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O Direito de Polícia em Alto-Mar

 

 

Rodrigo de Abreu
I. Summary
II. Introdução
III. O Alto-mar: Considerações gerais
IV. O direito de polícia e fiscalização em alto-mar
V. Exceções ao princípio geral do direito de polícia e fiscalização em alto-mar




I. SUMMARY

Since ancient times, the high seas are considered as a free navegation and jurisdiction zone by any state. In fact, this position has criated an struggle of opinions in International law, because of the necessity of police to repress illicit acts who find easy berth at the oceans.



II. INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por escopo estudar uma questão muito interessante dentro do contexto do Direito das Gentes, qual seja, o direito de polícia em alto-mar.

A relevância do tema escolhido consiste num conhecimento global a respeito do Direito do Mar, mais especificamente, saber sobre a competência de um Estado em reprimir e fiscalizar eventuais práticas ilícitas que venham a cometer um navio estrangeiro ou, um navio que arvore sua bandeira. Um assunto em pauta há alguns séculos, não obstante, ainda atual.

Para a realização deste, encontramos diversas dificuldades, devido o fato de não podermos contar com uma fonte bibliográfica farta, em português, entretanto, nos foi possível angariar grande quantidade de informações junto a livros estrangeiros, que nos possibilitou relevante embasamento teórico.

É válido ressaltar, para efeitos de entendimento deste trabalho, que o tema escolhido envolve o direito de polícia e fiscalização em alto-mar e não sobre o mesmo, isto é, trataremos exclusivamente de navios e embarcações marítimas deixando de lado as aeronaves.



III. O ALTO-MAR: Considerações Gerais

Considera-se alto-mar, toda a massa de água dos oceanos, além das linhas de respeito, que limitam as águas territoriais.(1)

De fato, o alto-mar não pertence a ninguém: é um bem comum a todos os povos, ou, melhor, cujo uso é comum a todos os homens ou a todas as nações. Tal é o disposto no artigo 87 da Convenção das Nações Sobre o Direito do Mar de 1982, em Montego Bay: "1. O alto-mar está aberto a todos os Estados, quer costeiros quer sem litoral ...;... Compreende, inter alia, para os Estados quer costeiros quer sem litoral:

a) liberdade de navegação;

b) liberdade de sobrevôo;

c) liberdade de colocar cabos e dutos submarinos;

d) liberdade de construir ilhas artificiais e outras instalações permitidas pelo Direito Internacional;

e) liberdade de pesca;

f) liberdade de investigação científica.

2. Tais liberdades devem ser exercidas por todos os Estados, tendo em devida conta os interesses de outros Estados no seu exercício da liberdade do alto-mar, bem como os Direitos relativos às atividades na Área previstos na presente Convenção".(2)

Entretanto, durante vários séculos, certos Estados ou Soberanos pretenderam exercer jurisdição exclusiva ou possuir direitos de propriedade sobre áreas extensas do alto-mar. Desta pretensão nasceu a controvérsia entre os juristas, sobre a liberdade dos mares, cujo mais famoso documento foi o Mare liberum, da obra De jure predoe de Grótius, publicada em 1609. Enquanto Grótius e, antes dele, Fernando Vasquez Menchaca ("As Controvérsias Ilustres"), combatiam o monopólio dos mares, outros autores, dentre os quais Serafim de Freitas e John Selden (Mare clausum, 1635), o defendiam. O primeiro resultado das discussões diplomáticas provocadas pelo assunto foi o reconhecimento da liberdade da navegação marítima.

Em todo caso, o princípio geral da liberdade dos mares, que, desde o começo do século XVIII, cada vez mais se vinha impondo, só foi consagrado pela doutrina e pela prática das nações no século seguinte. Esse princípio, cuja importância é considerável, sofre, contudo, certas restrições, não somente em tempos de guerra, mas também em tempos de paz.

As referidas restrições derivam ou da natureza das coisas,- no sentido de que a liberdade de cada Estado, no alto-mar não deve ir até prejudicar a liberdade de qualquer outro,- ou provém de acordos ou convenções internacionais.

