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O Direito ao Meio Ambiente Saudável: A Proteção da
Biodiversidade, a Responsabilidade e a Reparação do Dano no Plano Internacional
Sylvia Helena de Figueiredo Steiner *
Sumário: I- Introdução. II-
Evolução histórica do conceito de "direitos da humanidade". III- O
direito ao meio ambiente saudável no plano internacional. IV- Considerações
sobre a responsabilidade por danos ambientais. V- O regime de responsabilidade
na Convenção sobre Biodiversidade e no Protocolo de Cartagena. VI- Conclusões.
Bibliografia.
1. Introdução
Assinada em 1992 durante a ECO/92,
no Rio de Janeiro, a Convenção sobre Biodiversidade, nos termos do seu
Preâmbulo, afirma que a conservação da biodiversidade biológica é interesse
comum da humanidade e, ainda, que, ante a falta de informações e conhecimentos
sobre a biodiversidade, torna-se urgente a necessidade de que se desenvolvam
mecanismos científicos, técnicos e institucionais para prevenir ou minimizar a
ameaça de perda ou diminuição desse valor. Em seu art.14 (2), a Convenção , na
previsão da ocorrência de impactos adversos à biodiversidade, comete à
Conferência das Partes o exame da regulação das formas de responsabilidade e
reparação, inclusive o restabelecimento ou a indenização pelos danos causados à
diversidade biológica, salvo se esta circunscrever-se a uma questão puramente
interna. Por sua vez, o Protocolo de Cartagena à Convenção de Biodiversidade,
adotado em janeiro de 2000 em Montreal, contém igualmente, em seu art. 27, um
mandamento à Conferência das Partes, no sentido de que sejam adotadas regras no
campo da responsabilidade e reparação pelos danos decorrentes de movimentos
transfronteiriços de organismos
vivos geneticamente modificados.
Tendo em vista a não regulação do
regime de responsabilidade na Convenção sobre Biodiversidade, e a previsão do
art. 27 do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, somos instados à
reflexão acerca da proposta de elaboração normativa sobre responsabilidade e
reparação de danos resultantes de atos ou efeitos adversos à biodiversidade, e
do movimento transfonteiriço de organismos vivos modificados. Na verdade, a
reflexão assim circunscrita não nos dispensa de um breve exame sobre o universo
em que a questão mais ampla da responsabilidade se insere: a proteção do meio
ambiente, o qual, por sua vez, está compreendido no universo dos reconhecidos e
consagrados direitos de interesse comum da humanidade (common concern of
mankind). Nesse amplo e complexo universo, o direito ao meio ambiente
saudável, e a necessária sanção de condutas lesivas ao direito, ressaltam por
sua modernidade e abragência. A premissa básica é a de que "no que se
refere ao meio ambiente, na verdade, no caso de ação ou omissão cometidas por
um indivíduo ou atribuíveis a um Estado, e virem a causar ou a ameaçar criar um
desequilíbrio nas relações humanas, há a necessidade de regulamentar, mediante
um sistema de sanções, não a ecologia (regida pelas leis da causalidade), mas a
conduta humana que a ela diga respeito.(...) Assim, quando se diz 'proteção ao
meio ambiente', a referência é à conduta livre do homem e, portanto, ao mundo
da Ética e do Direito. Proteger significa, em outras palavras: determinar as
condutas que preservam o equilíbrio do meio ambiente, em detrimento de outras,
consideradas ilícitas ou proibidas, e portanto, acompanhadas de uma sanção,
caso sejam praticadas." 1
Nos dias atuais, a idéia de
direitos fundamentais - assim entendidos os direitos humanos reconhecidos pelas
normas dos Estados - está diretamente associada à idéia de um núcleo de valores
ou interesses de todos e de cada um que gera, ao Estado, a terceiros ou à
comunidade, a obrigação de respeito e proteção, quer pela abstenção de condutas
que possam pôr em risco o uso e gozo de determinados direitos, quer por atos
concretos de implementação e desenvolvimento desses mesmos direitos. Trazendo
como sumário do tema o Relatório do Grupo de Expertos da UNEP (United
Nations Environment Programme, ou PNUMA - Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente), reunido para examinar a questão da definição de common
concern of mankind em tema de proteção ambiental, dele - em tradução livre
- extrai-se que o termo 'mankind', de início, demonstra a ligação com o
quadro dos direitos humanos e sua ampla dimensão temporal (envolvendo as atuais
e futuras gerações). O termo 'concern' sugere o foco primário sobre as
'causas' dos problemas (...), reforçando assim o caráter preventivo da proteção
ambiental (a obrigação geral do dever de diligência); mas também focaliza os
efeitos conseqüentes ou as respostas a serem dadas (aplicação de regras de
controle de poluição, reconhecimento de direitos de ação nos níveis nacional e
internacional, e estabelecimento de um modelo institucionalizado de proteção).
O termo 'common' (como em 'common concern') vem sendo empregado
no sentido de 'público' (como 'ordem pública') na lei doméstica (...); a noção
de 'common concern' aparece próxima daqueles de 'obligation erga
omnes', 'jus cogens', 'common heritage' e 'global commons'. Tais
considerações devem-se ao fato do reconhecimento de que o tratamento global do
meio ambiente tornou-se um 'common concern of mankind',(...) daí
decorrendo seu exame sob as idéias de liberdade de acesso e divisão equitativa
por todos (doutrina da 'res comunis'), a idéia de não apropriação e de
gestão por normas de direito público ( doutrina do domínio internacional
público), a idéia da proteção de bens comuns extensivos às futuras gerações
(...). Daí decorrerem alguns elementos constitutivos do 'common concern':
envolvimento de todos os Estados, sociedades e classes de pessoas, a dimensão
diferida no tempo, envolvendo as presentes e futuras gerações, e a partilha dos
encargos na proteção ambiental 2.
É pois a partir dessas premissas
que situamos o direito ao meio ambiente saudável como um dos mais recentes
direitos humanos reconhecidos pelos Estados e pela comunidade internacional.
Nesse ponto, estamos com Norberto Bobbio, para quem os direitos do homem são
direitos históricos, nascidos de modo gradual, partindo de um caminho contínuo
da concepção individualista da sociedade, pelo qual se vai do reconhecimento
dos direitos de cada cidadão frente ao Estado até o reconhecimento dos direitos
do cidadão do mundo, cujo primeiro anúncio foi a Declaração Universal dos
Direitos do Homem 3. E, portanto, é sob tal enfoque que pretendemos estudá-lo.
