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Autonomia da vontade no Direito Internacional Privado

 

 

 

       Fernando Sérgio Tenório de Amorim

advogado e jornalista em Maceió (AL), professor de Direito Internacional Privado no Centro de Estudos Jurídicos do Centro de Estudos Superiores de Maceió (CESMAC) 

 

 

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1. A AUTONOMIA DA VONTADE NA TEORIA GERAL DO DIREITO

 

Compreender o paradigma da modernidade, e entender como as noções de Estado e sujeito de direito operam no sentido conferir uma harmonia aparente a um sistema social que se funda na desigualdade, é tarefa fundamental para a análise dos caracteres que hoje fundamentam a ciência jurídica. Como bem afirma Tércio Sampaio Ferraz Jr.:

 

          "Para o mundo jurídico o advento da sociedade do homo laborans significa, assim, a contingência de todo e qualquer direito, que não apenas é posto por decisão, mas vale em virtude de decisões, não importa quais, isto é, na concepção do animal laborans, criou-se a possibilidade de estruturas contraditórias, sem que a contradição afetasse a função normativa." (1)

 

          O mundo ocidental funda suas raízes nos paradigmas construídos em meio às mudanças de um período de revoluções políticas e sociais, amparadas, sobretudo, na grande querela instaurada entre empirismo e racionalismo. Tércio Sampaio identifica nesse período uma formalização e racionalização do direito que não é "...mais nem contemplação, nem manifestação da autoridade, nem exegese à moda medieval, mas capacidade de reprodução artificial (laboratorial) de processos naturais". (2)

 

          Essa sistematização do direito, capaz de torná-lo um regulador racional, lança as bases para uma concepção histórica do fenômeno jurídico, sujeito às circunstâncias e contingências culturais de cada povo. Institucionaliza-se, desta forma, a mutabilidade do direito, uma característica fundamental do fenômeno da positivação, no qual os institutos jurídicos são vistos como totalidades de natureza orgânica.

 

          Ora bem, o arbítrio individual, a capacidade de escolha do indivíduo que tem autonomia para fazer opções, está intimamente associado à idéia de liberdade, sendo esta última preciosa para que se reconheça o direito subjetivo como uma realidade em si. Segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., enquanto para os antigos a liberdade era um status, o status libertatis dos romanos, em oposição ao status servitutis, o cristianismo trouxe uma outra concepção de liberdade, o livre-arbítrio.

 

          Desta forma, se entre os romanos a liberdade consistia numa "...qualificação pública do agir político", o pensamento cristão concebeu a liberdade como uma qualidade interna da vontade individual que se expressa num querer ou não querer, partilhados por todos os homens, independentemente do seu status. (3) O indivíduo torna-se, assim, um centro isolado, pois o livre-arbítrio é sempre exercido, não importando se esse exercício é ou não possível. Mesmo numa prisão o homem conserva a vontade livre.

 

          Tércio Sampaio alerta para o fato de que o exercício do livre-arbítrio encontra limites na medida em que não se puder exteriorizar publicamente. Tem-se, portanto, um conceito negativo de liberdade, como ele próprio afirma: "...o lado público do livre-arbítrio permite assim a compreensão da liberdade como não impedimento. É o conceito negativo de liberdade: o homem é livre à medida que pode expandir o que quer." (4) Essa concepção de liberdade será fundamental para a estruturação do capitalismo nascente. Com base no livre-arbítrio, na liberdade como não impedimento, um novo conceito de liberdade é erigido. Desta feita um conceito positivo, sendo a liberdade entendida como autonomia, como capacidade de auto-regramento da vontade.

 

          Nádia de Araújo apresenta uma definição de vontade efetuada por Claparède, que a distingue das outras atividades, como, por exemplo, as operações intelectuais, por apresentar um conflito de tendências que têm por objeto o fim da ação. O ato de vontade teria como função resolver esse conflito entre fins .(5) O direito moderno atribuía à vontade a força geradora do vínculo obrigacional, importância essa que foi mitigada durante o século XX com a crescente intervenção do Estado na economia, em detrimento da liberdade do indivíduo.

