito interno de cada nação. No período a que Eric Hobsbawm
denomina de "Anos Dourados" do capitalismo (1945-73), quatro
máximas pareciam ter-se consolidado entre os tomadores de decisão e dirigentes
dos Estados: i) a catástrofe econômica da década de 30 deveu-se em grande parte
ao colapso do sistema de comércio e finanças globais e à fragmentação do mundo
em economias autárquicas, ii) a hegemonia inglesa estabilizava o comércio
mundial mediante a centralidade de sua economia e moeda, iii) a grande
depressão havia sido favorecida pelo fracasso do livre mercado irrestrito,
sendo necessário um maior planejamento econômico e iv) por motivos sociais e
políticos, não se devia permitir o retorno do desemprego em massa. [15]
Percebe-se
que os Anos Dourados foram, na verdade, um período onde as propostas
liberais vigentes do século XIX até o primeiro quartel do século XX cederam
lugar ao gerenciamento econômico por uma Administração Pública cada vez mais
comprometida com o pleno emprego e o bem estar social. A grandeza deste período
parecia inabalável à medida que os ciclos de prosperidade e depressão, fatais
no entre-guerras, tornavam-se uma sucessão de brandas flutuações graças à
administração macroeconômica. Até a década de oitenta, o único país ocidental a
abandonar de forma radical o modelo de Welfare State foi o Chile em
1973, com o canhestro regime imposto por Pinochet de ditadura política
combinada com ultraliberalismo econômico. Nem mesmo os governos conservadores
recém chegados ao poder nos EUA e Europa na década de cinqüenta (Harold
Macmillan na Inglaterra, Charles De Gaulle na França e Dwight Eisenhower nos
EUA) pareciam dispostos a modificar as práticas keynesianas que vinham surtindo
ótimos resultados.
Tal
como já destacado, o rápido crescimento da economia global neste período
deveu-se não só ao novo paradigma de planejamento econômico estatal, mas,
outrossim, ao papel de direcionador da economia mundial por parte dos Estados
Unidos e à estabilidade do padrão dólar-ouro para o comércio internacional. O
primeiro choque para os anos dourados, portanto, foi o fim do referido padrão
em 1971, ocasião em que o então presidente Richard Nixon anunciava o fim do
compromisso de conversão de dólar em ouro pelo tesouro americano. A partir
desta data a fixação da taxa de câmbio de todas as moedas seria dada pela
dinâmica da oferta e procura nos mercados de câmbio cada vez mais fora de
controle dos Bancos Centrais. Em outras palavras, o que antes era estável
tornou-se flexível e de difícil controle pelos Estados.
Um
segundo choque - as crises do petróleo de 1974 e 1979 - prenunciaria o fim de
uma era de crescimento econômico acompanhado de prosperidade social. A economia
mundial de fato continuava crescendo, mas num ritmo muito aquém da Era de
Ouro, salvo nos New Industrialized Countries – NIC’s (sobretudo os
tigres asiáticos, China e Japão). O fluxo de bens e capitais aumentava mesmo
nas duas décadas de recessão (70 e 80). Fato é que, não obstante o crescimento
econômico ter sofrido apenas uma redução no seu ritmo se comparado às décadas
anteriores, a garantia do bem estar social estava cada vez mais comprometida
não só pelos déficits públicos insustentáveis, mas pela nova dinâmica da
economia mundial. Os governos reduziram a capacidade de gerenciamento da
economia nacional e a expansão do comércio e finanças globais ultrapassam o
controle dos Estados e das próprias instituições internacionais.
Diante
desta nova realidade, duas vedetes do conservadorismo político americano e
britânico - Ronald Reagan e Margareth Thatcher - implementam pela primeira vez
reformas de cunho neoliberal nos moldes das teses dos prosélitos da Escola de
Chicago. Como experiência isolada em duas das maiores potências
capitalistas nos anos oitenta, a ortodoxia neoliberal parecia tornar-se a única
alternativa restante após a queda do bloco socialista, a crise do welfare
state e, para os radicais do porte de Francis Fukuyama, o "fim das
ideologias".
O
que se convencionou denominar neoliberalismo envolve, na verdade, três
dimensões inter-relacionadas. No plano da Ciência Econômica, possui relação com
o resgate de postulados neoclássicos em substituição ao pensamento keynesiano
dominante da década de trinta até o início dos anos setenta. Trata-se, na
verdade, de uma corrente teórica com variantes que compartilham determinadas
características como i) a interação entre micro e macroeconomia, ii) visão
monetarista alternativa ao keynesianismo e iii) apelo a modelos econométricos
baseados em "regras de equilíbrio" previsíveis. [16] No
plano das políticas públicas propriamente ditas, envolve medidas como a
desregulamentação da economia, privatização das empresas públicas,
liberalização dos mercados, redução do déficit público, rígido controle
inflacionário e fiscal, corte de despesas sociais, entre outras.