Tradicionalmente, a teoria geral
dos Direitos Humanos recorre à trifásica classificação dos direitos humanos
originada do dístico da revolução francesa: direitos de liberdade, de igualdade
e de solidariedade. Assim, seriam de primeira geração os direitos individuais,
civis e políticos, também chamados "direitos negativos", na medida em
que impõem ao Estado uma obrigação de não fazer, de não interferência nas
esferas de liberdade dos indivíduos. De segunda geração, seriam os direitos
sociais, vistos como direitos positivos em razão de gerarem ao Estado
obrigações de fazer, ou de propiciar a realização desses mesmos direitos. Por
fim, os direitos de terceira geração, associados ao princípio da solidariedade,
seriam aqueles cujo titular é o ser humano indistinto, difuso, visto como parte
da comunidade internacional. Nesse contexto implementam-se os direitos à paz,
ao desenvolvimento, ao meio ambiente saudável, entre outros. Tais direitos,
ainda recorrendo à lição de Bobbio, não podiam ser sequer imaginados quando
foram promulgadas as primeiras Declarações de direitos. O direito de viver num
ambiente não poluído, a exemplo, é exigência nascida em razão de mudanças nas
condições sociais, e num contexto em que o desenvolvimento tecnológico permite
sua implementação e proteção. Os direitos humanos "nascem quando devem, ou
podem nascer."4
Muitos condenam a classificação
acima resumida, na medida em que parece impor uma sucessão generacional de
direitos, quando, em verdade, essa sucessão não ocorreu, ao menos quando se
leva em consideração o estágio de avanço dos direitos nos planos internos dos
Estados e internacional. Não sem razão Cançado Trindade, quando afirma que
"entre as distintas 'categorias' de direitos - individuais e sociais ou
coletivos - só pode haver complementaridade, e não antinomia, o que revela a
artificialidade da noção simplista da chamada 'terceira geração' de direitos
humanos: os chamados direitos de solidariedade, historicamente mais recentes,
em nosso entender, interagem com os direitos individuais e coletivos, e não os
'substituem', distintamente do que a invocação inadequada da imagem do suceder
das gerações pretenderia insinuar. Além disso, a analogia da 'sucessão
generacional' de direitos, do ponto de vista da evolução do direito
internacional nessa área, sequer parece historicamente correta." 5 De
qualquer forma, a divisão em categorias de direitos, mesmo quando entendida sob
o ângulo da evolução de sua implementação, cede espaço ao já afirmado conceito
de unidade e indivisibilidade dos direitos humanos, que encontram na dignidade
da pessoa humana seu ponto de convergência.
A partir dessa visão antropocêntrica dos
direitos humanos, e afirmando ser o direito ao meio ambiente saudável direito
fundamental dos seres humanos, é que pretendemos examinar, ainda que de forma
resumida, o atual estágio de sua implementação e proteção, especialmente no
âmbito da Convenção sobre Biodiversidade e do Protocolo de Cartagena sobre
Biossegurança.
II-Evolução histórica do
conceito de "direitos da humanidade"
Não há discrepâncias sensíveis
entre os doutrinadores quando atribuem ao período pós 2ª Guerra Mundial o
início do processo efetivo de proclamação e de internacionalização dos direitos
humanos. Como afirma Fábio Comparato, "após três lustros de massacres e
atrocidades de toda sorte, iniciados com o totalitarismo estatal nos anos 30, a
humanidade compreendeu, mais do que em qualquer outra época da história, o
valor supremo da dignidade humana. O sofrimento como matriz da compreensão do
mundo e dos homens, segundo a lição luminosa da sabedoria grega, veio
aprofundar a afirmação histórica dos direitos humanos.(...) Chegou-se, enfim,
ao reconhecimento de que à própria humanidade, como um todo solidário, devem
ser reconhecidos vários direitos: à preservação dos sítios e monumentos
considerados parte integrante do patrimônio mundial, à comunhão das riquezas
minerais do subsolo marinho, à preservação do equilíbrio ecológico do
planeta." 6
Igualmente marcante, no período
que se seguiu à Declaração Universal, foi a renovação de determinados
conceitos, especialmente ligados ao direito internacional, na medida em que
diversos tratados e convenções passam a apontar um novo sujeito ativo, um novo
titular de direitos no plano internacional: a humanidade. Não mais os Estados
como sujeitos típicos do direito internacional, ou mesmo os cidadãos, vis-a-vis
os Estados, mas a comunidade, o coletivo heterogêneo ou difuso, a espécie
humana. Como bem resume Paulo Bonavides, "os direitos de terceira
geração tendem a cristalizar-se nesse fim de século enquanto direitos que não
se destinam especificamente à proteção de interesses de um indivíduo, de um
grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano
mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de
existencialidade concreta." 7
Já a Carta das Nações Unidas, em
seu preâmbulo, aponta para a necessidade de se preservar as gerações futuras
contra o flagelo da guerra, e de se criarem mecanismos para a promoção do
progresso econômico e social de todos os povos. A personalização da "humanidade"
como sujeito de direitos na esfera internacional vem como principal marco
divisório da história do direito das gentes em nosso tempo.
A Convenção para a Prevenção e a
Repressão do Crime de Genocídio, aprovada em 1948, é o tratado que primeiro
incorpora e invoca o conceito de "humanidade" como sujeito de
proteção das instâncias internacionais, e cria obrigações para os Estados em
relação a esse novo sujeito, incitando-os à cooperação para erradicar tal
crime. As Convenções de Genebra, de 1949, firmam a idéia da existência de
crimes contra a humanidade, definidos anteriormente nos Estatutos do Tribunal
Militar Internacional de Nuremberg e confirmados pelas Resoluções 3(I) e 95(I),
em 1946, pela Assembléia Geral das Nações Unidas.