 

          Com efeito, no início do século XIX a concepção clássica de negócio jurídico utilizava a expressão (Rechtsgeshaft) para "...designar o ato jurídico em que a vontade tinha liberdade de escolha, podendo auto-regrar-se". (6) Segundo Marcos Bernardes de Mello, o conceito de negócio jurídico fora então "...construído sob a inspiração ideológica do Estado liberal, cuja característica mais notável consistia na preservação da liberdade individual, o mais ampla possível, diante do Estado". (7) Essa excessiva valorização do voluntarismo findou por transformar o negócio jurídico num ato de autonomia da vontade, autonomia privada, no qual a declaração da vontade negocial constituiria o próprio negócio jurídico, cujos efeitos dela (vontade) seriam decorrentes.

 

          Marcos Mello critica essa concepção, para ele distorcida, de negócio jurídico. Sendo a exteriorização da vontade o elemento nuclear do suporte fático do ato jurídico lato sensu, a sua importância para o mundo jurídico apenas teria razão de ser caso estivesse prevista como suporte fático de alguma norma jurídica. Nesse sentido, a vontade negocial tem de ser erigida à condição de fato jurídico pela incidência da norma jurídica. "Sem a incidência da norma, a vontade não entrará no mundo jurídico e, portanto, não há como se falar em negócio jurídico ou outra qualquer espécie de fato jurídico. Somente há juridicidade onde há norma jurídica que a atribua a algum fato, inclusive volitivo." (8)

 

          Segundo Marcos Mello, é importante estabelecer uma distinção entre eficácia legal, decorrente da incidência da norma jurídica sobre o seu suporte fático, juridicizando-o, e a eficácia jurídica, que são os efeitos do fato jurídico. A norma jurídica, o fato e tampouco o suporte fático não podem, sozinhos, produzir eficácia jurídica. Assim sendo, a extensão da eficácia jurídica é uma decorrência do que fora estatuído pelo sistema jurídico como efeito do fato jurídico, noutras palavras, mesmo não sendo a fonte dos efeitos jurídicos, é a norma jurídica quem define a eficácia do fato jurídico.

 

          Haveria assim uma situação jurídica básica que se constituiria na eficácia mínima e necessária dos fatos jurídicos, a partir da qual seriam irradiados, quando possível, seus outros efeitos. Quando limitada a apenas uma esfera jurídica, essa situação jurídica básica é denominada simples ou unisubjetiva. Quando, porém, o direito que integra uma esfera jurídica corresponde a um dever noutra esfera jurídica, estabelece-se uma relação jurídica entre os titulares desses direitos e deveres, caracterizando assim, uma situação jurídica complexa ou intersubjetiva, que se subdivide em situação jurídica complexa unilateral e situação jurídica complexa multilateral. Na primeira, embora haja a necessidade de intersubjetividade no relacionamento, inexiste a correspectividade de direitos e deveres; na segunda, ocorre a intersubjetividade jurídica e a correspectividade de direitos e deveres, caracterizando assim a relação jurídica.

 

          Ao regular as relações jurídicas, o sistema jurídico pode fazê-lo exaustivamente, estabelecendo normas cogentes que não deixam margem à atuação da vontade, adstrita à escolha da categoria negocial, ou poderá fazê-lo de forma mais ampla, assentindo que a vontade escolha não apenas a categoria negocial, como também estruture o conteúdo eficacial da relação jurídica. Para Marcos Bernardes de Mello, contudo, a autonomia ou auto-regramento da vontade não estaria apta a produzir efeitos que não estivessem previstos pelo sistema jurídico. Desta forma, nos negócio jurídicos a vontade não criaria efeitos, pois estes seriam decorrentes da lei (ex lege) , que apenas concederia aos indivíduos a possibilidade de escolher a categoria jurídica dentro de certos limites estabelecidos pelo próprio ordenamento jurídico.