Uma
última, mas não menos importante dimensão do neoliberalismo diz respeito ao
movimento ideológico por parte de acadêmicos, institutos de pesquisa e
agremiações de empresários e políticos, de resgate e difusão dos valores
liberais tão pujantes no século XIX e abandonados após a crise dos anos 30.
Apesar da guinada tanto na academia quanto no seio das instituições públicas para
o intervencionismo estatal desde a crise de 1929 e, principalmente após 1945, a
ideologia liberal não bateu em retirada, mas estava tão somente entrincheirada
em importantes universidades e centros de produção intelectual. A título de
ilustração, o livro The road of serfdom de Friedrich von Hayek,
verdadeiro evangelho do neoliberalismo, apesar de ter surtido algum impacto ao
ser publicado em 1944, tinha pela frente um ambiente hostil à retomada do
liberalismo, sendo aclamado apenas trinta anos mais tarde em uma conjuntura em
que o keynesianismo já se encontrava desgastado. [17]
Numa
terminologia gramsciana, o discurso neoliberal configura-se hegemônico no
sistema internacional pós-Guerra Fria, apresentado como a única alternativa
para os atuais problemas da humanidade. Na lição de Perry Anderson:
"Política
e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual
seus fundadores provavelmente jamais sonharam, disseminando a simples idéia de
que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou
negando, têm de adaptar-se a suas normas. Provavelmente nenhuma sabedoria
convencional conseguiu um predomínio tão abrangente desde o início do século
como o neoliberalismo hoje. Este fenômeno chama-se hegemonia, ainda que,
naturalmente, milhões de pessoas não acreditem em suas receitas e resistam a
seus regimes." [18]
Para
os países latino-americanos, a combinação do altíssimo grau de endividamento
com a necessidade de recebimento de investimento estrangeiro (IED’s e
investimento em portfólio) os tornaram reféns dos programas de ajustes
estruturais do Fundo Monetário Internacional e, por extensão, da difusão de
políticas econômicas ortodoxas. Escassos em capital, tais países passaram a
depender do financiamento externo face à redução da capacidade dos Estados em
continuarem atuando como força motriz do crescimento. Durante a década de
noventa, a maior parte de seus governos (e dos países em desenvolvimento de
maneira geral) tornaram-se condescendentes com a implementação dos postulados
neoliberais tendo em vista a necessidade de atração de empresas estrangeiras,
muitas vezes seletivas quanto às políticas econômicas adotadas.
Para
os latino-americanos e todos aqueles que buscaram desenvolver-se através da
emissão irresponsável de papel-moeda e títulos de dívida pública, o resultado
foi que na década de oitenta suas dívidas eram impagáveis e duas eram as alternativas:
moratória (como fez o México em 1982 e o Brasil em 1987) ou empréstimos junto
ao FMI, com as suas costumeiras imposições. Não fosse o fim da estabilidade da
economia mundial em meados da década de 70, o FMI continuaria a ser uma
alternativa para poucos, pois era mais viável arrolar as dívidas externas
diretamente com os bancos internacionais, os quais, não costumam exigir
cumprimento de metas de superávit primário, aumento da taxa de juros, cortes
com gastos públicos, entre outras medidas. A partir da década de oitenta, no
entanto, o FMI tornou-se uma espécie de morfina para inúmeros países em estado
econômico terminal, pois, ao se submeterem às imposições do Fundo, não
conseguiram reduzir sua vulnerabilidade aos movimentos de capitais internacionais
e, ademais, praticamente perderam a autonomia decisória sobre política
econômica.
As
reformas macroeconômicas, traduzidas na abertura comercial e desregulamentação
da economia, realizadas em graus variados em praticamente todos os países da América
Latina, implicaram novos modelos de especialização produtiva e de inserção nos
fluxos internacionais de comércio. Em outras palavras, a nova macroeconomia
acarretou uma nova geografia microeconômica, onde os setores da economia, antes
impulsionados pelo Estado interventor, estariam lançados à sorte da competição
com poderosas corporações locais e/ou estrangeiras. Na lição de Jorge Katz, as
décadas de oitenta e noventa entoaram dois grandes modelos de especialização
produtiva na América Latina. Os países da América do Sul, de maneira geral,
diversificaram sua base de produção-exportação em recursos naturais e commodities.
[19] Em tais países, ganhou participação relativa os ramos produtores de
bens e serviços não comercializáveis com o exterior, as indústrias
processadoras de recursos naturais e outros setores industriais que gozassem de
um tratamento preferencial por parte dos respectivos governos (no caso
brasileiro, v.g., pode-se citar os setores petroquímico, metalúrgico e
siderúrgico).
