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Relativismo
ou universalismo das leis sobre direitos humanos
Sérgio de Oliveira Netto
procurador federal, em exercício na
Procuradoria Jurídica da Universidade Federal de São Carlos (SP), mestre em
Direito Internacional, com concentração no campo dos Direitos Humanos, pela
American University (Washington College of Law)
Uma das mais antigas e acirradas controvérsias no campo dos direitos humanos
está relacionada à questão sobre o caráter universal ou relativo destes
direitos. Noutras palavras, se os direitos humanos internacionalmente
reconhecidos, devem merecer tratamento igualitário em todas as nações, ou se
eles estão sujeitos a variações de classificações hierárquicas de acordo com as
diferentes bases culturais sobre as quais se desenvolveu uma sociedade.
No alicerce da retórica sobre direitos humanos, existe a premissa de que a
natureza humana é universal e comum a todos os indivíduos. E realmente de outra
maneira não poderia ser pois, se assim não fosse, seria ilógico preconizar a
existência de uma declaração universal de direitos.
Neste contexto, pode-se afirmar que a doutrina universalista haure seus
fundamentos das concepções advindas da teoria do direito natural. Segundo esta
doutrina, estas leis naturais estabeleceriam certos direitos inerentes a todos
os seres humanos e representariam, via de conseqüência, uma lei superior, que
seria considerada o parâmetro supremo a ser observado na elaboração das normas
nacionais e internacionais referentes à dogmática humanística.
Para os universalistas, existiria um conjunto de direitos mínimos herdados
por todos os povos. Estas prerrogativas mínimas iriam além das divergências
culturais, e deveriam funcionar como verdadeiro norte magnético na confecção
das leis sobre direitos humanos. Estas regras elementares forneceriam
diretrizes a serem perseguidas para a proteção dos integrantes de uma
sociedade. O resultado de se terem regras básicas estabelecidas para à defesa
da dignidade do ser humano, por intermédio de um organismo internacional
representativo de todas as nações, ou pelo menos de sua quase totalidade, como
por exemplo, a Organização das Nações Unidas, seria não só a sua larga aceitação,
mas também sua vasta aplicabilidade entre os diversos povos.
Desta forma, a aceitação dos direitos humanos como inerentes a todos os
indivíduos, não importando suas nacionalidades, nos termos dos contornos que
lhe forem traçados pelos organismos internacionais, aparece como um dos
pressupostos indispensáveis à sua real implementação. Isto em razão de que,
sendo-se conivente com eventuais graduações destes direitos, como o querem os
paladinos do relativismo cultural, ter-se-ia uma constante ameaça à efetiva
proteção que se pretende ofertar aos indivíduos, inobstante suas procedências.
Isto não implica, é curial que se ressalte, que não se deva aceitar algum
tipo de influência regional na aplicação destas normas. Em verdade, apenas a
essência, o valor em última instância assegurado, deveria ser promovido e
custodiado similarmente entre todos os povos. A título de ilustração, cite-se o
exemplo do direito a um julgamento justo, no qual todas as garantias
decorrentes do devido processo legal fossem asseguradas. Neste caso, estas
prerrogativas poderiam ser preservadas tanto pelo julgamento de um júri
popular, no qual leigos são chamados a participar, como naquele em que o
encarregado de proferir o veredicto fosse um agente oficial, legitimamente
investido pelo estado para dirimir as questões que lhe chegassem ao
conhecimento. O que se colima, tanto num caso como noutro, é a rigorosa
observância do direito, que propicie a escorreita aplicação da lei.
Os partidários do relativismo cultural, por sua vez, insistem que as normas
concernentes aos direitos humanos devem ser consideradas, e aplicadas, de
acordo com os diferentes contextos culturais formadores das sociedades. Os
adeptos desta corrente tentam impor a concepção de que, existe uma imensa
variedade cultural entre as inúmeras sociedades que se encontram espalhadas
pelo Globo e, por conseguinte, todas as espécies de costumes locais precisariam
ser reputados válidos. Não seria correto eleger um reduzido número de modelos
culturais, que seriam tidos como padrões universais e, fulcrados neles, passar
a avaliar e a estigmatizar todas os outros que com eles não se coadunassem.
A dignidade humana continuaria sendo um relevante princípio a ser preservado
mas, ao contrário dos universalistas, muitas vezes rotulados como defensores
das ideologias ocidentais, e que procuram oferecer guarida a esta dignidade por
intermédio de uma mentalidade voltada para os direitos individuais, a doutrina
relativista tem-se utilizado mais de uma abordagem coletiva de proteção a esta
mesma dignidade, através de interações com a própria sociedade, que policia as
ações dos indivíduos. Este é o motivo porque severos controles comportamentais
pela comunidade são permitidos.
Em verdade, isto equivaleria a dizer que, a própria estrutura social possui
seus mecanismos internos para amparar seus cidadãos, não obstante o fato de que
estes instrumentos possam não corresponder àqueles empregados no ocidente. E,
assim sendo, as diretrizes protetivas delineadas pelas normas internacionais sobre
direitos humanos seriam não somente desnecessárias, mas também inapropriadas
para prevenir e reprimir eventuais violências perpetradas contra os seres
humanos. Representaria mesmo uma medida contraproducente posto que, ao se
tentar impor valores externos sobre culturas locais, deflagrar-se-ia um
inevitável sentimento de rejeição a tais ideais, o que dificultaria ainda mais
o seu processo de universalização.