Em 1958, por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar foi firmada a Convenção sobre o Alto-Mar que reconheceu a liberdade do alto-mar.(3)

Vários desses acordos tiveram por escopo prevenir acidentes que possam resultar da navegação. Entre eles podem ser citados: as duas Convenções de Bruxelas, de 23 de setembro de 1910, para a unificação de certas regras em matéria de abalroamentos e de assistência e salvamento marítimos; a Convenção de Londres de 20 de janeiro de 1914, para a proteção da vida humana no mar; os Acordos de Lisboa, de 23 de outubro de 1930, sobre balizagem e iluminação da costas; as Convenções de Bruxelas, de 10 de maio de 1952, sobre competência civil e penal, em matéria de abalroamento, e sobre a unificação de regras referentes à penhora conservatória de navios. Nessa espécie de regulamentação internacional, deve ser também mencionado O Código Internacional de Sinais relativo ao uso de luzes e sinais, pelos navios, adotado por todos ou quase todos Estados marítimos,- o qual não resultou de uma Convenção Internacional, mas de regulamentações nacionais concordantes.

Em matéria de pesca, cuja liberdade, em alto-mar, decorre naturalmente do princípio da liberdade dos mares, tem havido, igualmente, acordos internacionais, destinados a evitar que seu exercício, por alguma nação redunde em prejuízos das demais.

A Convenção mais recente sobre o alto-mar, decorre da Terceira Conferência das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar, em 1982, Montego bay, do qual o Brasil faz parte.

A seguir, passamos a tratar sobre um assunto muito interessante e polêmico, qual seja, o direito de polícia e fiscalização de atos ilícitos em alto-mar, tratado por alguns autores e que representa nosso objeto principal de estudo, neste trabalho.



IV. O DIREITO DE POLÍCIA E FISCALIZAÇÃO EM ALTO-MAR

A prática, em alto-mar, dos direitos que acabamos de assinalar, originam para cada Estado o exercício, em tempo de paz,(4) de certa jurisdição e polícia.

- Princípio Geral:

a) A jurisdição de um Estado em alto-mar só recai, a princípio, sobre os navios que naveguem sob sua bandeira. Concilia-se, desse modo, a liberdade dos mares e a necessidade, em que se encontra cada Estado, de manter sua autoridade sobre os navios nacionais, as pessoas e as coisas à bordo, mais além de seu próprio mar territorial, enquanto não penetrem em águas que estejam sob outra soberania.

Os navios de guerra e navios pertencentes a um Estado ou por ele operados e utilizados unicamente em serviço oficial, não comercial, gozam, em alto-mar, de completa imunidade de jurisdição a qualquer Estado que não seja o da sua bandeira, nos termos dos artigos 95 e 96, da Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar (Parte VII, Alto-Mar), de 1982.

b) A polícia que pode exercer um Estado em alto-mar, em tempo de paz, recai somente, a princípio, sobre os navios que estejam navegando sob sua bandeira.

Da mesma forma, somente os navios de guerra ou navios à serviço oficial, não comercial, podem exercer qualquer tipo de polícia sobre navios de mesma bandeira ou, de outra bandeira, em casos específicos a serem estudados posteriormente.

Em defesa deste princípio geral, temos inúmeros autores que através dos tempos vêm viementemente afirmar o exercício da autoridade dos Estados, em alto-mar, apenas sobre seus próprios navios, fundamentando-se no argumento de que, se aos Estados fosse permitida a competência para aplicar sua autoridade, arbitrariamente, a navios de qualquer nacionalidade, rapidamente, o princípio da livre navegação em alto-mar desapareceria.

Podemos citar alguns professores de Direito Internacional que tratam a esse respeito:

"Since, therefore, the open sea is not the territory of any State, no State has a rule a right to exercise its legislation, administration, jurisdiction, or police over parts of the open sea" (Oppenheim).(5)

"In time of peace, each subject of international law exercises exclusive jurisdiction on the high seas over all ships which are entitled to fly its own flag, but not over others" (Schwarzenberger).(6)

"The essencial idea underlying the principle of freedom of the high seas is the concept of the prohibition of interference in peacetime by ships flying one national flag with ships flying the flag of other nationalities" (Gilbert Gidel).(7)