O
México e várias economias menores da América Central, por sua vez, imergiram
em um modelo intensivo em indústrias maquiladoras, originárias da
imigração de plantas de empresas, a princípio norte-americanas e,
posteriormente, japonesas e sul-coreanas. [20] Trata-se, na verdade,
de indústrias cuja produção é voltada quase que integralmente para a
exportação, na maior parte para o mercado estadunidense, e que se instalam no
México e alguns países da América Central em função da baixa remuneração da mão
de obra e incentivos concedidos pelos Estados receptores.
Fato
é que as reformas econômicas de cunho liberalizante posta em prática em graus
diversos em toda a América Latina não surtiram os efeitos esperados de
transição para o capitalismo moderno. Ainda que as reformas tenham representado
o abandono de políticas demasiado permissivas para com a ineficiência
produtiva, o controle fiscal e monetário, entre outras, certo é que diante de
mais de duas décadas de descaso em relação às necessidades da população, "faz-se
necessário substituir a visão que orientou as reformas econômicas e que se
resumem no conceito de "mais mercado e menos Estado", por uma visão
que denote "mercados que funcionem bem e governos de melhor qualidade".
[21] Este dilema não se limita às reformas implementadas no âmbito
doméstico dos países americanos, estendendo-se, da mesma forma, no âmbito
multilateral de negociação da Área de Livre Comércio das Américas.
4. Área de Livre Comércio das Américas:
desenvolvimento econômico ou a "bananização" definitiva da América
Latina?
A
retomada do tema da integração regional na América Latina se dá em um momento
de revisão do papel e da direção do Estado em relação ao mercado doméstico e
internacional. A primeira onda regionalista da década de sessenta esteve
marcada pela orientação cepalina de desenvolvimento através da industrialização
pela substituição de importações. Tal feito seria complementado à medida que os
mercados dos países vizinhos fornecessem mercadorias em substituição a
terceiros países, formando, assim, uma rede de desenvolvimento regional. Por
motivos que não cabem aqui serem explanados, as medidas então propostas pela
CEPAL não surtiram os efeitos almejados, tendo a própria comissão modificado
nos anos oitenta sua tradicional orientação desenvolvimentista pelo chamado regionalismo
aberto, arraigado numa política de integração voltada para a abertura
comercial.
Esta
nova orientação guarda consonância com o ambiente de emergência de uma nova
agenda econômica e política e significou uma extensão das propostas que vinham
sendo implementadas no plano interno dos países latino-americanos para o âmbito
internacional, especificamente para o processo de integração. Nesta grandeza,
os setores vulneráveis da sociedade civil seriam vítimas do desdém de seus
governos não só nas políticas públicas domésticas, mas, outrossim, nos projetos
de integração tal qual vinham sendo negociados. Enfatizamos neste ponto a
necessidade de uma visão crítica e, antes de tudo, instrumental da integração
econômica, para nós entendida menos como um fim em si mesma e mais como um meio
para se atingir objetivos outros como a promoção do desenvolvimento econômico
e, principalmente, o controle sobre a natureza e extensão deste desenvolvimento,
pois na direção de Salvador Arriola, "sem dúvida, o eterno desafio da
cooperação internacional para o desenvolvimento é o de resolver o problema das
assimetrias entre os países que apresentam diferentes níveis de
desenvolvimento, seja por meio de negociações unilaterais ou
multilaterais." [22]
É
sugestivo, dentro deste raciocínio, verificarmos a omissão do tratado da Área
de Livre Comércio das Américas em relação à temática do desenvolvimento e
redução de assimetrias regionais. Capítulos inteiros da Terceira Minuta são
dedicados a questões decerto importantes como serviços, propriedade
intelectual, compras governamentais, entre outros. Não obstante, inexiste um
capítulo específico ou mesmo um conjunto de artigos que tratem a fundo a
questão do desenvolvimento. Em um continente marcado pela gigantesca assimetria
econômica não só entre os países como intrapaíses, tal omissão é, ab initio,
excludente dos benefícios da ampliação do livre comércio a uma série de Estados
economicamente fracos e, ademais, aos atores sociais com menor poder de
barganha dentro de cada Estado.O próprio acesso às negociações da ALCA é
excludente, no sentido de que o lobby de setores produtivos no processo
de negociação não encontra contrapartida em pequenas e médias empresas, as
quais são, potencialmente, as que mais sofreriam com a formação de um livre
mercado.
Para
os Estados Unidos, o aumento considerável do comércio exterior mexicano e o
acúmulo de sucessivos crescimentos do Produto Interno Bruto do vizinho do sul
são aclamados como mostra dos benefícios de uma área de livre comércio nos
moldes do NAFTA. Preferimos um argumento menos diplomático e mais realista:
"No
sistema formado pelo NAFTA, um país é competitivo na direta dimensão de sua
miséria. No México de hoje, 80% da população vive abaixo do nível da pobreza.