 

          Essas limitações à vontade negocial conduzem à conclusão de que a lei deixa aos indivíduos um espectro restrito de possibilidades, quando se tratar de escolher a categoria jurídica e a eficácia da relação jurídica. Como afirma Pontes de Miranda:

 

          "Em verdade, ainda que amplamente, o direito limita a classe dos atos humanos que podem ser juridicizados. Mundo fático e mundo jurídico não são coextensivos. Noutros termos: somente dentro de limites pré-fixados, podem as pessoas tornar jurídicos atos humanos, e, pois, configurar relações jurídicas e obter eficácia jurídica. A chamada ‘autonomia da vontade’, o auto-regramento, não é mais do que ‘o que ficou às pessoas’. (...) O que caracteriza o auto-regramento da vontade é poder-se, com ele, compor o suporte fático dos atos jurídicos com o elemento nuclear da vontade." (9)

 

          A autonomia da vontade, no entanto, assume papel preponderante quando se trata de estabelecer a lei aplicável às relações jurídicas que extrapolam as fronteiras do ordenamento jurídico interno. Nesse aspecto, as limitações à vontade negocial são ainda mais evidentes, uma vez que adstritas à escolha da lei aplicável à relação jurídica.

 

 

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2. A AUTONOMIA DA VONTADE NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

 

          A autonomia da vontade nos contratos internacionais é questão doutrinariamente já debatida no Direito Internacional Privado. O mesmo se pode dizer, por exemplo, dos contratos de adesão, espécie de negócio jurídico no qual a autonomia de uma das partes contratantes estaria restrita à aceitação ou não das condições gerais e cláusulas uniformes estabelecidas pelo proponente. A natureza adesiva desse contratos torná-los-ia permeáveis a adoção de condições gerais uniformes, às quais deveria aderir o contrato, sem que ao oblato fosse permitido contestá-las.

 

          Paulo Luiz Neto Lôbo efetua, contudo, restrições ao significado do termo "adesão" usualmente utilizado pela doutrina. Segundo ele, há que se estabelecer uma distinção entre condições gerais e contrato de adesão, afastando-se assim a confusão estabelecida pela orientação monista da doutrina francesa. O contrato de adesão não seria, desta forma, um contrato geral, gerais seriam apenas as condições às quais o contrato adere necessariamente. (10) E assim ocorre porque a adesão ao contrato, por parte do oblato, pressupõe a conclusão do negócio jurídico, ou seja, a oferta somada à aceitação. Antes disso, não há negócio jurídico, mas apenas condições gerais, uma vez que "...o contrato dito de adesão só passa a existir com a declaração comum das partes contratantes". (11) Desta forma, não se poderia falar de adesão ao que juridicamente ainda não existe, o contrato. Tampouco se poderia falar em adesão a condições gerais, uma vez que estas se aplicam a despeito da ausência de consentimento. Paulo Lôbo é enfático ao concluir:

 

          "O que adere -– liga, une, cola – às condições gerais é o contrato individual quando se conclui. É o contrato que adere, e não o contratante, pois sua adesão, repita-se, é irrelevante. (...) No atual estágio da ciência jurídica, o contrato de adesão pode ser assim concebido: o contrato que, ao ser concluído, adere a condições gerais predispostas por uma das partes, que passam a produzir efeitos independentemente de aceitação da outra parte." (12)

 

          Ora, a adesividade, se se considerar apenas o plano do direito interno, constitui-se em um quase antípoda do consensualismo e, por extensão, fere o princípio da autonomia da vontade, tido aqui como o poder que as partes têm de livremente negociar os termos do contrato, escolhendo a categoria negocial e estruturando o conteúdo eficacial da relação jurídica .(13) Como afirma Irineu Strenger a respeito dos contratos:

 

          "Ora, o contrato, seja de que natureza for, constitui-se num meio pelo qual os particulares regulam seus interesses de acordo com determinada vontade, mesmo admitidas limitações ao seu exercício, apresentando-se num quadro abstrato que (...) pode configurar em seus conteúdos as instituições correspondentes, essencialmente as relativas a quaisquer dados concretos da vida social, expressos na lei ou num ordenamento jurídico. Tais elementos não devem ser vistos somente pelo ângulo da técnica jurídica, porque exatamente o direito que se apóia sobre o contrato, como símbolo do direito individual, alicerça-se nos princípios da igualdade e da liberdade, ao passo que o direito que se apóia nas instituições tem apenas como suporte a autoridade." (14)

 