Também a Corte Permanente Internacional de Justiça, em 1927,no famoso caso "Lotus", pronunciou:

"Except for certain especial cases, vessels on the high seas are subject to no authority except that of the State whose flag they fly".(8)

A regra geral a que acabamos de nos referir, segundo a qual, em tempo de paz, a jurisdição e a polícia em alto-mar se exercem somente com respeito a navios nacionais, admite exceções estabelecidas, algumas pelo costume internacional, outras pelas Convenções Sobre o Direito do Mar (Genebra, 1958 e, mais recentemente, Montego Bay, 1982), quais sejam:

a) a pirataria;

b) o transporte de escravos;

c) o tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas;

d) as transmissões não autorizadas a partir do alto-mar;

e) o Direito de Visita;

f) o Direito de Perseguição;

g) os Tratados.

Nos casos acima citados, permite-se que navios de guerra ou a serviço oficial, exerçam direito de polícia e fiscalização sobre navios que não naveguem sob mesma bandeira, entretanto, apenas em ocasiões raras, casos de extrema necessidade, em que tal fiscalização se fizer necessária.



V. EXCEÇÕES AO PRINCÍPIO GERAL DO DIREITO DE POLÍCIA E FISCALIZAÇÃO EM ALTO-MAR

5.1. A PIRATARIA

Para a garantia da liberdade de trânsito e segurança dos navios, de sua gente e de sua carga, estabelece-se a repressão universal da pirataria, considerada inimiga dos mares desde os tempos imemoriais.

Ladrão do mar, o pirata é o que, sem autorização de um Estado, sem autoridade internacional a que obedeça, pratica atos de depredação, assassínio e roubo em proveito próprio. A sua captura pode e deve ser feita por navios de qualquer bandeira, que o conduz ao porto mais próximo, onde deve ser processado.

Vespasiano Pella apresenta os seguintes elementos característicos, dos atos piratas:

1) atos de violência, ou de depredação;

2) ausência de toda autorização, da parte de um Estado, para a perpetração de atos de violência ou de depredação;

3) espírito de lucro;

4) prática dos atos de violência em lugar que escapa à jurisdição exclusiva de um Estado determinado;

5) atos que, por sua natureza, ponham em perigo a segurança e a circulação nos lugares que escapam à jurisdição exclusiva de um Estado.(9)

O policiamento consiste na verificação da verdadeira nacionalidade do navio mercante, constante da bandeira respectiva e dos papéis de bordo, além da repressão dos "navios tavernas" (que realizam tráfico de bebidas, cuja venda é proibida, perseguindo as frotas de pesca para com elas manterem esse comércio prejudicial) e das demais atividades ilícitas em alto-mar, também chamadas de "pirataria por analogia".

A prática de repressão universal à pirataria foi um princípio do costume internacional até 1958, por ocasião da Convenção de Genebra Sobre o Alto-Mar, que representou o primeiro texto de normas internacionais à respeito do referido assunto. Tal Convenção, foi uma síntese de dois projetos anteriomente a ela apresentados; tais eram:

- O projeto de disposições para a repressão da pirataria, surgido em 1926, por "experts" da Sociedade das Nações (oito artigos);

- O projeto de Convenção da Harvard Law School, elaborado em 1932, sob a direção de Joseph W. Bingham (dezenove artigos).(10)

No Direito Internacional da atualidade, a repressão à pirataria em alto-mar é observada pela Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar, elaborada pela Terceira Conferência das Nações Unidas, em Montego Bay, 1982; segundo os artigos 100 a 107, com a seguinte redação:

"- ARTIGO 100: Todos os Estados devem cooperar em toda a medida do possível na repressão da pirataria em alto-mar ou em qualquer outro lugar que não se encontre sob a jurisdição de algum Estado.