Os salários industriais caíram de US$ 127 em 1982 para US$ 74 em 1999. O país
virou um exportador de miséria, de vez que os elementos mais ativos da economia
são as remessas dos imigrantes, de cerca de US$ 6,3 bilhões em 1999, e as
maquiladoras. A emigração do México para os EUA aumentou de 278.229 entre 1991
e 1997, para 366.000 entre 1998 e 1999, resultado do modelo econômico perverso
que gera um déficit anual de 500 mil empregos." [23]
A
abertura do mercado e as diversas reformas econômicas de cunho liberal postas
em prática na maior parte dos países latino-americanos nos anos noventa, salvo
raras exceções como Chile e República Dominicana, não surtiram os efeitos
desejados, tendo os fluxos de investimentos crescido em países que trilharam
caminhos distintos. A comparação com os países do leste asiático é um exemplo
concreto de que a estabilidade de preços, a desregulamentação econômica, a
abertura comercial e a rígida responsabilidade fiscal não garantem, por si só,
o ingresso de investimentos estrangeiros e o crescimento econômico. [24]
Gráfico
nº 1. Participação no
comércio internacional: comparação entre América Latina e Ásia, 1980-2003 (%)
Fonte: UNCTAD 2004
*
Não inclui o Oriente Médio e o Japão
Gráfico
nº 2. Participação em
estoques mundiais de investimento estrangeiro direto: comparação entre América
Latina e Ásia, 1980-2003 (%)
Fonte:
UNCTAD 2004
*
Não inclui o Oriente Médio, o Japão e Hong Kong
Os
dois gráficos são auto-explicativos quanto aos efeitos das políticas econômicas
adotadas ao longo dos últimos vinte anos na América Latina. Os países asiáticos
apresentam hoje um invejável ritmo de crescimento porque, além de não terem
seguido à risca a ortodoxia liberal, souberam aproveitar-se das forças motoras
da globalização, penetrando nos mercados mundiais cada vez mais interconectados
e atraindo investimentos estrangeiros. Se em relação à participação no comércio
internacional é evidente o atraso da América Latina em relação ao leste
asiático, no que tange ao estoque de IED a posição das duas regiões é, à
primeira vista, equânime, uma vez que ambas as regiões possuem um estoque
global similar de acordo com o gráfico nº 2. Entretanto, os efeitos dos
investimentos nas duas regiões foram bastante distintos. A correlação entre
investimento estrangeiro direto e crescimento da renda per capita foi
muito mais fraco na América Latina, em função de fatores como: i) orientação
dos investimentos para o mercado (market seeking) ao invés da orientação
para a eficiência (asset seeking), a qual possui um maior efeito sobre o
crescimento, ii) concentração dos investimentos em indústrias intensivas em
capital e tecnologia em que os países possuíam baixa competitividade
internacional, iii) efeitos exíguos de spillover dos IED’s entre as
empresas locais em virtude da baixa quantidade de tecnologia transferida e iv)
redução dos investimentos internos paralelos aos investimentos estrangeiros
diretos. [25]
O
contraste em relação ao IED e a participação no comércio mundial se verifica
também nos índices de crescimentos das duas regiões ao longo das últimas três
décadas.
Gráfico
nº 3. Taxa de
crescimento médio do produto interno bruto: comparação entre América Latina e
Ásia, 1970-2003 (%)
Fonte: UNCTAD 2004
*
Compreende a variação entre 1990 e 2003
**
Não inclui o Oriente Médio e o Japão
Mediante
esta análise comparativa, conclui-se que a recessão das décadas de oitenta e
noventa, apesar de ter havido como causa fatores de ordem estrutural da
economia mundial, foi agravada nos países da América Latina e contornada pelos
países do leste asiático em função de distintas estratégias de desenvolvimento
adotadas.
O
objetivo deste artigo não é estigmatizar a globalização econômica ou o Consenso
de Washington pelas duas décadas perdidas na América Latina, mesmo porque os
países asiáticos também promoveram reformas que, apesar de que em menor grau e
rigidez, foram conducentes com a proposta liberal. O grande problema é que os
modelos de desenvolvimento incorporados pelas políticas públicas dos governos latino-americanos
não tomaram como partida as vicissitudes regionais. Deve-se perguntar, neste
sentido, qual a vantagem de se apostar em um modelo de integração que, em
última instância, incorpora os ditames que colaboraram para o aprofundamento da
crise econômica e social na América Latina?
A
nosso ver, mais importante do que se pensar em um modelo de integração, é
necessário pensar o que se pretende com a mesma. De que maneira ela pode
contribuir para diminuir a assimetria dentro dos países e entre os países?