Portanto, irreversivelmente
incorporado ao direito internacional moderno o conceito de "humanidade"
como sujeito de direitos, através dos instrumentos específicos de proteção
relacionados com os crimes de guerra e de lesa-humanidade. A partir daí,
firma-se a idéia da existência de direitos que dizem respeito a todos os
homens, independentemente da organização estatal a que estejam vinculados, e da
necessidade de estruturar-se um sistema de supervisão, controle e implementação
desses direitos por todos os Estados e pelas organizações internacionais.
Não deixa de ser curioso lembrar
que foi a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos, aprovada
em 1981, o documento internacional de direitos humanos mais claro a elencar
direitos específicos chamados de "terceira geração", dentre
eles o direito à livre disposição das riquezas e recursos naturais (art. 21),
ao desenvolvimento (art. 22), à paz e segurança (art. 23) e à preservação de um
meio ambiente sadio (art. 24), cujos titulares são os "povos".
Já a proteção do patrimônio cultural e natural, também incluída dentre os
chamados direitos de terceira geração, vem pela primeira vez reconhecido na
Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural,
firmada em Paris em 1972, e aponta a titularidade da "humanidade".
A diversidade terminológica advém
da novidade de tratamento dado aos novos sujeitos de direito internacional, a
partir mesmo da Carta das Nações Unidas, que se refere ora às "nações",
ora aos "povos", ora à "humanidade". De
qualquer forma, como o objeto deste estudo é a aplicação do princípio da
solidariedade ou da fraternidade, dentro do contexto da evolução dos direitos
do homem, a terminologia empregada não precisa ater-se ao rigorismo conceitual.
O que importa é ressaltar a total desvinculação de tais conceitos ao
tradicional conceito de "Estado". Importa, ainda, lembrar que
a indeterminação dos sujeitos titulares desses direitos implica na
indivisibilidade do próprio objeto da proteção. Como bem salientado por Carlos
Weiss, "a indivisibilidade do objeto é evidente, pois, ainda que seja
do interesse de cada membro do grupo, categoria ou classe social a proteção do
interesse, a prestação correspondente não pode ser realizada senão tendo em
vista toda a comunidade, sem possibilidade de sua divisão em fração ou
quotas." 8
Essa constatação do
desenvolvimento de novos conceitos nas áreas de proteção aos direitos humanos
em geral, e aos direitos da humanidade em especial, leva igualmente a outras
conseqüências, bem avaliadas por Cançado Trindade, dentre as quais a "erosão
da auto-denominada jurisdição doméstica. O tratamento dado pelo estado aos seus
próprios nacionais passa a ser assunto de interesse internacional. A
conservação do meio ambiente e o controle da poluição transforma-se em assunto
de interesse internacional. Ocorre assim um processo de internacionalização de
ambos, proteção aos direitos humanos e proteção ao meio ambiente(...)."9 Assim,
prossegue o Autor, a partir da globalização da proteção aos direitos humanos e
ao meio ambiente, atesta-se o crescimento de obrigações erga omnes,
e o conseqüente declínio do instituto da reciprocidade. As obrigações em
relação aos direitos humanos de quaisquer "gerações" passam a
ser entendidas como garantias de ordem pública, o que significa uma verdadeira
revolução nos postulados do direito internacional tradicional.10 Francisco
Ortega Vicuña, em alentado artigo, sugere ainda outra grande mudança em tais
postulados: aumenta a regulação internacional de matérias de interesse
supranacional, vinculando os Estados, e leis domésticas passam a ser aplicadas
a atividades que têm impacto ou são de propriedade supranacional, levando a uma
gradual erosão da distinção dos âmbitos interno e internacionais de
jurisdição11.
Assentada a idéia da existência de direitos
comuns a toda a humanidade, cumpre-nos restringir o ângulo de nosso breve
estudo à evolução da afirmação de alguns desses direitos, em especial o direito
ao meio ambiente saudável.
III-O direito ao meio ambiente
saudável no plano internacional
Como visto anteriormente,
firmou-se no direito internacional, a partir da 2ª grande guerra, o conceito de
"humanidade", com a idéia da existência de direitos inerentes
a essa nova "pessoa" de direito internacional. Voltando a
Cançado Trindade, já agora nos reportando ao alentado trabalho publicado em
1993, especificamente sobre a proteção internacional do meio ambiente, vale a
remissão nele apontada à adoção de regras em diversos documentos
internacionais, pelas quais os Estados se obrigam nesse objetivo comum: "(...)e.g.,
preâmbulos do Tratado sobre a Proibição de Colocar Armas Nucleares e outras
Armas de Destruição em Massa nos Fundos Marinhos e Oceânicos e seu Subsolo, de
1971; da Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção e Estocagem
de Armas Bacteriológicas e à Base de Toxinas e sua Destruição, de 1972; da
Convenção sobre a Proibição do Uso de Técnicas de Modificação Ambiental para
Fins Militares ou Quaisquer Outros Fins Hostis, de 1977; da Convenção sobre a
Prevenção da Poluição Marinha por Alijamento de Resíduos e Outras Matérias, de
1972; da Convenção sobre a Prevenção da Poluição Marinha Procedente de Fontes
Terrestres, de 1974; da Convenção sobre a Prevenção da Poluição Marinha
Provocada pelo Alijamento a partir de Navios e Aeronaves, de 1972; da Convenção
da UNESCO para a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, de 1972;
está ademais implícito em referências à saúde humana em alguns tratados de
direito ambiental (e.g., a Convenção de Viena para a Proteção da Camada de
Ozônio de 1985, preâmbulo e artigo 2; o Protocolo de Montreal sobre Substâncias
que Destroem a Camada de Ozônio de 1987, preâmbulo; o artigo 1º das três
Convenções sobre poluição marinha supracitadas)." 12
Mesmo no campo do Direito
Humanitário, lembramos que o Protocolo I às Convenções de Genebra, em seu art.
35 (3), consagra norma fundamental no sentido de que não se admite o emprego de
métodos de guerra que tenham sido concebidos para causar danos extensos,
duradouros e graves ao meio ambiente; igualmente, o art. 55 prevê a proteção do
meio ambiente natural em tempo de guerra, com a proibição do emprego de métodos
que causem, ou possam causar, danos ao meio ambiente de tal monta que venham a
pôr em risco a saúde ou a sobrevivência da população.