          Segundo Irineu Strenger, deixar de reconhecer o papel da vontade contraria a dimensão pluralista da sociedade "...onde os ideais morais e jurídicos se cristalizam por força de um comando que se origina na natureza humana". (15) A despeito dessa visão calcada no abstrato conceito de natureza humana, Strenger concebe, assim como Miguel Reale, que o processo jurígeno não está restrito à norma jurídica, como ele mesmo sentencia:

 

          "Por outro lado, o processo jurígeno não se exaure na norma jurídica, porquanto, como diz Miguel Reale, ela mesma suscita, no seio do ordenamento e no meio social, um complexo de reações estimativas, de novas exigências fáticas e axiológicas, e o homem constitui o centro do direito, e o fim principal do direito é servir a seus legítimos interesses." (16)

 

          Autonomia da vontade, no direito interno, confunde-se com liberdade para contratar, embora deva-se considerar a ressalva efetuada por Pontes de Miranda, que assim dimensionou ambos os princípios: a liberdade para contratar corresponderia ao poder de "...se adquirirem, livremente, direitos, pretensões, ações e exceções oriundos do contrato; e princípio da autonomia da vontade (expressão essa que Pontes de Miranda preferia substituir por auto-regramento) , o da escolha, o líbito, das cláusulas contratuais". (17)

 

          No âmbito do direito interno, a aceitação da autonomia da vontade oscila entre duas perspectivas distintas. A primeira antevê a possibilidade de que as partes possam dispor livremente os termos do contrato, a despeito das normas imperativas, facultativas ou supletivas, cujo ápice fora atingido, como bem observa Oscar Tenório (18) , com o liberalismo, materializando-se o princípio da autonomia da vontade no art. 1.134 do Código Civil francês, no qual restava estipulado que as convenções legalmente constituídas fariam lei entre as partes.

 

          A segunda perspectiva rechaça o individualismo da primeira, propugnando que a efetiva influência do Estado no campo econômico e nas relações comerciais propiciou uma redução do espectro de ação dos contratantes, sujeitando-os às determinações legais. Quanto a esta segunda orientação, Irineu Strenger alerta para o fato de que a autonomia da vontade não estaria restrita a uma visão estritamente publicista, tese também esposada por Vicente Ráo, padecendo de maiores ou menores limitações em função da relação sob a qual seja tratada, a saber, se de natureza pública ou privada. Como o próprio Strenger afirma:

 

          "Para contestar a concepção extremadamente publicista vale-se (Vicente Ráo) da opinião de Betti, segundo a qual a autonomia de um ente ou sujeito subordinado pode ser concebida através de duas funções distintas: a) como fonte de normas destinadas a formar parte integrante da própria ordem jurídica que a reconhece como tal e por meio dela realiza uma espécie de descentralização da função nomogenética, fonte esta que poderia ser qualificada como regulamentar, por ser subordinada à lei; e b) como pressuposto à hipótese de fato gerador de relações jurídicas já disciplinadas, em abstrato e geral, pelas normas de ordem jurídica, revelando semelhante distinção um dado fenomenológico que não pode ser desconhecido (...) E finaliza: a autonomia privada verdadeira e própria, consiste no poder que os sujeitos privados possuem de ditar as regras de seus interesses, em suas relações recíprocas." (19)

 

          Transpostas para o plano do direito conflitual, ambas as orientações irão resultar na aceitação ou não aceitação do princípio da autonomia da vontade no Direito Internacional Privado e no dimensionamento do limites da sua aplicação. A essas duas orientações assemelham-se as concepções subjetivista e objetivista do conceito de autonomia da vontade.