Deve-se aqui lembrar que o governo norte-americano resiste em dar um tratamento
diferenciado e especial aos países de menor desenvolvimento relativo e não
apóia a criação de um fundo de convergência regional para atenuar as
assimetrias entre os países. "Esta posição tem sido mantida no
marco das negociações multilaterais da ALCA e também na negociação bilateral
dos Tratados de Livre Comércio". [26]
É
mister, portanto, reavaliar o projeto de integração que se pretende para as
Américas, sobretudo por iniciativa dos países mais vulneráveis (entenda-se,
todos, com a exceção dos EUA, o Canadá e talvez o México e o Chile, por já
possuírem um maior grau de abertura comercial aos produtos e serviços norte-americanos).
Extremamente importante é a inclusão da variável social nas discussões não só
no âmbito das negociações da ALCA, como no plano interno dos países por parte
da sociedade civil (empresas, universidades, sindicatos e grupos de interesses diversos)
e do próprio governo. A nosso ver, tal postura envolveria, necessariamente, um
modelo de integração que fosse além da competição mercadológica e do mero ganho
de produtividade por parte das firmas dos Estados envolvidos. Um mínimo de
interação público/privada é a chave para a promoção de um crescimento econômico
aliado ao desenvolvimento econômico. [27] Na mesma direção leciona
Stiglitz:
"(...)
começa-se a aceitar, contemporaneamente, que o melhor desempenho do aparato
produtivo que se esperava lograr a partir do jogo automático dos mercados só se
alcançaram em parte e vastos setores da sociedade foram excluídos do mesmo.
Começa-se também a escutar, tanto no meio acadêmico, quanto no âmbito político,
vozes que reclamam ir além do ‘Consenso de Washington’ e começar a explorar
novas idéias de construção de marcos regulatórios, políticas de desenvolvimento
produtivo e tecnológico, ações de fomento à economia e assegurar uma maior
equidade na distribuição dos benefícios da modernização do aparato produtivo.
Em tais direções, serão necessárias novas formas de ‘ingerência institucional’,
novos modelos de interação público/privado, etc." (tradução
livre) [28]- [29]
A
estratégia de muitos países na negociação tem sido conceder naquilo que possuem
menor produtividade desde que recebam concessões nos setores em que são mais
competitivos. Neste diapasão, a adoção de uma Área de Livre Comércio das
Américas em nada alteraria a nova geografia microeconômica da América Latina,
mas, certamente, acentuaria a concentração de produção de
bens-naturais/commodities ao sul e a migração de maquiladoras para
demais países além do México.
A
referida estratégia, corolário do dogma do benefício do livre comércio, é, na
verdade, reflexo das teorias de comércio internacional, baseadas em situações
ideais nem sempre capazes de incorporar variáveis importantes como a influência
do poder político e econômico dos Estados para o cumprimento ou descumprimento
das regras do jogo. Em uma situação ideal, a concentração produtiva nos setores
mais competitivos e nas atividades onde há abundância dos respectivos fatores
de produção (para Heckscher e Ohlin, capital e trabalho) dentro de cada Estado
traria ganhos relativos a todos os envolvidos. Talvez seja dentro desta mesma
lógica que Bahamas e demais países caribenhos se engajam com estoicismo no
desenvolvimento de suas economias, exportando bananas e importando bens
manufaturados dos Estados Unidos.
A
abrupta e descontrolada liberalização comercial em grande parte dos países ao
sul dos EUA na década de noventa tem contribuído para a concentração produtiva
em commodities e bens primários, concomitantemente ao ingresso cada vez maior
de produtos manufaturados importados ou produzidos por firmas estrangeiras
estabelecidas nestes países.
Enfim,
dependendo do formato do Tratado da Área de Livre Comércio das Américas e da
capacidade dos países mais vulneráveis de barganharem condições justas de
competitividade tanto de setores voltados para a exportação quanto de setores
importantes para a geração de renda e emprego, pode-se estar selando o caminho
definitivo em direção à "bananização" generalizada da América Latina.
Considerações Finais
Dentro
do enfoque adotado neste artigo, pode-se caracterizar a criação da ALCA como
uma estratégia por parte dos EUA para assegurar um maior acesso a um mercado em
disputa pelas demais potências econômicas surgidas no pós-Guerra Fria. Tal como
se percebe, a formação de uma Área de Livre Comércio das Américas rompe com o
histórico de integração regional na América Latina e Caribe em que, desde a
década de sessenta, os EUA não manifestaram qualquer interesse. Com providência
ensina Clodoaldo Bueno:
"Há
cem anos, os norte-americanos inspiraram-se no então relativamente recente e
bem sucedido Zollverein alemão para formular, em nome do Pan-Americanismo, a
ousada proposta de integração econômica, na qual não faltou, até, a sugestão de
moeda comum. A ALCA tem em comum o integracionismo da virada do século XIX para
o XX, o ambiente econômico mundial (triunfo das idéias liberais) e a busca do
reforço da hegemonia dos EUA sobre o hemisfério. Inspirada, como não poderia
deixar de ser, para atender aos interesses norte-americanos, a ALCA deve ser
examinada com cautela, como tudo, aliás, que se refere às relações externas do
país." [30]
A
nosso ver, a despeito de uma visão mais radical no sentido de atribuir à
criação da ALCA um reforço da hegemonia dos Estados Unidos sobre o novo
continente, trata-se, no mínimo, da retomada mais acentuada de objetivos
comerciais sobre o hemisfério diante da concorrência de demais países e blocos
regionais. Tal concorrência se dá, por um lado, no interior do continente,
através de acordos de livre comércio internos, como os acordos entre Mercosul e
Comunidade Andina, sem a participação norte-americana. E, por outro lado, de
fora do continente, sendo as negociações do Mercosul com a União Européia
representativas do perigo para os EUA em não consolidar uma integração regional
de abrangência hemisférica.