A Declaração de Estocolmo sobre o
Meio Ambiente Humano, tirada da Conferência realizada em junho de 1972,
proclama os princípios de proteção ao meio ambiente como essenciais para o bem
estar dos homens e para o gozo dos demais direitos fundamentais. No Princípio
I, fica clara a adesão ao fundamento antropocêntrico, na medida em que se
afirma que são direitos fundamentais das pessoas a liberdade, a igualdade e o desfrute
de condições de vida adequada num meio ambiente de qualidade, que lhe permita
levar uma vida digna e com bem-estar. Pela Resolução 2997 (XXVII) da ONU, foi
instituído o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, em dezembro
daquele ano. Em 1974, a Carta das Nações Unidas sobre Direitos e Deveres
Econômicos dos Estados, em seu art. 30, afirma ser dever e responsabilidade de
todos os Estados a proteção e preservação do meio ambiente para as gerações
atuais e futuras.
Na exposição sobre a evolução dos
documentos normativos que proclamam princípios e regras sobre o meio ambiente
enquanto direito fundamental da humanidade, sucinto e explicativo é o relato de
Cançado Trindade, o qual, em tradução livre, transcrevemos: "Em 1980 a
Assembléia Geral das Nações Unidas proclamou a histórica responsabilidade dos
estados pela preservação da natureza em nome da presente e das futuras
gerações. Enquanto no passado os Estados tendiam a ver a regulamentação sobre
poluição sob diversos aspectos como assunto de interesse nacional ou local,
mais recentemente deram-se conta de que alguns problemas de meio ambiente eram
essencialmente globais em seu âmbito. Na Resolução 44/228, de 22 de dezembro de
1989, enquanto se decidia pela realização de uma Conferência sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento em 1992, a Assembléia Geral reconhecia que o caráter
global dos problemas ambientais exigia ações em todos os níveis (global,
regional e nacional), envolvendo o compromisso e participação de todas as
nações; a Resolução adiante afirmou que a proteção e a melhoria do meio
ambiente são os maiores temas que afetam o bem estar dos povos, e assinalou,
como um dos temas de maior preocupação, a proteção das condições de saúde das
pessoas e a melhoria da qualidade de vida (Parágrafo 12 (i))."13 Mais
adiante, destaca que os inúmeros instrumentos de proteção ambiental, editados a
partir da Declaração de Estocolmo, reproduziram conceitos expressos trazidos
naquela Declaração, tais como "bens comuns da humanidade", ou "interesse
comum da humanidade", dentre outros (common concern of mankind,
common good of mankind, global commons, common interest etc...).
Dez anos depois, a Assembléia
Geral das Nações Unidas aprova a Carta Mundial da Natureza, na qual se declara
que a raça humana é parte da natureza, e a vida depende do funcionamento
ininterrupto dos sistemas naturais. Assim, a preservação das espécies e dos
ecossistemas deve ser assegurada em benefício da presente e das futuras
gerações. Como ressaltado nas palavras do Professor Alexandre Kiss, que
livremente traduzimos, pelo conteúdo da Carta, o direito ao meio ambiente se vê
agora consagrado, e inclui o direito à informação - especialmente o de ser
informado das modificações do meio ambiente causadas por terceiros, o direito a
participar de decisões concernentes à matéria ambiental, e o direito aos meios
de reparações em face de procedimentos causadores de dano ao meio ambiente14.
Como resultado das reuniões do
grupo de expertos do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente - PNUMA,
além de firmar-se como conceitos inerentes ao tema do meio ambiente os
referentes ao " interesse comum da humanidade" (common
concern of mankind) , também apontou-se para novas áreas a merecer
imediatas considerações, dentre elas a proteção de áreas de especial interesse
ecológico, a proibição de certas armas de efeito de destruição massiva do meio
ambiente, e o crescimento de uma nova categoria de refugiados - os refugiados
ecológicos ou ecologically displaced persons.
Em 1992, por fim, realizou-se a
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de
Janeiro, na qual foram aprovados diversos importantes documentos, dentre os
quais a Declaração do Rio, a Agenda 21 e a Convenção sobre a Diversidade
Biológica.
IV- Considerações sobre a
responsabilidade por danos ambientais
Firmado o princípio de ser, a
proteção ao meio ambiente, direito fundamental dos seres humanos, e de caber a
todos sua proteção e, especialmente aos Estados, a implementação de regras de
caráter interno, regional e internacional que definam o âmbito dessa proteção e
as formas de reparação pelas condutas que causem da nos à pessoa ou à
humanidade, cumpre agora restringirmos nosso estudo, para circunscrevê-lo ao
problema da responsabilidade e reparação de danos, que ainda espera por uma
melhor normatização. E, para tanto, faz-se necessário antes um breve exame
sobre o regime de responsabilidade e reparação em alguns dos instrumentos
internacionais de proteção em matéria ambiental, para adiantarmos nossas
reflexões acerca do tratamento a ser dado a esse tópico no Protocolo de
Cartagena sobre Biossegurança.
É fenômeno mais presente, a partir da revolução industrial, a degradação do
meio ambiente nos âmbitos internos dos Estados e nas regiões transfronteiriças.
A própria idéia do progresso a qualquer custo, ainda que com o sacrificio do
meio ambiente saudável, só veio a ser questionada em meados do século XX,
quando, nas palavras de José Afonso da Silva, "a degradação ( do meio
ambiente) passa a ameaçar não só o bem estar, mas a qualidade de vida humana,
se não a própria sobrevivência do ser humano."15 Aliás, é na aceitação da
nova concepção de meio ambiente como direito fundamental e bem comum da
humanidade que inicia-se a mudança dos paradigmas da responsabilidade civil
subjetiva, calçada na culpa, para os da responsabilidade objetiva e da
responsabilidade solidária, mais aptas a responder prontamente frente à
ocorrência de danos.