- ARTIGO 101: Constituem pirataria quaisquer dos seguintes atos:

a) todo ato ilícito de violência ou de detenção ou todo ato de depredação cometidos, para fins privados, pela tripulação ou pelos passageiros de um navio ou de uma aeronave privados, e dirigidos contra:

I) um navio ou uma aeronave em alto-mar ou pessoas ou bens a bordo dos mesmos;

II) um navio ou uma aeronave, pessoas ou bens em lugar não submetido à jurisdição de um Estado;

b) todo ato de participação voluntária na utilização de um navio ou de uma aeronave, quando aquele que o pratica tenha conhecimento de fatos que dêem a esse navio ou a essa aeronave o caráter de navio ou aeronave pirata;

c) toda ação que tenha por fim incitar ou ajudar intencionalmente a cometer um dos atos enunciados nas alíneas a) ou b).

- ARTIGO 102: Os atos de pirataria definidos no artigo 101, perpetrados por um navio de guerra, um navio de Estado ou uma aeronave de Estado, cuja tripulação se tenha amotinado e apoderado do navio ou aeronave, são equiparados a atos cometidos por um navio ou aeronave privados.

- ARTIGO 103: São considerados navios ou aeronaves piratas (11) os navios ou aeronaves que as pessoas, sob cujo controle efetivo se encontrem, pretendem utilizar para cometer qualquer dos atos mencionados no artigo 101. Também são considerados piratas os navios ou aeronaves que tenham servido para cometer qualquer de tais atos, enquanto se encontrem sob o controle das pessoas culpadas desses atos.

- ARTIGO 104: Um navio ou aeronave pode conservar a sua nacionalidade, mesmo que se tenha transformado em navio ou aeronave pirata. A conservação ou a perda da nacionalidade deve ser determinada de acordo com a lei do Estado que tenha atribuído a nacionalidade.

- ARTIGO 105: Todo Estado pode apresar, em alto-mar ou em qualquer outro lugar não submetido à jurisdição de qualquer Estado, um navio ou aeronave pirata, ou um navio ou aeronave capturados por atos de pirataria e em poder dos piratas e prender as pessoas e apreender os bens que se encontrem a bordo desse navio ou dessa aeronave. Os tribunais do Estado que efetuou o apresamento podem decidir as penas a aplicar e as medidas a tomar no que se refere aos navios, às aeronaves ou aos bens sem prejuízo dos direitos de terceiros de boa fé.

- ARTIGO 106: Quando um navio ou uma aeronave for apresado por suspeita de pirataria, sem motivo suficiente, o Estado que o apresou será responsável, perante o Estado de nacionalidade do navio ou da aeronave, por qualquer perda ou dano causados por esse apresamento.

- ARTIGO 107: Só podem efetuar apresamento por motivo de pirataria os navios de guerra ou aeronaves militares, ou outros navios ou aeronaves que tragam sinais claros e sejam identificáveis como navios ou aeronaves ao serviço de um governo e estejam para tanto autorizados".(12)

Dado o exposto, percebemos a prática de repulsa aos atos de pirataria, que o Direito Internacional traz consigo através dos tempos. Todavia, desde há quase um século, vêm operando-se profundas transformações em termos de navegação: os corsários desapareceram totalmente e os tradicionais navios piratas praticamente já não mais existem. Além disso, as comunicações no mar se efetuam com regularidade e suas técnicas se desenvolvem a cada dia. Os navios já se comunicam constantemente por meio da radiotelegrafia e assim podem deixar claras sua natureza, sua nacionalidade e a companhia a que pertencem. Por tudo isso, a verificação do pavilhão de um navio, em tempo de paz, não se faz mais necessária em alto-mar, senão em ocasiões sumamente raras.


5.2. O TRANSPORTE DE ESCRAVOS

A polícia recíproca que os Estados vêm exercendo para garantia segura dos navios, dos homens e dos bens em alto-mar, estabelece a repressão do transporte de escravos. Esse comércio foi praticado durante mais de um século, por flamengos, espanhóis, portugueses, franceses e ingleses, com o patrocínio dos respectivos governos. Naquela época, tornou-se notável o pacto del assiento de negros, entre Inglaterra e Espanha, para o monopólio de importação na América, de 4.100 escravos por ano, segundo o Tratado de Ultrech (1713).

