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A aplicação das
normas do MERCOSUL pelo juiz nacional
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Procurador Autárquico do
INSS no RS
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Introdução
Característica
marcante do mundo globalizado é o surgimento de organizações
intergovernamentais, com atribuições de todas as espécies no sentido de
implementar o processo de integração de mercados. Entre nós esta realidade não
se altera, tendo sido constituído, desde a celebração do Tratado de Assunção,
em março de 1991, o Mercado Comum do Sul1.
A partir
daí, desencadeou-se o processo de negociações multilaterais a respeito dos mais
variados temas de interesse das partes integrantes. Para tanto, protocolos
foram assinados, disciplinando questões específicas e estabelecendo o que se
pode chamar de arcabouço normativo do Mercosul. São esses protocolos, regras
abstratas de integração, que pretendem regulamentar as futuras situações
concretas de interesse das comunidades envolvidas.
2.
Incorporação dos Atos Internacionais
Questão
importante, e que já tem apresentado alguns incidentes diplomáticos entre os
Estados-membros, é a que diz respeito à aplicação destas normas no território
de cada nação participante. Em outras palavras, a incorporação dessas normas ao
ordenamento jurídico doméstico de cada país.
E esses
problemas decorrem, principalmente, da confusão que se tem feito a respeito da
natureza jurídica de tais regramentos. Esquecem-se muitos que, até o presente
momento, o Mercosul não se constitui como um organismo supranacional; suas
deliberações não gozam de soberania e não têm, por isso, natureza de direito
comunitário2. Os
protocolos são típicas normas de direito internacional público, reclamando, por
isso, um processo de recepção no ordenamento jurídico interno de cada
Estado-membro3.
Nesse
horizonte, duas são as correntes que procuram situar a matéria e que têm
gerado, há séculos, divergências intermináveis. A problemática dos tratados
internacionais frente ao direito positivo dos países que o firmaram é antiga e
rendeu ponderados argumentos de ambas os lados. De um lado, a teoria monista
preconizada por Kelsen, que sustenta produzir a ratificação dos tratados
efeitos concomitantes na esfera internacional e interna. De outro, a teoria
dualista de Triepel, que proclama a coexistência de duas ordens independentes,
uma nacional e outra internacional, que reclama um processo de recepção para
ter trânsito e aplicabilidade naquela.
No Brasil,
desde o julgamento do RE 71.154-PR, tem-se sustentado a prevalência da teoria
dualista. Restou consignado no voto condutor do relator, Ministro Oswaldo
Trigueiro, que: "Lei Uniforme sobre
o Cheque, adotada pela Convenção de Genebra. Aprovada essa Convenção pelo
Congresso Nacional, e regularmente
promulgada, suas normas têm aplicação imediata, inclusive naquilo em
que modificarem a legislação interna..." (RTJ 58/70 - sem os grifos no
original). Posteriormente, no RE n. 80.004-SE4, a questão foi novamente apreciada, sedimentando-se a
jurisprudência nesse sentido.
Nos judicial cases, embora num contexto
mundial superado pelo transcurso dos anos, o Supremo Tribunal Federal firmou
lições que até os dias atuais se mostram modernas sobre a matéria. O Ministro
Cunha Peixoto sustentou, com base em Amilcar de Castro, a impossibilidade de se
confundir o tratado com uma lei ordinária. Segundo ele, "tratado não é lei; é ato internacional, que obriga o povo
considerado em bloco; que obriga o governo na ordem externa e não o povo na
ordem interna. (...) O tratado explana relações entre governantes (horizontais,
sendo as pessoas coordenadas), enquanto que a lei e o decreto explicam relações
do governo com seus súditos (verticais, entre subordinante e subordinados). Por
conseguinte, as regras de direito internacional privado contidas em tratado
normativo, para se converterem em direito nacional e serem, então, obedecidas
pelo povo e pelos tribunais, devem ser postas em vigor por uma ordem de
execução"5.