No plano internacional, igualmente, consagra-se a responsabilidade do Estado,
decorrente não somente da ação ou omissão que tivesse praticado, mas da chamada
causalidade normativa, ao mesmo tempo em que se consagra a obrigação de reparar
o dano, independentemente da prática de um ilícito internacional. A evolução
dessas duas novas premissas sobre a responsabilidade internacional deve-se, sem
dúvida, às novas demandas de proteção do meio ambiente: " O instituto, até
meados do século XX, compreendia a regulamentação da responsabilidade por atos
proibidos pela norma internacional, portanto centrado na noção de culpa, quando
então seriam adotados em âmbito internacional os primeiros textos de convenções
e tratados internacionais sobre o tema da responsabilidade internacional dos
Estados por atos não proibidos pelo Direito Internacional, coincidentemente na
regulação do regime jurídico de atividades potencialmente danosas ao meio
ambiente (usos pacíficos da energia nuclear). A partir de então, as tímidas
tentativas da doutrina jusinternacionalista de estudar tal aspecto foram fortalecidas
pelo 'jus scriptum', tendo sido trazida para dentro do Direito Internacional a
noção de responsabilidade gerada por atos permitidos pelo direito
(responsabilidade objetiva ou por risco), criação paciente dos sistemas dos
Direitos internos dos Estados, a partir do final do século XIX." 16
Sem adentrarmos no estudo de casos decididos por juízos contenciosos ou
arbitrais, nos quais já se esboçava a definição de responsabilidade objetiva ou
por risco no plano internacional17 , vale ressaltar a normatização especial
elaborada a partir da década de 60, na qual tal princípio vem regulamentar
situações futuras e estabelecer, assim, como princípio de direito internacional
ambiental, tal regime de responsabilidade. Para tanto, destaca-se a Convenção
sobre Responsabilidade Civil contra Terceiros no Campo da Energia Nuclear,
chamada Convenção de Paris, de 1960; a Convenção de Viena sobre
Responsabilidade Civil por Danos Nucleares, de 1963; a Convenção Internacional
sobre Responsabilidade Civil por Danos Causados por Poluição por Óleo, assinada
em Bruxelas em 1969; a Convenção sobre Responsabilidade Civil por Dano
Decorrente de Poluição por Óleo, Resultante de Exploração e Explotação de
Recursos Minerais do Subsolo Marinho, de 1977; a Convenção sobre Responsabilidade
Internacional por Danos Causados por Objetos Espaciais, de 1972; dentre outras,
de caráter regional ou global.
Por outro lado, na Declaração de Estocolmo sobre Meio Ambiente Humano
assenta-se o princípio, tirado da decisão do Caso da Fundição Trail, segundo o
qual "De conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios de
direito internacional, os Estados têm o direito soberano de explorar seus
próprios recursos na consecução de sua própria política ambiental, e a
obrigação de assegurar-se de que as atividades que levem a cabo dentro de sua
jurisdição ou sob seu controle não prejudiquem ao meio ambiente de outros
Estados ou de zonas situadas fora de sua jurisdição nacional" (Princípio
21), e, ainda, que "Os Estados devem cooperar para continuar desenvolvendo
o direito internacional no que se refere à responsabilidade e à indenização das
vítimas de contaminação ou outros danos ambientais que as atividades realizadas
dentro da jurisdição ou sob controle de tais Estados causem a zonas situadas
fora de suas jurisdições" (Princípio 22 ).
A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, também
assenta em seu Princípio 2 - igualmente extraído da decisão arbitral do Trail
Smelter, que " Os Estados, de conformidade com a Carta das Nações Unidas e
com os princípios do Direito Internacional, têm o direito soberano de explorar
os seus próprios recursos segundo suas próprias políticas de meio ambiente e
desenvolvimento, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua
jurisdição ou controle não causem danos ao meio ambiente de outros Estados ou
de áreas além dos limites da jurisdição nacional" e, no Princípio 13, que
"Os Estados devem desenvolver legislação nacional relativa à
responsabilidade e indenização das vítimas de poluição ou outros danos
ambientais. Os Estados devem ainda cooperar de forma expedita e determinada
para o desenvolvimento de normas de direito internacional ambiental relativas à
responsabilidade e indenização por efeitos adversos de danos ambientais
causados em áreas fora de suas jurisdição, por atividades dentro de sua
jurisdição ou sob seu controle".
Pelo seu especial interesse ao objeto deste estudo, vale extrair algumas das
disposições da Convenção de Paris sobre responsabilidade por danos nucleares.
Este instrumento normativo internacional consagra o princípio da
responsabilidade por danos causados em razão de atividades lícitas e legítimas,
não proibidas pelo Direito Internacional, mas perigosas por envolverem riscos
inerentes às atividades (ultra-hazardous activities). Estabelece um sistema de
responsabilidade objetiva, que independe da prova de culpa, apontando
aprioristicamente para o responsável pelo ato danoso (strict liability),
prevendo algumas causas de exoneração em casos tais como conflito armado, catástrofes
naturais etc. Fixa ainda o foro competente para conhecer do pedido de reparação
ou indenização. Tal regra, aliada à da canalização de responsabilidade, bem
demonstra o objetivo de priorizar o direito das vítimas à reparação,
exonerando-as de buscar provas da culpa, apontar o sujeito passivo da
obrigação, ou enveredar-se por intermináveis disputas judiciais para
determinação do juízo competente para a demanda.
Da mesma forma, as convenções sobre responsabilidade por danos causados em
virtude de transporte de óleo por mar, em especial as convenções de Viena, de
1963, e de Bruxelas, de 1969, estabelecem a responsabilidade objetiva,
canalizada na pessoa do proprietário do navio, exonerável apenas diante de
prova de culpa exclusiva da vítima ou de causas excepcionais, como as
mencionadas em relação ao texto anterior.
Por fim, cabe a referência à Convenção sobre
Responsabilidade por Danos Causados por Objetos Espaciais, de 1972, que, ao
lado de conter os mesmos princípios das Convenções antes citadas, merece destaque
pelo fato de consagrar o regime de responsabilidade objetiva absoluta (absolut
liability ) do Estado lançador, já que não prevê causas de exoneração de
responsabilidade, sequer excepcionais. Também inova ao consagrar a
responsabilidade primária do Estado, diversamente das demais, onde se prevê a
responsabilidade ora solidária, ora subsidiária.
Embora de caráter regional, a Convenção de Lugano, de 1993, específica na
previsão de responsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente, será
melhor examinada no capítulo seguinte.