 

          A primeira entende que a designação do direito aplicável ao contrato obedeceria à vontade das partes. Inexistindo uma lei escolhida no contrato, caberia ao juiz aplicar-lhe a vontade hipotética dos contratantes, implícita nas cláusulas contratuais e deduzida pelo julgador. Como o contrato possui uma conexão internacional, seu raio de abrangência extrapola a rede de relações sociais do ordenamento jurídico interno e, desta forma, forçoso seria concluir-se que o contrato não estaria submisso a nenhum sistema jurídico. A escolha da lei aplicável promoveria a incorporação dessa lei ao contrato. Em contrapartida, a concepção objetivista afirma que a lei não pode ser objeto do que fora convencionado pelos contratantes. O princípio da autonomia da vontade não permite que as partes adotem a lei aplicável, mas que a esta se submetam. A lei aplicável é, portanto, determinada pelo juiz de acordo com o que as partes tenham estipulado em relação à localização do contrato. (20)

 

          Alguns, como Niboyet por exemplo, chegaram mesmo a afirmar que a autonomia da vontade considerada como o poder de escolha da lei competente, não existe. Por certo Niboyet tinha em mente que não se pode aceitar que uma norma imperativa no plano interno adquira o status de uma norma facultativa no plano internacional. Essa degradação da norma na passagem da ordem interna para a ordem internacional preconizaria a diversidade das conseqüências advindas da transgressão da norma imperativa, eivando de nulidade os atos no âmbito do ordenamento jurídico interno e amenizando os seus efeitos no plano internacional. Pontes de Miranda também criticou duramente a teoria da autonomia da vontade, assim justificando o seu pensamento:

 

          " a) na parte de cogência, há uma lei aplicável, que poderá conferir à vontade, por estranha demissão de si-mesma, o poder de desfazer tal imperatividade, quer dizer – um imperativo que se nega a si mesmo, que se faz dispositivo; b) fixados pela aplicável os limites da autonomia, dentro deles não há escolha de lei, há ‘lei’ que constitui conteúdo, citação, parte integrante de um querer". (21)

 

          O comentário aqui efetuado por Pontes de Miranda, também citado por Nádia de Araújo (22) , refere-se à Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro de 1916. Considerando a afirmação do jurista alagoano, seria mesmo um contra-senso conceber uma norma imperativa que permitisse a sua negação. Tal argumento, contudo, possui o mesmo teor dos argumentos formulados pelos que refutam o reenvio e justificam sua tese no fato de que uma vez indicado o direito estrangeiro pela norma de conflito do foro, deverá aquele – o direito estrangeiro – ser aplicado, não se aceitando a devolução para a aplicação da lex fori por se contrapor tal aplicação à determinação inicial desta lei. A Pontes de Miranda incomoda a idéia de que uma norma imperativa contivesse a sua própria negação, o que resulta na sua concepção de que "...a autonomia da vontade não existia, nem como princípio nem como teoria aceitável". (23)

 

          No Direito Internacional Privado, a autonomia da vontade, como restou aqui explicitado, cinge-se tão somente à liberdade que têm os contratantes para determinar a lei aplicável ao contrato. Desta forma, os contratos internacionais de franchising estariam sujeitos aos inúmeros conflitos de leis decorrentes do tratamento diferenciado que recebem, legislativa e doutrinariamente, de cada ordenamento jurídico em particular. Sendo de natureza adesiva, poderia o policitante invocar a autonomia da vontade e determinar-lhes, unilateralmente, a lei aplicável.

 

          Ora bem, considerando que os contratos de franquia possuem natureza adesiva, ou ainda, apresentariam alguns elementos que os qualificariam como contratos de adesão, como se convencionou chamar, para os ordenamentos jurídicos que não aceitam o caráter de adesividade dos contratos de franchising, a cláusula que permite a fixação unilateral da lei aplicável seria sobejamente abusiva. Além disso, aceitando-se ou não a "teoria da adesão", podem ainda os contratos internacionais de franquia esbarrar no óbice maior à determinação da lei aplicável em matéria de contratos internacionais: a adoção da autonomia da vontade como elemento de conexão no Direito Internacional Privado.

 

          Os contratos internacionais são, portanto, um solo fértil para a adoção da autonomia de vontade como critério determinante da lei que lhes será aplicável. Nesses tempos de internacionalização, para não dizer globalização, da vida econômica, torna-se imprescindível a adoção de normas uniformes, quer internas quer de sobredireito, para que sejam evitados ou ao menos minimizados os conflitos de 2° grau decorrentes da diversidade de elementos de conexão adotados pelos vários ordenamentos jurídicos.