A
estratégia americana tem sido minar a posição autônoma de blocos sub-regionais
como o Mercosul, através de acordos bilaterais. A experiência dos países em
desenvolvimento nas negociações multilaterias, a partir da Rodada de Doha, ao
constituírem o chamado G-21, pode ser um modelo a ser seguido pelos países em
desenvolvimento no processo de negociação da ALCA. Os países que ainda não
firmaram tratados bilaterais de livre comércio com os EUA, ao que parece,
figuram contrários à manutenção dos temas estabelecidos no início do processo
de negociações em toda sua extensão. Na Conferência Ministerial de 2003 uma
solução para o impasse seria a adoção de dois níveis compromissos. Um núcleo
com um mínimo de compromissos em todas as áreas temáticas e aplicáveis a todos
os países (ALCA light) coexistiria com compromissos oriundos de acordos
bilaterais ou plurilaterais. Paralelamente, os EUA costuraram acordos de livre
comércio com Colômbia, Bolívia, Equador, Peru, Panamá e República Dominicana.
A
estratégia dos Estados Unidos parecia ser abranger a maior parte de países
americanos de maneira a "driblar" as negociações ministeriais, onde a
intransigência de blocos como o MERCOSUL limitavam a imposição de suas posições
no âmbito hemisférico diretamente. Tal estratégia, por sua vez, não garante o
acesso ao mercado dos países envolvidos da mesma maneira que uma eventual Área
de Livre Comércio das Américas, mesmo porque vários são os países que possuem
acordos bilaterais ao mesmo tempo com os EUA e com terceiros países ou blocos
regionais. [31]
As discussões sobre a liberalização do
comércio foram notadamente conduzidas para o plano multilateral, por influência
dos EUA, desde a criação do GATT em 1948. Contudo, a desconfiança em relação ao
regionalismo foi revisada a partir dos anos noventa. Este fenômeno, em certa
medida, pode ser explicado pela redução da capacidade dos Estados Unidos em
ditarem as regras do regime multilateral do comércio. A primeira reunião das
Américas em 1994 na cidade de Miami é o ponto de partida do projeto
norte-americano no pós-Guerra Fria para a América Latina e Caribe. O
regionalismo passou a ser uma alternativa aos entraves à liberalização
multilateral, a qual tornou-se evidente na Rodada Uruguai:
"É
quando os EUA, como alternativa ao multilateralismo, como uma espécie de seguro
contra possibilidade do fracasso da Rodada Uruguai, vai começar a negociar o
primeiro acordo de livre comércio com o Canadá, Israel e depois o NAFTA, no
qual, o Canadá e os EUA negociam com o México. O curioso não é tanto que isso
tenha ocorrido nesse momento, mas que tenha se mantido depois do êxito da Rodada
Uruguai, porque a Rodada deveria, em princípio, ter desencorajado os esquemas
regionais."
[32]
Os
acordos regionais para os EUA são claramente uma alternativa ou, em certos
casos, um complemento às negociações multilaterais no âmbito da OMC. Os países
latino-americanos, por sua vez, participam de um jogo de negociações
complicado, uma vez que por mais que se tente sopesar o poderio americano
através de acordos com outros blocos econômicos, a União Européia, v.g.,
têm-se mostrado ainda mais intransigentes que os EUA no que tange a temas de
como a redução dos subsídios agrícolas, atualmente perfazendo o montante de cem
bilhões de dólares anuais (o dobro dos subsídios norte-americanos).
Enfim,
a suspensão das negociações da ALCA desde a reunião de Puebla em fevereiro de
2004 e o fracasso na implementação da sua terceira minuta em janeiro de 2005
parecem ter sido demonstrações suficientes de que os impasses experimentados
pelos EUA nas negociações nas Rodada de Doha do GATT/OMC repetiram-se e
repetir-se-ão nas negociações hemisféricas. Resta saber até que ponto a
estratégia de difusão dos acordos bilaterais com países americanos serão
eficientes para limitar a resistência de determinados países e blocos regionais
como o MERCOSUL, sem que isso implique a adoção de uma ALCA incompleta, na qual
figurem ausentes mercados almejados pelas empresas norte-americanas como o
brasileiro e o argentino.