Vê-se, em conclusão a essa breve
remissão à normativa internacional vigente, que em matéria de responsabilidade
internacional dos Estados por danos causados ao meio ambiente, e que
transponham suas fronteiras, assentaram-se os princípios segundo os quais 1) a
responsabilidade decorre de violações a normas de direito internacional ou da
causação de danos decorrentes de condutas permitidas; não se exige, assim,
prova de culpa como requisito para afirmação da responsabilidade, que só pode
ser excluída se comprovadas circunstâncias excepcionais expressamente previstas
- em geral, a força maior, guerra etc. 2) os Estados e os demais sujeitos têm o
dever de prevenir danos transfronteiriços ao meio ambiente, e de reparar os
danos que ocorrerem; a causalidade é normativa, bem como é canalizada
exclusivamente a um dos atores envolvidos na ação danosa; a responsabilidade é
limitada no que tange à compensação; 3) os Estados têm a obrigação de
regulamentar as formas de prevenção, cooperação e reparação de danos causados
ao meio ambiente de outros Estados.
V- O regime de responsabilidade na Convenção sobre Biodiversidade e no
Protocolo de Cartagena
Como adiantamos no início deste estudo, a Convenção sobre Biodiversidade,
adotada na ECO/92, deixou a tarefa de definição de responsabilidades e de
formas de reparação à Conferência dos Estados Partes. Para tal fim, a UNEP
elaborou um documento de trabalho18 , no qual inicia por reafirmar o princípio
segundo o qual os Estados têm, no âmbito do Direito Internacional, a obrigação
de precaver-se contra danos causados, a partir de atividades desenvolvidas em
seus territórios ou sob seu controle, em relação a outros Estados. Tal
obrigação, é bom que se enfatize, vem reconhecida na Declaração de Estocolmo e
na Declaração do Rio. Ao dever de precaução corresponde, por ilação lógica, o
dever de reparação em caso de ocorrência de dano.
A Convenção de Lugano sobre Responsabilidade Civil por Danos Causados por
Atividades Perigosas ao Meio Ambiente é, sem dúvida - e isso o diz o documento
acima mencionado - o mais elaborado tratado sobre responsabilidade e reparação
por danos ambientais até agora existente, lidando especialmente com as
conseqüências de danos transfronteiriços, tais como os meios de prevenção, compensação
e reparação. Dentre as atividades tidas por perigosas ao meio ambiente, destaca
a produção, estocagem, uso, disposição ou liberação de organismos geneticamente
modificados, a operação de instalações destinadas aos resíduos de substâncias
perigosas, e a própria produção e uso dessas substâncias. Para a Convenção,
estão sob proteção as pessoas, a propriedade ou o próprio meio ambiente. No
conceito de "dano" reparável, inclui-se não só o dano propriamente
dito, mas também a perda ou prejuízo causado, e as medidas preventivas para
minimizar o dano e restaurar o objeto.
A responsabilidade é canalizada ao operador da atividade danosa. No entanto, é
ele exonerado caso comprove que os danos foram conseqüência de ordens
específicas de normas ou de autoridades públicas, ou, ainda, que os níveis de
poluição não ultrapassaram os níveis toleráveis face às circunstâncias, ou, por
fim, que a atividade perigosa foi executada na forma legal, em benefício da
própria parte que sofreu o dano.
Como magistralmente salientado pelo Professor Guido Soares, na obra já tantas
vezes citada, a Convenção de Lugano declara suas finalidades preservacionista e
ambientalista, expressas já em seu preâmbulo, desde o reconhecimento da
existência de perigos causados por certas atividades às quais estão expostos os
seres humanos, as propriedades e o meio ambiente, até a necessidade de que
sejam adotadas medidas adicionais para o trato das graves e iminentes ameaças
de danos resultantes de atividades perigosas, facilitando-se o ônus da prova a
pessoas que busquem compensação pelos danos sofridos. Mais que isso, consagra a
Convenção o "direito à informação", assentando o princípio da
transparência inerente ao Direito Internacional do meio ambiente, permitindo um
maior controle dos processos decisórios das autoridades e das empresas19.
Inova, ainda, na temática relativa à causalidade, tida por muitos como a
'pedra-de-toque' da questão ambiental, já que nem sempre as tradicionais
teorias da causalidade se amoldam às hipóteses de danos transfronteiriços ao
meio ambiente. Na Convenção de Lugano, ao lado da canalização de
responsabilidade prevista em outros instrumentos mencionados, prevê-se a
responsabilidade por danos continuados ou continuativos, ou seja, a
responsabilidade decorre não só de "incidentes" causadores de danos,
mas de toda a série de ocorrências que, procrastinadas no tempo, continuem a
ocorrer (art.10). Logo, a responsabilidade não se esgota no enfrentamento do
binômio poluidor-pagador. Além de consagrar o princípio da solidariedade para
as hipóteses de danos oriundos de várias atividades concomitantes e
interrelacionadas causadoras de danos (conhecido no direito norte-americano
como market share), contempla o princípio da precaução, na medida em que essa
responsabilidade não se esgota no ressarcimento do dano ocorrido, deixando em
aberto a responsabilidade futura em face da continuidade da atividade ou dos
seus efeitos supervenientes. Ressalta, assim, a Convenção o conteúdo ético do
princípio da precaução, na medida em que o pagamento de compensações e
indenizações não mais funciona como um salvo conduto para continuar-se a
poluir.
Ora chegando ao final de nosso brevíssimo estudo, cumpre tirar, do que até aqui
foi visto, o modelo a ser buscado para a Convenção sobre Biodiversidade e o
Protocolo de Cartagena, no que diz com a responsabilidade e reparação por
ameaças ou danos à biodiversidade e à biossegurança.
Dentro do pressuposto normativo da responsabilidade objetiva ou por risco, não
há lugar, como visto, para a perquirição de culpa, exceto para fins de
exoneração parcial da responsabilidade. Ressalta, assim, que a relação de
causalidade entre a ação ou omissão estabelece-se exclusivamente sobre a
constatação da existência de dano. Desde já, teríamos por oportuna a distinção
- de resto comum no direito penal - entre condutas abstratamente perigosas e
concretamente perigosas. A discussão não é despicienda, na medida em que a
responsabilidade por danos deve ser, a nosso ver, fixada de acordo com o grau
de risco envolvido em tal ou qual atividade.