 

          Como já foi dito, essa uniformidade é sempre buscada, nunca alcançada, e seria utópico pretender que o fosse. Contudo, alguns obstáculos impõem-se a esta uniformização e o primeiro deles resulta na própria conceituação doutrinária dos contratos internacionais, dos contratos de adesão e, por fim, dos contratos de franquia. Como se tais dificuldades não fossem legião, a estas seguem-se as disparidades internas dos diversos ordenamentos jurídicos no que tange a adoção da autonomia da vontade como elemento de conexão nos contratos internacionais e, em maior escala, a determinação dos limites de sua aplicação.

 

          Erigir um único elemento de conexão como regra rígida de localização a ser aplicada a todos os tipos de contratos resulta num grave erro (24) . A afirmação, feita por Von Hecke e citada por Luiz Olavo Baptista, ilustra com precisão que em matéria de contratos internacionais a determinação da lei aplicável, seja no que diz respeito aos aspectos extrínsecos ou formais seja no que tange aos aspectos intrínsecos ou de fundo, deve ser considerada em função das particularidades do caso. A posição de Olavo Baptista assemelha-se assim à tese defendida por Niboyet, que analisava os contratos numa classificação tipológica, propondo soluções que estivessem em consonância com o direito mais próximo ou mais compatível com a natureza do contrato.

 

          Quanto à distinção entre os aspectos de fundo e de forma, João Grandino Rodas, ao analisar os elementos de conexão relativamente às obrigações contratuais, atenta para o fato de que a adoção do locus regit actum como elemento de conexão pertinente ao aspectos extrínsecos ou formais do ato guarda algumas dubiedades. Uma delas seria a dificuldade de se estabelecer uma diferenciação entre forma e fundo, a outra consistiria no fato de que não foram também "...satisfatoriamente resolvidas as questões relativas a sua fundamentação e caráter" (25) . E é o próprio Professor Grandino Rodas quem cita Buzzati:

 

          "Embora a uniformidade de opiniões em torno de tal ponto do Direito Internacional Privado seja mais aparente do que real; perdura todavia a confusão derivada de não se ter exatamente fixado o teor da regra; ainda hoje não há consenso ao se determinar o conceito de ato ou o de forma, sendo considerados elementos extrínsecos da validade de um negócio jurídico alguns que, ao contrário, são elementos substanciais, ou vice-versa; grandes diferenças são encontradas nos sistemas legislativos dos vários Estados, diferenças nos julgados, até em um mesmo país e em casos idênticos, alguns escritores pretendem que a regra locus regit actum seja sempre obrigatória, outros facultativa, alguns, que não possa ser aplicada aos atos solenes, outros, não, etc." (26)

 

          Como se observa, a delimitação de regras de conexão para os contratos internacionais e, em especial, a adoção da autonomia da vontade como elemento de conexão, esbarram em inúmeros obstáculos doutrinários, legislativos e jurisprudenciais.

 

 

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3. CONCLUSÃO

 

          As discussões teóricas aqui apresentadas apenas revelam uma parcela mínima das inúmeras divergências doutrinárias que campeiam no tratamento destas questões. Desta forma, uma pesquisa mais exaustiva exige uma verdadeira promenade pelas várias teorias que trataram a autonomia da vontade no âmbito do direito substancial e do Direito Internacional Privado. É evidente que não se pode pretender fossem tais teorias aqui analisadas. Como ocorre todo trabalho de investigação fundado na pesquisa bibliográfica, os esforços analíticos primaram quase que exclusivamente por esforço de demonstração das principais teorias acerca da autonomia da vontade no Direito Internacional Privado, bem como do contexto histórico de desenvolvimento desse instituto jurídico.

 

          Contudo, trata-se apenas de um estudo exploratório. O pensamento de Batiffol, Nyboyet, Dumoulin, Armijon, Teixeira de Freitas, Haroldo Valladão, Oscar Tenório, Amílcar de Castro, Pontes de Miranda e tantos outros, está sedimentado e cristalizado. Poder-se-ia efetuar-lhe apenas uma releitura, num esforço de demonstração e análise dos seus postulados, à luz da reflexão que hoje é efetuada por autores contemporâneos como João Grandino Rodas, Nádia de Araújo, Luiz Olavo Baptista, Maristela Basso, Guido Soares e muitos outros. A dificuldade de acesso à bibliografia, sobretudo dos autores estrangeiros, dificulta a realização de uma investigação mais exaustiva. Espera-se, porém, que as sementes aqui lançadas possam servir para o aprofundamento do tema em pesquisas futuras.