Os Estados Unidos da América do Norte iniciaram a repressão em 1794, proibindo por lei a importação de escravos em seus domínios. Pouco a pouco, os Estados escravagistas foram reconhecendo o caráter ilícito do odioso negócio e no Congresso de Viena (1815) declarou-se reprovável essa prática; declaração esta, renovada nos tratados de Paris (1815), de Aix-la-Chapelle (1818) e de Verona (1822). Neste útimo, procurou-se equiparar o tráfico de escravos à pirataria para efeitos da repressão.

Em 1833, França e Inglaterra acordaram o direito de visita recíproca, entre navios, para exterminação do asqueroso comércio, sem resultados eficazes. Assim, muitas outras convenções sucederam-se com o mesmo intento e tiveram a mesma sorte.

Pelo Pacto de Berlim (1885), vários Estados assumiram o compromisso de extinguir o tráfico de escravos em terra e mar, entretanto, a vigilância exercida pouco atenuou a exploração.

A repressão ao transporte de escravos passou a ganhar eficácia com a Conferência realizada em Bruxelas (1890) e posteriormente, em 1919, com a Convenção de Saint-Germain-en-Laye que estabeleceu a proteção das populações indígenas, com o fim principal de livrá-las da condição servil.

As confabulações à respeito da escravatura continuaram evoluindo e em 1958, por ocasião da Convenção de Genebra, o Direito Internacional firma a repulsa do transporte de escravos em alto-mar, pela redação do artigo 13, que estabeleceu autoridade aos Estados de exercer o direito de polícia e fiscalização contra tal tráfico.

O caso brasileiro, no tocante ao episódio da escravidão, nos é bem sabido. O Brasil sofreu a importação de escravos, quando colônia, e herdou da velha metrópole o mesmo costume, imitando os grandes países. Aderiu várias convenções e posteriormente condenou o tráfico, todavia, manteve a odiosa herança, oficializada até 1888, quando a Lei Áurea deu termo à escravatura.

O Direito Internacional da atualidade proibe o transporte de escravos em alto-mar, segundo o artigo 99 da Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar, realizada em Montego Bay, 1982, nestes termos:

"Todo Estado deve tomar medidas eficazes para impedir e punir o transporte de escravos em navios autorizados a arvorar a sua bandeira e impedir que, com esse fim, se use ilegalmente a sua bandeira. Todo escravo que se refugie num navio, qualquer que seja a sua bandeira, ficará, ipso facto, livre".(13)

O costume internacional, entende, porém, que o direito de polícia de um Estado, em relação à repressão do tráfico de escravos em alto-mar, pode se estender aos navios estrangeiros, observados certos procedimentos, constituindo, com já vimos, uma exceção à regra geral do direito de polícia e fiscalização em alto-mar.

Assim como a pirataria, o transporte de escravos não se realiza como em tempos passados, sofrendo, esta prática, profundas mudanças através da história mundial. Já não se fala mais em "navios negreiros", isto é, o tradicional tráfico de grupos étnicos (negros, índios, amarelos, etc...), cedeu lugar a outros tipos de tráfico, como o de mulheres e crianças para fins de prostituição, não menos graves e reprováveis.

Enfim, a traficância ainda campeia infrene, nos mares, usando de processos escusos e zombando das providências burocráticas, que necessitam de maior ação repressora.


5.3. O TRÁFICO ILÍCITO DE ESTUPEFACIENTES E SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS

A questão das drogas talvez seja o maior problema do mundo contemporâneo, ou está em vias de fato. Há relatos de consumo de psicotrópicos desde os tempos antigos, entretanto, foi a partir deste século que as drogas tornaram-se objeto de "esquemas" internacionais, disseminando-se, em grande quantidade por quase todos os países do mundo. Hoje, existem as "indústrias da droga" que movem quantias absurdas de dinheiro e manipulam a política de diversos países. Sem dúvida, uma situação alarmante.

O tráfico de substâncias estupefacientes e psicotrópicas é combatido viementemente, pelas Nações Unidas, através de diversas convenções

Sabemos que o alto-mar, constitui região de livre navegação, ou seja, regra geral, nenhum país exerce jurisdição ou autoridade sobre o mesmo; daí é fácil perceber que o tráfico de drogas encontra livre acesso em alto-mar.