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Notas
01 WHITAKER, 1964, apud BUENO,
Clodoaldo. Pan-Americanismo e projetos de integração: temas recorrentes na
história das relações hemisféricas (1826-2003). In: Política Externa. São
Paulo: Paz e Terra, Vol. 13, nº 1, Jun/Jul/Ago de 2004, p. 66.
02 Perda talvez maior para o ideário de uma
união das repúblicas hispano-americanas seria vivenciado pelo libertador Simón
Bolívar em menos de três anos após o Congresso com a fragmentação da Grande
Colômbia nos quatro Estados que a compunham: Colômbia, Venezuela, Peru e
Bolívia.
03
BUENO, op. cit., p. 67.
04 NIARADI, George Augusto. A integração econômica nas
Américas: ALADI e ALALC – MERCOSUL – NAFTA – ALCA.In: MENEZES, Wagner.
(org.) Estudos de Direito Internacional: anais do 2º Congresso Brasileiro de
Direito Internacional. Volume. I Curitiba: Juruá, 2004, p. 420.
05 Durante este período foram criados dois
novos blocos na América, o North American Free Trade Agreement - NAFTA
(1994) e o Mercado Comum do sul - MERCOSUL (1991). As negociações nos blocos já
existentes ganham novo impulso após décadas de inércia. Paralisado desde 1969,
o MCCA tem suas negociações retomadas em 1991, com a institucionalização das
reuniões presidenciais periódicas. A reunião presidencial dos países da
Comunidade Andina em 1989 e o estabelecimento do Conselho Presidencial Andino
em 1990 trazem também um novo estágio para este bloco. O fortalecimento do
regionalismo se dá de maneira análoga em outros continentes e, na Europa, de
forma ainda mais acentuada, com a assinatura do Tratado de Maastricht em 1992
dando origem à União Européia.
06 Pode-se citar como exemplo de variáveis
endógenas aos Estados, a compatibilidade de regimes e instituições políticas,
estabilidade macroeconômica, união histórica e condições geográficas favoráveis
à integração.
07 MALAMUD, Andrés. Integração regional
na América Latina: teorias e instituições comparadas In: ESTEVES, Paulo
Luiz (org.). Instituições Internacionais: segurança comércio e integração. Belo
Horizonte: Editora PUC-Minas, 2003, p. 334.
08 ARON, Raymond. Paz e guerra entre as
nações. Brasília: Edunb, 1987, p. 153.
09
HOBSBAWM, Eric Jonh. A
Era dos Extremos, 2ª ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 272.
10 National
government are no longer necessarily the locus of power. Power is parceled out
among different agents, national, regional, and international, public and
private. The state now shares center stage with other entities such as
international organizations like World Bank and the International Monetary
Fund, with non-governmental organizations like Greenpeace and Amnesty
International, and with multinational corporations, or perhaps, there is no
longer a center stage at all but rather a multiplicity of sites, some real,
some virtual, where global transactions are governed.
11 Curiosamente, a atrofia regulatória do Estado diante do
crescente fluxo de bens, capitais e serviços não se deu da mesma forma em
relação ao fluxo imigratório. Ainda que tenha havido aumento no número de
imigrantes originários de países pobres para os países desenvolvidos durante o boom
econômico do período de 1945 a 1973, tais imigrantes seriam alvos constantes de
xenofobia pública logo nas primeiras recessões mundiais da década de setenta
(HOBSBAWM, op. cit., p. 272).
12
ROSENAU, op. cit., p. 49.
13
"The rapid growth and maturation of the multi-centric world can in good
part be traced to the extraordinary dynamism and expansion of the global
economy. And so can the weakening of the state, which is no longer the manager
of the national economy and has become, instead, an instrument for adjusting
the national economy to the exigences of an expanding world economy".
14
HOBSBAWM, op. cit., p. 270.
15
HOBSBAWM, op. cit., p. 267.
16 PINHO, D. Benevides. Evolução da Ciência Econômica.
In: PINHO, D. Benevides & VASCONSELLOS. Marco Antônio Sandoval de. (orgs.).
Manual de Economia. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 55-60.
17 Pelas finalidades deste artigo, nos
dedicamos apenas superficialmente a esta terceira dimensão. Para um estudo mais
detalhado do tema, vide VADELL, Javier. O papel dos think tanks na
construção da hegemonia neoliberal. In: ESTEVES, Paulo Luiz (org.). Instituições
Internacionais: segurança comércio e integração. Belo Horizonte: Editora
PUC-Minas, 2003, p. 376-401.