Os relativistas, ademais, preconizando a inadequação das normas sobre
direitos humanos tal como postas atualmente, argumentam que elas estão
localizadas no lado universalista da disputa. Neste ponto, em verdade,
assiste-lhes razão porque, realmente, os textos básicos de legislações
humanísticas, como a Declaração Universal sobre Direitos Humanos, assim como as
duas Convenções sobre direitos políticos e sociais, apenas descrevem estes
direitos em termos genéricos. Cite-se, por exemplo, as expressões
"todos" tem o direito à liberdade, "todas as pessoas" são
iguais perante a lei, "ninguém" pode ser submetido à tortura, e assim
por diante. Apesar de ser possível encontrar manifestações de relativismo
cultural em alguns repositórios normativos regionais, como é a hipótese da
Carta Africana sobre Direitos Humanos e das Pessoas.
Um grande obstáculo a ser superado, talvez o maior, para se conseguir uma
mais ampla aceitação dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos, é o
que se refere a acertiva de que, esta dialética humanística é uma concepção
originariamente nascida no ocidente e, conseguintemente, não espelharia a
realidade dos países orientais.
Não há dúvida, é cediço, de que esta visão tutelar do ser humano tem como
berço o mundo ocidental. A fonte única e primária das idéias de liberdade
individual, democracia, direitos humanos bem como outras prerrogativas do
gênero é, irretorquivelmente, o ocidente ou, mais precisamente, a Europa. Isto
não permite se inferir, contudo, que as demais nações não devem adotá-las e
reforçá-las apenas por este motivo. Este tipo de rivalidade e preconceito, infelizmente,
tem sido muitas vezes o grande fator inibidor da adoção de um sistema
cosmopolita de proteção ao ser humano que auferisse ressonância universal. O
que demanda, conseqüentemente, sua incontinente eliminação, em prol da própria
humanidade, que ruma para o terceiro milênio sequiosa da consolidação de um
mundo mais justo, apoiado na harmonia entre os povos.
Outro relevante argumento proposto objetivando refutar estes padrões ocidentais,
assenta-se na própria história da formulação de grande parte dos instrumentos
concernentes aos direitos humanos. Muitos países da África e da Ásia, à guisa
de exemplo, não participaram da redação da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, pois eram colônias à época e, desta forma, não eram considerados
membros das Nações Unidas.
Ao tempo em que eles passaram a tomar parte na discussão e codificação dos
textos subseqüentes, eles o fizeram com esteio num já sedimentado arcabouço de
normas, e de acordo com concepções filosóficas encampadas nas suas ausências.
Pode-se mencionar, ilustrativamente, a preconcebida infra-estrutura ora
vigente, que favorece os direitos individuais relacionados à liberdades civis e
políticas, e menospreza os alcunhados direitos sociais, como o direito ao
desenvolvimento e o de acesso aos bens de consumo gerados pelo sistema
produtivo da economia de mercado.
À evidência, o pensamento humanístico na seara do direito, em razão do seu
próprio nascedouro, não é uma ideologia universal, com repercussão equivalente
entre todas as etnias. Não significando, entretanto, que ela não deva ser
mundialmente chancelada. Outrossim, parece inequívoco, proclamar pura e
simplesmente a universalidade dos direitos humanos seria algo como que
introduzir, sub-repeticiamente, um Cavalo de Tróia em outras civilizações e,
então, obrigá-las adotar certo modo de pensar, sentir e viver, como se o
reconhecimento destes valores fosse a solução final para todos os males. Ou
seja, o que seria universalismo para muitos dos países do ocidente, poderia se
apresentar como imperialismo para os demais que não integrassem este bloco,
notadamente os pertencentes à cultura oriental do hemisfério leste.
Ademais, os próprios defensores do universalismo são, muitas das vezes,
contraditórios na abordagem que fazem da questão em relação a determinados
temas ou países, o que torna ainda mais tortuoso o lento caminho a ser trilhado
no processo de conscientização internacional. É a conhecida e reprovável
aproximação dos dois pesos e duas medidas (double standard), que se verifica,
verbi gratia, com a proposição de não proliferação de armas de destruição em
massa impingida à países como Irã e Iraque, mas não para Israel; ou o que se
assistiu na invasão contra os proprietários de poços de petróleo no Kuwait,
repelida com uma ingente operação militar, ao passo que os sem-petróleo da
Bósnia eram deixados à própria sorte ante a limpeza étnica que grassava em seu
território; ou ainda a inexplicável repreensão à China pelos seus baixos
indicadores de defesa dos direitos humanos, que não encontra similar tratamento
quando a envolvida é a Arábia Saudita.
Entretanto, inobstante todas as precariedades elencadas, num mundo
globalizado como o de hoje, no qual existem modernos meios de comunicação e
transporte, as interações entre civilizações tornaram-se uma constante, o que
redundará numa permuta de valores culturais cada vez mais acentuada, e até
certo grau, desejável. O que acarretará, é o que se espera, uma maior predisposição
à tolerância por parte dos diferentes povos no que toca o ideal de proteção à
dignidade humana em todas as suas facetas. Para que, enfim, possa ser
estabelecido, definitivamente, um código comum de normas, que galgue aceitação
em todas as nações, que viria a proporcionar uma proteção mais eficaz dos
direitos inerentes à pessoa humana, independentemente de sua linhagem racial.
Retirado de: http://www1.jus.com.br