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Caso cupuaçu evidencia falta de lei adequada à biossegurança

 

O registro da marca "cupuaçu" por uma multinacional japonesa demonstra que o mundo não tem uma legislação que efetivamente garanta a proteção dos recursos genéticos e biológicos


Manuel Ruas Bonduki

 

Não é de hoje que a apropriação internacional dos produtos e do conhecimento dos povos é utilizada para engordar os lucros de grandes empresas. Ainda nem existia pátria quando o pau-brasil começou a ser exportado para a Europa na forma de corante, com a ajuda do método de extração dos índios americanos. Quinhentos anos depois, uma estimativa da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados sobre a questão indica que pelo menos 30 milhões de animais e plantas da Amazônia são retirados da floresta anualmente de forma clandestina, em um lucrativo contrabando que perde apenas para os mega-negócios de armas e drogas no país.

Ainda que casos de apropriação indevida de produtos nacionais não sejam novidades, foi com grande surpresa que o país recebeu a notícia de que o nome Cupuaçu havia sido registrado como marca por uma multinacional japonesa e que qualquer tentativa de exportação da fruta amazônica ou de seus derivados não poderia utilizar o nome cupuaçu sob pena de multas internacionais. A descoberta foi feita quando a organização não-governamental (ONG) Amazonlink, que apóia produtores da Amazônia na comercialização de derivados de cupuaçu, se preparava para fechar um contrato de exportação com uma empresa alemã. O nome Cupuaçu pertencia agora à gigante Asahi Foods Corporation em todo o território da União Européia, Japão e Estados Unidos. Além disso, o processo de produção do chocolate derivado do cupuaçu, mais saudável que de cacau, também havia sido patenteado pela empresa japonesa.

Para tentar solucionar a questão, outras duas ONGs - a Rede GTA e o Instituto Brasileiro do Direito do Comercio Internacional, Tecnologia da Informação e Desenvolvimento (Ciited) - se uniram à Amazonlink e ajuizaram no último dia 19 uma ação na Justiça japonesa contestando o registro da marca. A decisão final deve sair em aproximadamente um ano.

Quanto ao registro do cupuaçu, a questão jurídica é relativamente simples como explica Guilherme Carboni, advogado responsável por propriedade intelectual do escritório Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados. "Pode-se patentear um processo, uma máquina ou mesmo um cultivar (planta geneticamente melhor ou mais adaptada a certas condições e alcançada de forma natural, não transgênica), o que se fez não foi uma patente, mas uma marca. No entanto é vetado registrar um nome utilizado para a descrição de um produto como uma marca. Registrar o cupuaçu é tão absurdo quanto registrar o nome cadeira ".

Assim, sequer é consenso se se pode chamar o que a multinacional japonesa fez de biopirataria, ou "biogrilagem" – termo de acordo com a definição da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi) – mas o fato é que a disputa jurídica que se iniciou no Japão é apenas um sintoma de uma questão muito mais profunda: o mundo não possui uma legislação que efetivamente garanta aos países detentores de recursos genéticos e biológicos e às comunidades que desenvolveram conhecimentos sobre esses recursos um mínimo de participação nos proveitos da sua exploração, cada vez mais comum e lucrativa.

Globalmente, há dois regimes internacionais que tratam, cada um a sua forma, das questões de biossegurança relacionada às patentes. Na Organização Mundial do Comércio (OMC), a questão é regulada pelo TRIPS (Tratado sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio Internacional), de 1995. Já a Organização das Nações Unidas (ONU) tem em sua Convenção da Diversidade Biológica (CDB), assinada na ECO 92 (Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e para o Desenvolvimento), o seu arcabouço jurídico relacionado à biossegurança.

É exatamente quanto às questões de soberania nacional sobre os recursos genéticos e de distribuição eqüitativa dos benefícios advindos da exploração desses recursos e dos conhecimentos tradicionais que o TRIPS e a CDB divergem mais profundamente.

"Por um lado a Convenção da Diversidade Biológica defende a soberania nacional sobre os recursos biológicos e exige a aprovação e participação das comunidades locais para sua utilização. Além disso, essa utilização ou exploração deve dar lugar a uma repartição eqüitativa de benefícios", explica o advogado Edson Beas Rodrigues Jr., membro do grupo de trabalhos em propriedade intelectual do Ciited e um dos responsáveis pelo "caso cupuaçu".

"O TRIPS, por sua vez, especifica que os recursos biológicos devem estar sujeitos a direitos privados de propriedade intelectual e não existe qualquer disposição que obrigue o consentimento prévio justificado de países ou comunidades para o acesso aos recursos que serão objeto de proteção, via direitos de propriedade intelectual. Ainda segundo o TRIPS, deve-se conceder patentes para todos os campos da tecnologia e não há a previsão de qualquer mecanismo para repartir os benefícios entre o titular da patente e o provedor do material biológico", destaca.

O advogado explica: "A CDB antepõe o interesse público e o bem comum à propriedade e aos interesses privados. O TRIPS faz exatamente o contrário".

No Brasil, a legislação que regula o assunto é composta basicamente pela Medida Provisória (MP) 2.186/96, que vem recebendo severas críticas desde sua edição. "A MP era realmente muito fraca quando foi editada pela primeira vez. Mesmo hoje, após várias modificações, ela ainda apresenta omissões importantes como nas questões do aceso acadêmico e do acesso com o fim de bioprospecção", explica Nurit Bensusan, responsável pelo tema da biodiversidade no Instituto Socioambiental (ISA).

Bensusan explica que a medida provisória prevê a proteção aos conhecimentos tradicionais e a repartição dos benefícios provenientes de sua exploração, mas não oferece nenhum meio para que ela se efetive. Ela pondera, entretanto, que essa é realmente uma questão complexa e que nenhum país conseguiu ainda formular uma legislação que atenda o tema de forma qualificada. "Não há nenhuma experiência paradigmática em todo o mundo. Há lugares onde a legislação é mais avançada, como o Peru ou a Austrália, mas nada de definitivo".

Quando atuava como senadora, a Ministra do Meio Ambiente Marina Silva apresentou um projeto de lei para tratar da questão. O projeto regulamenta alguns artigos da Convenção sobre Diversidade Biológica e explicita a questão da soberania do Estado brasileiro sobre os recursos genéticos existentes no território nacional e a participação das comunidades locais e povos indígenas nos benefícios advindos da exploração desses recursos.

Segundo Thiago Luchesi, advogado do escritório Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados e membro do Ciited, quando o TRIPS foi assinado havia uma concepção de que os direitos de patentes eram muito mais fortes. Hoje, pode-se falar em um processo de flexibilização desses direitos, em especial no que tange à comparação desses direitos a direitos como à saúde pública, ao desenvolvimento sustentável, à biodiversidade etc.

Ainda segundo o TRIPS, explica, não se pode usar a propriedade intelectual para causar distorções no comércio internacional. Por isso Luchesi acredita que há como conciliar ambos os tratados para tentar chegar a resolução única.

Mesmo assim, ele concorda que a legislação internacional ainda não protege de forma satisfatória os direitos relacionados aos conhecimentos tradicionais "Talvez o caso do cupuaçu mostre certa fragilidade das instituições e tratados constituídos na proteção desses direitos. Por este ser um dos primeiros casos desse gênero, é uma boa oportunidade para iniciar uma discussão e sanar eventuais falhas na legislação ou no procedimento para garantir essa proteção", afirma.

Manuel Ruas Bonduki é repórter da Carta Maior.

 

Fonte:http://www.cartamaior.com.br