18 ANDERSON, Perry. Balanço do
Neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.). Pós-Neoliberalismo.
As políticas sociais e o Estado democrático. 4ª ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 23.
19
KATZ, Jorge. Cambios en la estructura y comportamiento Del aparato
productivo latinoamericano en los años 1990: después del "Consenso de
Washington", ¿qué?. In: Serie Desarrollo Productivo, nº
65. Santiago: Red de Reestructuración y Competitividad, División de Desarrollo
Productivo y Empresarial de CEPAL, 2000, p. 11.
20 KATZ,
op. cit., p. 35-45.
21 KATZ,
op. cit., p. 16.
22 ARRIOLA, Salvador. Economia e política externa na
América Latina. Política externa e processo de integração. As assimetrias e a
integração: o começo de uma resposta. In: Política Externa. São
Paulo: Paz e Terra, Vol. 2, nº 2, Set/Out/Nov de 2002, p. 99.
23 NORONHA, Durval de Goys Jr. O
Mercosul, a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e a Organização Mundial
do Comércio (OMC). In: In: BRANT, Leonardo Nemer Caldeira. (coord.). O Brasil e os novos desafios
do direito internacional. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 147.
24 Via de regra, os países do leste
asiático que mais receberam investimentos estrangeiros durante a década de
noventa (Taiwan, Coréia do Sul, Hong Kong, Cingapura e China) lograram
estabelecer um equilíbrio macroeconômico e uma abertura comercial acentuada. No
entanto, adotaram determinadas medidas que fizeram o diferencial para o
crescimento de suas economias como grandes investimentos governamentais em
infra-estrutura, educação e pesquisa, concessão de subsídios, crédito e outras
formas de fomento a setores industriais estratégicos, intervenções dos Bancos
Centrais para a manutenção de uma taxa de câmbio competitiva às exportações,
entre outras.
25 NUNNENKAMP, Peter. Por que o
desempenho econômico e a competitividade internacional diferem tanto entre a
América Latina e a Ásia. In Cadernos Adenauer. Ano IV, nº 4. Experiências
asiáticas: modelo para o Brasil? Rio de Janeiro: Fundação Konrad
Adenauer, novembro de 2003, p. 16-18.
26 CARO, Ariela Ruiz. Repercusiones
del fracaso de la OMC en Cancún en la conformación del ALCA. In: ESTAY,
Jaime & SÁNCHEZ, Germán (coord.). El ALCA y sus
peligros en América Latina. Buenos Aires: Consejo Latino
Americano de Ciencias Sociales, 2005, p. 131.
27 Enquanto crescimento econômico diz respeito ao "aumento
contínuo do produto interno bruto em termos global e per capita",
desenvolvimento econômico pode ser caracterizado pela existência dos seguintes
elementos ao longo do tempo: 1) crescimento do bem-estar econômico, medido
por meio dos indicadores de natureza econômica, como, por exemplo: produto
nacional total, produto nacional per capita; 2) diminuição dos níveis de
pobreza, desemprego e desigualdade e 3) melhoria das condições de saúde,
nutrição, educação, moradia e transporte – MILONE, Paulo César. Crescimento
e Desenvolvimento Econômico: teorias e evidências empíricas. In: PINHO, D.
Benevides & VASCONSELLOS. Marco Antônio Sandoval de. (orgs.) Manual de
Economia. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 514.
28
STIGLITZ, apud KATZ, op. cit., p. 10.
29
"(...) comienza contemporáneamente a aceptarse que el mejor desempeño
del aparato productivo que se esperaba lograr a partir del juego automático de
los mercados solo en parte se ha alcanzado y que vastos sectores de la sociedad
han quedado excluidos del mismo. Comienzan también a escucharse, tanto en el
medio académico como en el ámbito político voces que reclaman ir más allá del
‘Consenso de Washington’ y comenzar a explorar nuevas ideas en lo que hace a
marcos regulatorios, políticas de desarrollo productivo y tecnológico, acciones
de fomento a la economía y asegurar una mayor equidad en la distribución de los
beneficios de la modernización del aparato productivo. En estas direcciones
serán necesarias nuevas formas de ‘ingeniería institucional’, nuevos modelos de
interacción público/privado, etc".
30
BUENO, op. cit., p. 74.
31 A iniciativa Chilena e Mexicana ilustra a postura de um
"realismo comercial". Ao mesmo tempo que se firmou uma série de
Tratados de Livre Comércio com os EUA, outros acordos bilaterais foram
estabelecidos com a União Européia, Japão, países do leste asiático, entre
outros.
32 RICUPERO, Rubens. As Relações
EUA – América Latina e a Integração. In: América Latina: Globalização e
Integração. Belo Horizonte: Edições Fiemg, 1997, p. 82
Acesso em: 10 de outubro de 2005
Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7376