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O Acordo de Alcântara: esclarecimentos

 

Múcio Roberto Dias


Em artigo recentemente publicado no GLOBO, o professor Hélio Jaguaribe manifesta posição veementemente contrária ao acordo entre o Brasil e os Estados Unidos sobre salvaguardas tecnológicas relacionadas à participação americana nos lançamentos a partir do Centro de Alcântara, atualmente em análise no Congresso. A manifestação é certamente peça importante para o debate que se estabeleceu sobre esse tema. É lamentável, contudo, que se baseie em entendimento incorreto de algumas questões fundamentais inerentes à matéria de que trata o documento.

Cabe destacar que a postura do professor Jaguaribe se fundamenta em percepção equivocada a respeito da própria natureza do acordo. Não se trata, de forma alguma, de um "...acordo semelhante ao do arrendamento de parcela do território nacional para a instalação de bases militares dos Estados Unidos. Uma Guantánamo brasileira". A esse respeito, é imperativo esclarecer que o Acordo de Salvaguardas em nenhum lugar menciona o valor de US$ 40 milhões, citado pelo professor, ou qualquer outra cifra. Tampouco estabelece relações contratuais entre proprietário e "inquilino". Em suma, o Brasil não arrendará seu Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) nem o governo dos Estados Unidos nele instalará base militar de forma temporária ou definitiva.

O texto assinado estabelece cláusulas de mesmo teor que constam de acordos de salvaguardas tecnológicas assinados pelos EUA, a partir dos anos 90, com os países para os quais autorizou a exportação de seus artefatos espaciais, como Rússia, China, Ucrânia e Cazaquistão. Não parece ser admissível que esses países, por aceitarem tais condições, tenham transigido na defesa de suas soberanias.

Negociações de salvaguardas tecnológicas não são inéditas para o Brasil. A importação brasileira de supercomputadores, por exemplo, só se faz possível mediante a aceitação de condições destinadas a restringir o acesso e a proibir o seu uso para aplicações específicas (incluindo, vale notar, projeto de foguetes). Não tivesse o Brasil adotado uma postura favorável quanto à aceitação de tais exigências quando autorizou a importação do Japão do primeiro supercomputador para o Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC/Inpe), hoje o país não disporia dos excelentes serviços daquele centro. Convém notar que as longas negociações de tal contrato, assinado em julho de 1993, deram-se em boa parte sob a gestão do então ministro Hélio Jaguaribe à frente da pasta da Ciência e Tecnologia.

O Brasil não vai transferir "para os Estados Unidos a autoridade para a adoção de qualquer ação relacionada com o licenciamento de exportações da Base de Alcântara, o direito de suspender ou revogar qualquer licença de exportação". É imprescindível esclarecer que se trata aqui exclusivamente das autorizações que serão concedidas pelo governo dos EUA a empresas daquele país interessadas em transportar para Alcântara sistemas espaciais de sua propriedade para fins de operação de lançamento. O citado dispositivo simplesmente registra que o Brasil se compromete a respeitar o direito dos Estados Unidos de avaliar, caso a caso, os pedidos de licença de exportação de suas empresas, e sobre eles atuar conforme a legislação americana. De maneira alguma, como sugerido, faz-se referência a exportações brasileiras originadas do CLA.

Outra afirmação refere-se à "extraordinária interdição ao Brasil de usar fundos provenientes do acordo". A restrição aplica-se, tão-somente, aos projetos de "foguetes ou veículos espaciais não-tripulados" e não aos demais projetos constantes do Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE), como os de satélites, infra-estrutura espacial ou de ciências e aplicações espaciais. Ao aceitar tal dispositivo, o Brasil reafirma a decisão de custear seu programa de lançadores com recursos próprios, sem a participação de investimentos externos que tendem a trazer fortes condicionantes e pressões por se tratar de tecnologia tão sensível. É preciso ter-se em mente que a política dos EUA, desde os anos 80, tem-se pautado por desestimular programas de novos lançadores, tendo em vista seu potencial de dupla aplicação - lançadores e mísseis. Setores mais extremados não reconhecem sequer legitimidade a programas de lançadores desenvolvidos depois de 1987, data da criação do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis. Tal postura se refletiu na posição defendida pelos negociadores americanos. Do lado brasileiro, prevaleceu a percepção pragmática de que tal dispositivo não se traduziria em restrição efetiva, visto que se poderão sempre utilizar os recursos advindos da comercialização dos lançamentos no CLA para o custeio dos demais projetos do PNAE, liberando recursos do Tesouro Nacional para desenvolvimento dos lançadores. Cabe aqui mencionar que o projeto do nosso lançador (VLS) continua em pleno andamento, sendo que o próximo teste em vôo está previsto para o segundo semestre de 2002.

Convém, ainda, que se restabeleça uma verdade histórica. O Acordo de Salvaguardas não nasceu de uma iniciativa dos Estados Unidos, mas do Brasil, interessado em que empresas estrangeiras pudessem utilizar seus lançadores (de tecnologia principalmente ucraniana ou russa) para lançar satélites americanos (especialmente os de telecomunicações, que respondem por cerca de 80% do mercado). A intenção brasileira era, sim, viabilizar as operações de lançamento comercial a partir do CLA, motivada pelo entendimento de que elas representariam uma importante fonte complementar de recursos para o programa espacial brasileiro e a oportunidade de dar condições de operação do CLA em escala necessária à manutenção de sua competência e, ainda, de que propiciariam condições ímpares para promover, a médio prazo, o desenvolvimento daquela área do estado do Maranhão.

Ao assinar o acordo o Brasil demonstra, uma vez mais, saber defender seus interesses sem abdicar de suas prerrogativas como nação soberana. Como país soberano, continuará a implementar o seu programa espacial objetivando capacitar o país para desenvolver e utilizar a ciência e tecnologia na solução de problemas nacionais, em benefício da sociedade brasileira.

MÚCIO ROBERTO DIAS é presidente da Agência Espacial Brasileira


Fonte:http://www.mct.gov.br