Para reprimir tal prática, os Estados estabeleceram o direito recíproco de polícia e fiscalização de navios e embarcações, segundo a Convenção de Montego Bay, 1982, conforme o disposto no artigo 108:

"1. Todos os Estados devem cooperar para a repressão do tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas praticado por navios no alto-mar com violação das convenções internacionais.

2. Todo Estado que tenha motivos sérios para acreditar que um navio arvorando a sua bandeira se dedica ao tráfico ilícito de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas poderá solicitar a cooperação de outros Estados para por fim a tal tráfico".(14)


5.4. AS TRANSMISSÕES NÃO AUTORIZADAS A PARTIR DO ALTO-MAR

Da mesma forma que o tráfico de drogas, a questão das transmissões clandestinas de rádio e televisão é um problema bem atual, entretanto, mais fácilmente detectável.

Haja visto que o alto-mar é zona de livre navegação e que qualquer navio que possua instalações adequadas pode difundir sinais rádio-televisivos, os Estados acharam por bem instituir, nesse caso, o direito de polícia recíproco, a fim de que, normas internacionais sejam respeitadas.

A Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar de 1982, em Montego Bay, à respeito das transmissões não autorizadas a partir do alto-mar, no seu artigo 109, delibera:

"1. Todos os Estados devem cooperar para a repressão das transmissões não autorizadas efetuadas a partir do alto-mar.

2. Para efeitos da presente Convenção, 'transmissões não autorizadas' significa as transmisões de rádio ou televisão difundidas a partir de um navio ou instalação em alto-mar e dirigidas ao público em geral com violação dos regulamentos internacionais, excluídas as transmissões de chamadas de socorro.

3. Qualquer pessoa que efetue transmissões não autorizadas pode ser processada perante os tribunais:

a) do Estado de bandeira do navio;

b) do Estado de registro da instalação;

c) do Estado do qual a pessoa é nacional;

d) de qualquer Estado em que possam receber-se as transmissões; ou

e) de qualquer Estado cujos serviços autorizados de radiocomunicação sofram interferências.

4. No alto-mar, o Estado que tenha jurisdição de conformidade com o parágrafo 3 poderá, nos termos do artigo 110, deter qualquer pessoa ou apresar qualquer navio que efetue transmissões não autorizadas e apreender o equipamento emissor".(15)


5.5. O DIREITO DE VISITA

O Direito de Visita (right of visit), é um instituto antigo, criado pela Grã-Bretanha, no século XIX e mais recentemente, adotado pelo Direito Internacional.

Devemos recordar, que passada a primeira metade do século XIX, possuia a Inglaterra, um grande número de navios mercantes disseminados pelos mares, sob a constante ameaça de corsários e piratas, procedendo, a fim de protegê-los, a verificação do pavilhão dos navios privados que seus navios de guerra encontravam em alto-mar: estava criado o right of visit, que consistia em deter uma embarcação e verificar seus documentos.

O Direito de Visita é observado pela Convenção de Montego Bay, de 1982, pela redação do artigo 110, nestes termos:

"1. Salvo nos casos em que os atos de ingerência são baseados em poderes conferidos por tratados, um navio de guerra que encontre em alto-mar um navio estrangeiro que não goze de completa imunidade de conformidade com os artigos 95 e 96 não terá o direito de visita, a menos que exista motivo razoável para suspeitar que:

a) o navio se dedica à pirataria;

b) o navio se dedica ao tráfico de escravos;

c) o navio é utilizado para efetuar transmisões não autorizadas e o Estado de bandeira do navio de guerra tem jurisdição nos termos do artigo 109;

d) o navio não tem nacionalidade; ou

e) o navio tem, na realidade, a mesma nacionalidade que o navio de guerra, embora arvore uma bandeira estrangeira ou se recuse a içar a sua bandeira.

2. Nos casos previstos no parágrafo 1o., o navio de guerra pode proceder à verificação dos documentos que autorizem o uso da bandeira. Para isso, pode enviar uma embarcação ao navio supeito, sob comando de um oficial. Se, após a verificação dos documentos, as suspeitas persistem, pode proceder a bordo do navio a um exame ulterior, que deverá ser efetuado com toda a consideração possível.