Embora o
mundo tenha se transformado, com a união das nações em blocos e mercados,
poucos são os países que se desvencilharam da teoria dualista, abrindo mão de
sua soberania legislativa6. Dos quatro
membros do Mercosul, até a presente data, nenhum confere caráter self-executing aos protocolos e tratados7.
No Brasil,
a executoriedade das normas do Mercosul é condicionada. Depende de um ato
subjetivamente complexo, resultante da conjugação de vontades do Parlamento e
do Chefe do Poder Executivo. Ao Presidente da República incumbe celebrar os
atos internacionais (art. 84, VIII, da CF/88), ao passo que o Congresso tem a
competência exclusiva para resolver, definitivamente, sobre os mesmos (art. 49,
I, da CF/88)8. A
integração no acervo normativo, contudo, prescinde ainda da promulgação, que é
o ato que confere publicidade à norma, mediante decreto do Poder Executivo9.
3. Hierarquia Normativa dos Atos
Incorporados;
Superada
esta análise do procedimento de integração das normas do Mercosul ao sistema
jurídico nacional, impõe-se, agora, perquerir a respeito de sua hierarquia na
pirâmide kelseniana.
Entre nós,
este debate se travou no Excelso Pretório, entre setembro/75 e junho/77, quando
do julgamento do RE n. 80.004-SE. Discutia-se, na ocasião, a validade do
Decreto-lei n. 427/6910 diante da
Convenção de Genebra - Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias.
Na
oportunidade, a maioria dos membros do STF11 concluiu pela paridade normativa entre atos internacionais
e leis internas brasileiras e, por consequência, concluiram que a regra
internacional é revogada pela lei nacional que lhe seja posterior12. Essa orientação vem sendo prestigiada na Suprema Corte
até os dias atuais, tendo sido adotada no despacho proferido na ADIn n.
1480-3-DF e também na Carta Rogatória n. 8.279-4 da República da Argentina13.
Como
esclarece o Ministro Celso Mello, "a
eventual precedência dos atos internacionais sobre as normas
infraconstitucionais de direito interno somente ocorrerá - presente o contexto
de eventual situação de antinomia com o ordenamento doméstico -, não em virtude
de uma inexistente primazia hierárquica, mas, sempre, em face da aplicação do
critério cronológico (lex posterior derrogat priori) ou, quando cabível, do
critério da especialidade (RTJ 70/333 - RTJ 100/1030 0 RT 554/434)"14.
É
importante anotar, todavia, alguns casos especiais. A legislação tributária,
por exemplo, recebe tratamento diverso, em virtude de previsão específica.
Nesse âmbito, dispõe o art. 98 do CTN que: "Os
tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação
tributária interna, e serão observados pela que lhe sobrevenha". É
flagrante a impropriedade terminológica na disposição legal. Na verdade um
tratado internacional não revoga nem modifica a legislação interna, até mesmo
porque se for denunciado a lei interna com ele incompatível estará
restabelecida. O que o CTN pretende dizer é que os tratados e convenções
internacionais prevalecem sobre a legislação interna, seja anterior ou
posterior a ela15.
Por fim,
cumpre fazer menção à regra estabelecida no parágrafo 2º do art. 5º da Carta
Constitucional de 1988, que estabelece: "os
direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".
Para nós, essa disposição confere status
de mandamento constitucional às normas internacionais que estabelecerem outros
direitos fundamentais que não aqueles previstos expressamente em nossa Lei
Maior. Assim, incorporados tais direitos fundamentais ao regramento doméstico
brasileiro, tornar-se-ão cláusulas pétreas insuprimíveis e irrevogáveis (art.
60, §4º, da Carta da República de 1988).