 

 

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NOTAS

 

          (1) Tércio Sampaio Ferraz Jr. Introdução ao Estudo do Direito. 2a edição. São Paulo, 1994. p. 28.

 

          (2) Ibidem. p. 70.

 

          (3) Tércio Sampaio Ferraz Jr Op. cit. p. 148.

 

          (4) Ibidem. p. 148.

 

          (5) Nádia de Araújo. Contratos Internacionais; autonomia da vontade, mercosul e convenções internacionais. Rio de Janeiro, 1997. p. 33.

 

          (6) Marcos Bernardes de Mello. Teoria do fato jurídico; plano da existência. 7a ed. São Paulo, 1995, p. 139.

 

          (7) Ibidem. p. 140.

 

          (8) Marcos Bernardes de Mello. Op. cit. p. 144.

 

          (9) Pontes de Miranda. Tratado de Direito Internacional. Tomo III, Rio de Janeiro, 1935, p. 55.

 

          (10) Paulo Luiz Neto Lôbo. Condições gerais dos contratos e cláusulas abusivas. São Paulo, 1991. p. 41.

 

          (11) Paulo Luiz Neto Lôbo. Op. cit. p. 40.

 

          (12) Ibidem. p. 40.

 

          (13) Cf. Marcos Bernardes de Mello. Teoria do fato jurídico; plano da existência. 7a ed. São Paulo, 1995, p. 154.

 

          (14) Irineu Strenger. Direito Internacional Privado. São Paulo, 1996, p. 664.

 

          (15) Irineu Strenger. Op. Cit. p. 664.

 

          (16) Ibidem. p. 664.

 

          (17) Pontes de Miranda, citado por Irineu Strenger. Direito Internacional Privado. São Paulo, 1996, p. 669.

 

          (18) Oscar Tenório. Direito Internacional Privado. Vol. II, São Paulo, 1966, p. 174.

 

          (19) Irineu Strenger. Op. Cit. p. 662.

 

          (20) Cf. Nádia de Araújo. Contratos Internacionais; autonomia da vontade, Mercosul e convenções internacionais. Rio de Janeiro, 1997. p. 51.

 

          (21) Pontes de Miranda. Tratado de Direito Internacional. Tomo II, Rio de Janeiro, 1935, p. 156.

 

          (22) Nádia de Araújo. Contratos Internacionais; autonomia da vontade, Mercosul e convenções internacionais. Rio de Janeiro, 1997.

 

          (23) Nádia de Araújo. Op. Cit. p. 90.

 

          (24) Von Hecke, citado por Luiz Olavo Baptista. Dos contratos internacionais: uma visão teórica e prática. São Paulo, 1994, p. 37.

 

          (25) João Grandino Rodas. Elementos de conexão do direito internacional privado brasileiro relativamente às obrigações contratuais. In – João Grandino Rodas (org.). Contratos Internacionais. São Paulo, 1995, p. 33.

 

          (26) "Se non che la uniformità d’opinioni intorno a tal punto del diritto internazionale privato è piú apparente che reale; perdura tuttavia la confusione derivata dal non aver esattamente fissata la portata della regola; ancora oggi non si è concordi nel determinare il concetto di atto o quello di forma, e sono spesso considerati elementi estrinseci di validità di un negozio giurídico alcuni che invece sono elementi sostanziali, o viceversa; grandi differenci si trovano nelle disposizioni legislative dei vari Stati; differenci nei giudicati, anche di uno stesso paese, e in indentici casi, alcuni scrittori vogliono che la regola locus regit actum sia obbligatoria sempre, altri facoltativa; alcuni che non possa essere applicata agli atti solenni, altri no, ecc." Buzzati, citado por João Grandino Rodas, Op. Cit. p. 29. (tradução livre) .

 

 

 Retirado de: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=1642. Acesso em: 17 maio 05.