3. Se as suspeitas se revelarem infundadas e o navio visitado não tiver cometido qualquer ato que as justifique, esse navio deve ser indenizado por qualquer perda ou dano que possa ter sofrido.

4. Estas disposições aplicam-se, mutatis mutandi, às aeronaves militares.

5. Estas disposições aplicam-se, também a quaisquer outros navios ou aeronaves devidamente autorizados que tragam sinais claros e sejam identificáveis como navios e aeronaves ao serviço de um governo".(16)


5.6. O DIREITO DE PERSEGUIÇÃO

Outra importante exceção à regra geral, segundo o qual, em tempo de paz, a jurisdição e a polícia em alto-mar se exercem somente sobre navios nacionais, é o Direito de Perseguição (ininterrupta).

Assim como o Direito de Visita, o Direito de Perseguição (hot pursuit), também é instituto do costume internacional e consiste na faculdade, reconhecida a cada Estado, de perseguir e capturar em alto-mar um navio privado que possua bandeira estrangeira, quando este tiver cometido alguma infração em águas territoriais de um Estado, sempre que a perseguição se inicie nas águas do mesmo, continue sem interrupção e que seja, o navio, detido antes de penetrar em mar territorial próprio, ou de Estado estrangeiro.

A Convenção de 1982, sobre o Direito do Mar, regulamenta o Direito de Perseguição, em seu artigo 111, desta forma:

"1. A perseguição de navio estrangeiro pode ser empreendida quando as autoridades competentes do Estado costeiro tiverem motivos fundados para acreditar que o navio infringiu as suas leis e regulamentos. A perseguição deve iniciar-se quando o navio estrangeiro ou uma das suas embarcações se encontrar nas águas interiores, nas águas arquipélagas, no mar territorial ou na zona contígua do Estado perseguidor, e só pode continuar fora do mar territorial ou da zona contígua se a perseguição não tiver sido interrompida. Não é necessário que o navio que dá a ordem de parar a um navio estrangeiro que navega pelo mar territorial ou pela zona contígua se encontre também no mar territorial ou na zona contígua no momento em que o navio estrangeiro recebe a referida ordem. Se o navio estrangeiro se encontrar na zona contígua, como definida no artigo 33, a perseguição só pode ser iniciada se tiver havido violação dos direitos para cuja proteção a referida zona foi criada.

2. O direito de perseguição aplica-se, mutatis mutandis, às infrações às leis e regulamentos do Estado costeiro aplicáveis, de conformidade com a presente Convenção, na zona econômica exclusiva ou na plataforma continental, incluindo as zonas de segurança em volta das instalações situadas na plataforma continental, quando tais infrações tiverem sido cometidas nas zonas mencionadas.

3. O direito de perseguição cessa no momento em que o navio perseguido entre no mar territorial do seu próprio Estado ou no mar territorial de um terceiro Estado.

4. A perseguição não se considera iniciada até que o navio perseguidor se tenha certificado, pelos meios práticos de que disponha, de que o navio perseguido ou uma das suas lanchas ou outras embarcações que trabalhem em equipe e utilizando o navio perseguido como navio mãe, se encontram dentro dos limites do mar territorial ou, se for o caso, na zona contígua, na zona econômica exclusiva ou na plataforma continental. Só pode dar-se início à perseguição depois de ter sido emitido sinal de parar, visual ou auditivo, a uma distância que permita ao navio estrangeiro vê-lo ou ouvi-lo.

5. O direito de perseguição só pode ser exercido por navios de guerra ou aeronaves militares, ou por outros navios ou aeronaves que possuam sinais claros e sejam identificáveis como navios e aeronaves ao serviço de um governo e estejam para tanto autorizados.

6. .......................................................

a)............

b)............

7. Quando um navio for apresado num lugar submetido à jurisdição de um Estado e escoltado até um porto desse Estado para investigação pelas autoridades competentes, não se pode pretender que seja posto em liberdade pelo simples fato de o navio e a sua escolta terem atravessado parte de uma zona econômica exclusiva ou do alto-mar, se as circunstâncias a isso obrigarem.