4. Conclusões.
Ponderados
os argumentos aqui expendidos, podemos concluir que:
1) na atual conjuntura do Mercosul, suas normas não
possuem o atributo da auto-executoriedade, dependendo de um processo de
internalização nas legislações domésticas de cada Estado-membro;
2) integradas ao ordenamento jurídico nacional, as
normas do Mercosul encontram-se em paridade normativa com as leis ordinárias
brasileiras, ressalvados os casos específicos da legislação tributária e dos
direitos fundamentais;
3) a tendência mundial, espelhada na Comunidade
Econômica Européia, é a superação das barreiras e o abandono da absoluta
soberania legislativa nacional, com surgimento do direito comunitário,
sustentado em normas self-executing
pelos Estados-componentes, dispensado, portanto, o processo integrador das
normas internacionais.
O Mercosul
somente se transformará no pretendido mercado comum depois de efetuadas as
necessárias e imprescindíveis reformas constitucionais e alterações estruturais
nos quatro países membros, o que possibilitará a vigência de um direito comum
entre as partes.
Notas
1. O Mercosul é um organismo
internacional composto pelo Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai que visa a
integração destas nações com vistas à constituição de um mercado comum que
possibilite o livre fluxo de pessoas, bens, seviços e capitais. Todavia, até o
presente momento pode-se afirmar que não passa de uma união aduaneira precária,
pois o que temos é apenas a liberação ou a redução da tarifação alfandegária
(impostos de exportação e importação) de algumas mercadorias comercializadas
entre os países componentes.
2. As normas de direito
comunitário são aqueles produzidas por órgãos supranacionais, nos quais os
agentes tem representação distinta de seus Estados de origem, exercendo
competência antes restritas aos Estados soberanos. Por isso, são
auto-aplicáveis nos ordenamentos jurídicos internos, sem qualquer obstáculo à
sua executoriedade.
3. "A questão da executoriedade dos tratados internacionais no âmbito
do direito interno - analisado esse tema na perspectiva do sistema
constitucional brasileiro - supõe a prévia incorporação desses atos de direito
internacional público ao plano da ordem normativa doméstica" (Ministro
Celso Mello, ADIn 1480-3-DF, DJU I, 2.8.96, pp. 25.792 a 25.795);
4. Ver a íntegra do acórdão na
RTJ 83/809-848;
5. Voto proferido no RE
80.004-SE, in RTJ 83/518;
6. Os países da europa,
integrantes da CEE, são o exemplo marcante. Mas isso se deve a natureza
supranacional atribuída do mercado, do direito comunitário dele emanado e da
avançada cultura que permite a sobrevivência do novel modelo sem um poder de
coação sobre os Estados-membros. Pode-se dizer que o direito comunitário
convive em harmonia com as ordens internas de cada nação, numa relação de
dependência mútua.
Portugal, por exemplo, admite
a recepção automática das normas internacionais (Constituição, art. 8º) e,
inclusive, a superioridade hierárquica das normas da CEE sobre a legislação interna
(cf. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
Almedina, 1998, pp. 725/727). Aliás, o sistema português admite,
excepcionalmente, a incidência de normas formalmente inconstitucionais
constantes de tratados internacionais (Constituição, art. 277, n. 2)
A Alemanha também consagra o
princípio da recepção automática, nos arts. 24 e 25 da Grundgesetz. O art. 11 da Constituição italiana preceitua que a
Itália "consente, em condições de reciprocidade com outros Estados, nas limitações
de soberania necessárias a uma ordem, asseguradora da paz e da justiça entre as
nações".
Enfim, o direito comunitário
da Comunidade Econômica Européia constitui-se de normas self-executing, isto é, de normas que tem recepção e aplicação
direta nos países membros.