Especificamente no que diz com a biodiversidade, o Grupo de Trabalho instalado
para discutir propostas de regulação de responsabilidades no âmbito do
Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança já apontava para o fato de que a
biotecnologia vem sendo utilizada, especialmente na agricultura, há séculos,
como no transplante de sementes nativas de determinadas regiões para outras,
sem que o problema da biossegurança tivesse despertado maiores atenções. De
qualquer forma, reconhece-se que a avaliação dos efeitos no ecossistema
geralmente só é possível após longo período de tempo, e que hão de ser
consideradas as influências de outros fatores envolvidos. O Doutor Ervin
Balasz, relator do primeiro Grupo de Trabalho, reconhece alguns riscos
potenciais que podem ser causados pelas técnicas de modificação genética de
organismos vivos, mas afirma a incerteza dessas consequências diante do atual
estágio da ciência. Conclui ser muito cedo para avaliar se tais técnicas podem
causar impactos no meio ambiente ou na saúde das pessoas, mas também ser
impossível afirmar, categoricamente, que tais impactos não venham a ocorrer.
Assim, deve-se ter em conta o princípio da precaução. O Grupo, ainda, conclui
ser adequada a consideração das atividades envolvendo modificação genética de
organismos nos moldes das previstas na Convenção de Lugano, ou seja, como
atividades perigosas 20.
Esse, aliás, é o comando que vem previsto no próprio Preâmbulo da Convenção
sobre Biodiversidade, quando observa que não se deve alegar a falta de provas
científicas inequívocas como razão para desprezar-se medidas destinadas a
evitar ou reduzir ao mínimo a ameaça de dano.
Portanto, não seria impertinente, no atual estágio das pesquisas científicas,
considerar a modificação genética de organismos vivos como atividade de perigo
abstrato. Por ser abstrato, é, por paradoxal que possa parecer, mais gravoso,
na medida em que as conseqüências de tais atividades são desconhecidas e podem
só aparecer no mundo factual dentro de muitas décadas. O "perigo abstrato"
traduz-se numa possibilidade efetiva de ocorrência de dano, cujos efeitos podem
ser até mais perversos do que aqueles decorrentes de atividades nas quais já se
aponta para a probabilidade de ocorrência de dano, a justificar formas mais
detalhadas de tratamento da responsabilidade, exoneração e reparação - como, a
exemplo, o perigo concreto de dano decorrente dos acidentes com objetos
espaciais, ou dos incidentes causadores de derramamento de óleo nos oceanos.
Nessa perspectiva, a responsabilidade objetiva, no caso da Convenção sobre
Biodiversidade e no Protocolo de Cartagena, deve vir expressamente prevista, e,
por envolver maiores riscos - na medida em que suas consequências são
imprevistas e, portanto, imensuráveis - devem ser mais restritas as hipóteses
de exoneração.
Anota-se, ainda, que não se pode cogitar das hipóteses tradicionais de
exoneração, como a culpa exclusiva da vítima, a guerra, ou catástrofes naturais
de espectro excepcional, ao menos no que diz com os efeitos do uso, depósito,
manipulação, transporte ou descarga de organismos geneticamente modificados.
Trata-se, no caso, de atividade de alto risco pelo desconhecimento de seus
possíveis efeitos adversos na saúde humana, na propriedade e no meio ambiente.
De destacar-se, ainda, que nas condutas que causam efeitos diferidos no tempo
há a natural dificuldade de delimitar-se o nexo causal, que fica assim
disperso. Portanto, não há falar-se em vítimas identificáveis, mas em efeitos
difusos que podem atingir toda a humanidade a longo prazo. Aliás, a doutrina
internacional vem se utilizando, recorrentemente, à expressão "vítimas
potenciais", nos casos de ameaças de danos à humanidade. Dentro desse
quadro, além da previsão da responsabilidade objetiva ou por risco, enquanto
não superadas gradativamente essas incertezas, a adoção de soluções normativas
atípicas se justifica, sempre tendo em mente o destinatário do regime de
responsabilidade e reparação: a humanidade - afora, se o caso, as vítimas
imediatas e identificáveis.
Tendo também em vista a possibilidade de efeitos danosos erga omnes, ou ao meio
ambiente saudável - direito não só das presentes, mas das futuras gerações -
cumpre canalizar a responsabilidade, de forma solidária, nas pessoas do Estado,
que tem, afinal, o poder-dever de fiscalizar as atividades perigosas praticadas
no território de sua jurisdição, e dos agentes diretos ou solidários em razão
da identidade de atividades, facilitando assim às vítimas imediatas do dano,
aos organismos internacionais ou às entidades de proteção reconhecidas pelos
ordenamentos internos, provocar o procedimento de responsabilização e
reparação. Assegura-se ao Estado, caso seja o acionado, o poder-dever de
regresso contra os agentes identificáveis do evento danoso.
Em resumo, propugna-se pelo estabelecimento de um regime de absolut liability
do Estado que autoriza, permite e fiscaliza, nos termos do art.14 da Convenção
sobre Biodiversidade, e do art. 25 do Protocolo de Cartagena, a execução de
atividades de manipulação genética, uso, transporte, depósito ou descarga de
organismos geneticamente modificados, em regime de solidariedade com o causador
do dano, ao contrário da responsabilidade subsidiária ou supletiva prevista em
outras Convenções.
Por fim, temos por oportuna a criação de um Fundo, ao lado dos Fundos de
financiamento já previstos em outras Convenções, para financiamento das
reparações e indenizações, e à semelhança dos Fundos já existentes nas
legislações de alguns Estados (no Brasil, o Fundo Nacional do Meio Ambiente),
destinado a gerir indenizações pagas por danos difusos e auxiliar na
manutenção, melhoria ou recuperação das pessoas e propriedades atingidas pelos
danos, bem como ao meio ambiente degradado ou ameaçado de degradação.
Poderíamos ainda discorrer sobre as diversas hipóteses de reparação, bem como
sobre a criação e participação de outros mecanismos de financiamento e seguros
em favor dos agentes de atividades perigosas. No entanto, optamos, por ora, em
restringir o exame do tema à forma de imputação da responsabilidade e reparação,
reconhecidamente o mais polêmico e urgente, por envolver interesses econômicos
de um lado, ecológicos de outro, entre países com diferentes graus de progresso
científico e de patrimônio biológico explorável, e, principalmente, em
diferentes estágios de amadurecimento em relação as suas responsabilidades
perante a comunidade internacional.