8. Quando um navio for parado ou apresado fora do mar territorial em circunstâncias que não justifiquem o exercício do direito de perseguição, deve ser indenizado por qualquer perda ou dano que possa ter sofrido em consequência disso".(17)


5.7. TRATADOS

Mediante tratados e, a fim de assegurar certos interesses comuns, tem-se estabelecido entre os Estados contratantes alguns regimes de polícia especial, que autorizam a verificação do pavilhão e a inspeção do navio suspeito de infração. Entretanto, não implicam no exercício de atos de jurisdição, pois o julgamento fica reservado ao Estado da bandeira do navio indiciado. Esses regimes de polícia especial têm sido criados pelas Convenções de Haia de 1882 e 1887 para a regulamentação da pesca no Mar do Norte, pela Convenção de Paris de 1884 para a proteção internacional dos cabos submarinos, pela Ata de Bruxelas de 1890 relativa a prevenção e repressão do transporte de negros em certas zonas do Oceano Índico e pela Convenção de Washington de 1911 referente a regulamentação da caça às focas em determinada área do Oceano Pacífico setentrional; dentre outros.



VI. CONCLUSÃO

O alto-mar, portanto, não está sujeito a jurisdição de nenhum Estado, não pertence a ninguém ou seja é área de livre navegação.

Via de regra, um Estado só exerce jurisdição e polícia sobre navios que arvorem sua bandeira. Todavia, percebemos as exceções que o costume internacional traz consigo desde as "grandes navegações" do século XV e XVI.

Assim, a nenhum Estado é permitido o direito de polícia, em tempo de paz, a navios que não sejam nacionais, contudo, é dever de todo Estado reprimir os atos ilícitos, inimigos do gênero humano, seja em terra, no ar ou em alto-mar.

Esperamos, através deste, ter trazido algum esclarecimento acerca do tema proposto. Tema este, surgido a partir de dúvidas em sala de aula, sanadas pelo estudo mais aprofundado e pela pesquisa empreendida.



VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

- ACCIOLY, Hildebrando. Manual do Direito Internacional Público. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 1973.

- COSTA, L. A. Podestá. Derecho International Público. 3 ed. Buenos Aires: Typográfica Editora Argentina, 1955.

- FENWICK, Charles G. Derecho International. Buenos Aires: Liberos, 1963.

- MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito International Público. 4 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1986.

- PEDERNEIRAS, Raul. Direito Internacional Compendiado. 12 ed. São Paulo: Livraria Freitas Bastos S/A, 1960.

- QUENEUDEC, Jean-Pierre. Droit Maritime International. Paris: Éditions A. Pedone, 1971.

- ROUSSEAU, Charles. Droit Internacional Public. 5 ed. Paris: Recueil Sirey S/A, 1953.

- SIMONNET, Maurice-René. La Convention Sur La Haute Mer. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1966.
 


    Notas

1. PEDERNEIRAS, Raul. "Direito Internacional Compendiado", pág. 279. [volta]
2. MELLO, Celso D. de Albuquerque. "Tratados e Convenções", pág. 338. [volta]
3. Não foi ratificada pelo Brasil. [volta]
4. Os beligerantes exercem em alto-mar, assim como nos mares territoriais próprios, um direito extraordinário de jurisdição e polícia, consistente em verificar o pavilhão dos navios privados e visitá-los a fim de impedir que violem um bloqueio, transportem contrabando de guerra ou prestem assistência hostil. [volta]
5. Mc DOUGAL, Myres S. e BURKE, William J. "The Public Order of the Oceans", pág. 871. [volta]
6. idem [volta]
7. ibidem [volta]
8. ibidem [volta]
9. PEDERNEIRAS, Raul. "Direito Internacional Compendiado", pág. 278. [volta]
10. SIMONNET, Maurice-René. "La Convention Sur La Haute Mer", pág. 160. [volta]
11. Não se confunda navio pirata com corsário, que é o voluntário ou o auxiliar da marinha de guerra. [volta]
12. MELLO, Celso D. de Albuquerque. "Tratados e Convenções", pág. 342. [volta]
13. idem [volta]
14. ibidem [volta]
15. ibidem [volta]
16. ibidem [volta]
17. ibidem [volta]
 


Fonte:http://www.ccj.ufsc.br/~iri/papers/abreu.html