7. A Argentina adota
procedimento de aprovação congressual aos tratados internacionais (art. 75,
inciso 22, de sua Constituição). No Uruguai, compete a Assembléia Geral
(Congresso) aprovar e reprovar, por maioria absoluta, os tratados celebrados
pelo Poder Executivo (art. 85, 7º c/c art. 168, n. 20, da Constituição de
1967). Aliás, a soberania legislativa uruguaia ganhou ênfase no art. 4º de sua
Constituição, verbis: "La soberanía
en toda su plenitud existe radicalmente en la Nación, a la que compete el
derecho exclusivo de estabelecer sus leyes, del modo que más adelante se
expresará";
8. "... No direito brasileiro, dá a Constituição Federal competência
privativa ao Presidente da República, para celebrar tratados e convenções internacionais
ad referendum do Congresso Nacional (...). Por outro lado, tem o Congresso
Nacional competência exclusiva para resolver definitivamente sobre tratados e
convenções celebrados com os Estados estrangeiros pelo Presidente da República
(...).
Assim, celebrado o tratado ou convenção por representante do Poder
Executivo, aprovado pelo Congresso Nacional e promulgado pelo Presidente da
República, com a publicação do texto, em português no órgão de imprensa
oficial, tem-se como integrada a norma da convenção internacional no direito
interno" (Revista de
Jurisprudência do TJ-RS, Vol. 4/193);
9. A falta de publicação do
Decreto Legislativo n. 192/95 (Protocolo de Medidas Cautelares de Ouro
Preto-MG) levou o STF, por unanimidade, a negar o exequatur a carta rogatória
expedida pela Justiça da República da Argentina mediante a qual se pretendia,
com fundamento no Protocolo de Medidas Cautelares adotado pelo MERCOSUL, o
seqüestro de mercadorias a bordo de navio atracado em Belém-PA, bem como o
arresto do próprio navio (Carta Rogatória n. 8.279 - Informativo STF n. 109);
Conforme Francisco Rezek, "O ordenamento jurídico, nesta
República, é integralmente ostensivo. Tudo quanto o compõe - resulte de
produção legislativa internacional ou doméstica - presume publicidade oficial e
vestibular. Um tratado regularmente concluído depende dessa publicidade para
integrar o acervo normativo nacional, habilitando-se ao cumprimento por
particulares e governantes, e à garantia de vigência pelo Judiciário" ("Direito
dos Tratados", Forense, 1984, p. 384);
10. Esta regra instituiu o
registro obrigatório da Nota Promissória em Repartição Fazendária, sob pena de
nulidade do título cambiário;
11. Restou vencido o saudoso
Ministro Xavier de Albuquerque, relator, que com o brilhantismo de costume,
sustentava sua tese em dois argumentos: a) a supremacia dos tratados em relação
à legislação interna, com base no art. 98 do CTN; e b) a necessidade de honrar
e respeitar as convenções internacionais, o que retiraria o direito dos países
signatários de estabelecerem outras restrituções aos títulos cambiais que não
aquelas previstas na Lei Uniforme de Genebra.
12. Aplicação do critério
cronológico - lex posterior derogat
priori;
13. "Cumpre assinalar, finalmente,
que os atos internacionais, uma vez
regularmente incorporados ao direito interno, situam-se no mesmo plano de validade e eficácia das
normas infraconstitucionais. Essa
visão do tema foi prestigiada em
decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 80.004-SE (RTJ 83/809, Rel. p/ o acórdão Min. CUNHA PEIXOTO), quando se
consagrou, entre nós, a tese - até hoje prevalecente na jurisprudência da Corte
(e recentemente reiterada no julgamento
da ADI nº 1.480-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO) - de que existe, entre tratados internacionais e leis internas brasileiras, de caráter ordinário, mera relação de paridade normativa." (Carta
Rogatória n. 8.279-4 da República da Argentina, Min. Celso Mello, Informativo
n. 109 do STF, grifos no original);
14. ADIn 1480-3-DF;
15. Ver Hugo de Britto
Machado, Curso de Direito Tributário, 12ª edição, Malheiros, p. 59;
Retirado de: http://www.ambito-juridico.com.br/aj/merc0002.htm