VI- Conclusões
O direito ao meio ambiente saudável é direito fundamental da humanidade, e os
mecanismos de sua proteção se inserem no já consagrado contexto do common mankind
concern.
Vale aqui a referência ao fato de, mais recentemente, o Estatuto do Tribunal
Penal Internacional, aprovado pela Conferência de Roma em 1998, prever como
crimes de guerra a conduta de lançar ataques intencionais com ciência de que
causarão, entre outros, danos extensos, duradouros e graves ao meio ambiente
natural, desproporcionais em relação às vantagens militares concretas e diretas
que seriam obtidas (art.8º, “b” IV ).
Por outro lado, a proteção da biodiversidade em si mesma, e em razão das
conseqüências da manipulação, guarda, uso, depósito e descarga de organismos
geneticamente modificados, exsurge como dever dos Estados e de toda a
comunidade internacional, por traduzir direito das presentes e futuras
gerações. Trata-se de condutas de risco, cujos efeitos ainda não puderam ser
mensurados e, por isso mesmo, a exigir maior controle e rigorosos mecanismos de
responsabilização.
Por tudo quanto foi aqui referido, de forma bas tante resumida, a conclusão não
poderia ser outra que não a de enfático reconhecimento da responsabilidade dos
Estados no âmbito da Convenção da Biodiversidade e do Protocolo de Cartagena,
enquanto atores a quem as próprias Convenções atribuem a obrigação de adotar
medidas a fim de impedir que atividades realizadas sob sua jurisdição atinjam
pessoas, bens ou o meio ambiente de outros Estados. Também necessário o
reconhecimento da responsabilidade solidária dos agentes envolvidos na
atividade perigosa, ainda que essa atividade seja considerada lícita pelas
ordens jurídicas internas e internacional.
Tal responsabilidade não decorre de culpa, na hipótese tradicional do error in
vigilando, mas da imputação de culpa objetiva decorrente do princípio do risco,
em face da prática de atividades de risco possível ou provável, construído a
partir da jurisprudência internacional e positivado nos mais modernos
instrumentos internacionais de proteção aos direitos da humanidade.
Na esteira dos demais documentos internacionais de proteção a direitos
fundamentais, entre os quais o direito ao meio ambiente saudável se inclui, a
Convenção sobre Biodiversidade e o Protocolo de Cartagena devem prever, assim,
o regime de responsabilidade objetiva e absoluta dos Estados, solidariamente à
dos agentes causadores do dano, a fim de proporcionar à vítima um acesso mais
fácil à reparação, dispensando-a do ônus da prova de culpa, da individualização
do agente causador do dano, e flexibilizando - até mesmo invertendo - a prova
do nexo causal.
Por fim, a previsão de um fundo internacional para satisfação pronta das
obrigações de prevenção, reparação, compensação e indenização, e a exigência de
um sistema adequado e eficiente de seguros, darão mais eficácia às medidas às
quais os Estados e os particulares se obrigaram ao tornarem-se partes nos
referidos instrumentos internacionais.
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2
CANÇADO TRINDADE, Antonio A., e ATTARD, D.J., Report os the Meeting of the UNEP
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3 BOBBIO, Norberto, A Era dos
Direitos, Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 5.
4 idem pp.6/7.
5 CANÇADO TRINDADE, Antonio A., A Proteção Internacional dos Direitos Humanos.
São Paulo: Saraiva, 1991, p. 41.
6 COMPARATO, Fabio Konder, A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São
Paulo: Saraiva, 2001, pp.54/55.
7 BONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros
Editores, 1998, p.523.
8 WEISS, Carlos, Direitos Humanos Contemporâneos. São Paulo:
Malheiros Editores, 1999, p.129.
9
CANÇADO TRINDADE, Antonio A., The contribution of international human rights
law to environmental protection, with special reference to global environmental
change, in Environmental Change and International Law. Edith Brown Weiss ed,
United Nations University Press, Tokio, p. 245.
10 idem, p.250.
11 ORTEGA VICUÑA, Francisco, Changing Perspectives of International Law in
Areas of Global Concern: the oceans, Antarctica and the Environment, in O
Direito Internacional no Terceiro Milênio. BAPTISTA, Luiz Olavo, e FONSECA, Roberto Franco da Fonseca (coord.). São
Paulo: LTr, 1998, pp.903/904.
12 CANÇADO TRINDADE, Antonio A., Direitos Humanos e Meio-Ambiente- Paralelo dos
Sistemas de Proteção Internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
1993, p.46.
13
The contribution ..., cit., pp.248/9.
14 KISS, Alexandre, Sustainable Development and Human Rights, in Human Rights,
Sustainable Development and Environment. WEISS, Edith Brown et alii ( org). IIDH/BID.
San José de Costa Rica, 1995, p.35.
15 SILVA, José Afonso da, Direito
Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p.28.
16 SOARES, Guido Fernando da Silva, Direito Internacional...., cit.,
pp.712/713.
17 Sobre o tema, vale a leitura do leading case em matéria de responsabilidade
internacional por dano ao meio ambiente, o Caso da Fundição Trail ( Trail
Smelter), decidido em 1941 por sentença arbitral. Da citada obra do Prof. Guido
Fernando da Silva Soares extrai-se a referência bibliográfica: Kiss, Alexandre,
Droit International de l'environnement, Paris: Pedonne, 1989, pp.73-76, e Ramos
Pereira, Luis Cesar, Ensaios sobre a responsabilidade internacional do estado e
suas consequências no direito internacional, São Paulo: LTr, 2000, Anexo V, pp.
442-459.
18
Workshop on Liability and Redress in the Context of the Convention on
Biological Diversity. UNEP/CBD/WS-L&R/2
. 15 May 2001.
19 SOARES, Guido Fernando da Silva, Direito Internacional......., cit.,
pp.824/825.
20
European Comission, U.K. Department of the Environment, Transport and the
Regions , Workshop on Liability and Redress Issues Arising in Relation to the
Draft Biosafety Protocol, London, 30 June-2 July 1998.
* Desembargadora Federal em São Paulo. Mestre
e Doutoranda em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade
de S. Paulo. Membro da Diretoria do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
Disponível em: <http://www.mt.trf1.gov.br/judice/jud10/direito_ambiente.htm>.
Acesso em 19 abr. 05.