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Uma visão crítica da formação e aplicação das leis na
América Latina
Silvio Couto Neto
promotor de Justiça em Ponta Grossa (PR),
professor de Direito Processual Penal
na Fundação Escola do Ministério Público e
na
Escola da Magistratura do Paraná
1. Introdução
Como operadores do Direito, desenvolvemos (ou ao menos
deveríamos desenvolver) uma visão mais aguçada dos problemas sociais
existentes, de sorte que, a qualquer profissional da área jurídica, certamente
aflige o flagelo social representado pela pobreza, pela falta de perspectiva de
melhores condições de vida, pela falta de acesso à educação, alimentação,
moradia, enfim, de condições mínimas que garantam a vida (não mera
sobrevivência) e a dignidade da maior parte do povo Latino Americano, entres os
quais, obviamente, o povo brasileiro.
Certamente que não se pode observar de forma impassível
os graves problemas sociais dos chamados países periféricos e, em especial, na
desvalorizada parte do globo terrestre que nos cabe ocupar. Trata-se,
evidentemente, da América Latina.
Aos que se dedicam ao direito, sem que se descuide de uma
visão global do problema, como ser humano, cabe, porém, com maior aplicação, a
análise da questão sob o prisma da influência da formação e aplicação do direito
na manutenção de tal quadro de exclusão.
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2. Desenvolvimento
Observa-se claramente que com a chegada dos colonizadores
à América Latina, houve uma ruptura do processo de desenvolvimento cultural que
então se achava em curso aqui e a imposição dos hábitos, costumes, idéias,
enfim, da cultura dos mais fortes, mais bem armados, em relação àqueles que não
tinham maneiras de resistir a essa postura, vale dizer, prevaleceu a vontade
dos colonizadores, dos conquistadores, em detrimento dos colonizados.
O primeiro ato formal praticado em terras brasileiras,
como nos recordamos, foi a realização de uma missa. Isso, em uma época em que o
Direito se encontrava em fase de transição daquele de inspiração divina, com o
do Direito derivado do pensamento Renascentista. Certamente, porém, havia uma
forte influência da Igreja no Estado (para se chegar a tal conclusão, basta
lembrarmo-nos dos tratados estabelecidos pelos Papas entre os Estados, p. ex. o
Tratado de Tordesilhas)
Era a cultura européia, submetendo a seu jugo, a
incipiente cultura indígena que havia em nossas terras. Submissão essa que,
evidentemente se fez pela força das armas, importando, muitas vezes em
verdadeiros massacres dos nativos.
Aos indígenas aqui existentes, somaram-se, também
submetidos à opressão do conquistador, os africanos trazidos como escravos e,
de maneira inevitável, surgiram as miscigenações dando origem a um novo povo,
que não era mais o poderoso colonizador, mas também não pertencia a nenhum dos
originais grupos subjugados (os nativos ou os africanos).
Dessa maneira, esse povo que nascia, surgia sem
identidade própria, sem valores seus, impedido de se inserir em qualquer dos
grupos existentes. Como bem pondera o Professor Dean Fábio Bueno de Almeida,
essa mistura racial e cultural, "fez com que uma massa de mestiços
vivesse, por séculos, sem consciência de si, afundada na ninguendade, pois em
determinado momento este novo homem compreende que não é europeu, não é mais
índio e nem africano: ele compreende-se como um ‘não ser’ ".(i)
O "não-ser" no sentido filosófico onde tal
termo equivale a determinado indivíduo ou determinado povo, por ser diferente
do "centro", ser equiparado a um nada, a algo inexistente e
desprovido de qualquer valor.
Percebe-se que, num momento seguinte, esse grupo
identifica-se como algo novo, eles são os brasileiros.
Contudo, essa identidade carece de qualquer referencial
sólido que possa amparar esse novo povo, de maneira que do ponto de vista
cultural, estrutural, de valores, o brasileiro continua sendo um
"não-ser". Essa característica o transforma em uma massa facilmente
explorável, vez que pode ser manipulado e conduzido por interesses de poderosos
e isso efetivamente ocorre.
O conquistador europeu já possui uma cultura acabada,
pronta, de valores bem definidos, a chamada cultura eurocêntrica. São
detentores da verdade, ciência, e manipulam como querem o povo conquistado.
A mencionada facilidade de manipulação, decorre
do exposto acima, vez que frente a essa angustia por ser considerado um
"não-ser", a grande maioria do povo brasileiro assimila tal condição
e porta-se como tal, uma utra pequena parte então adota uma postura de
mascaramento, passando a "vestir" os costumes e portar-se de acordo
com o que pretende o conquistador, o dominador, para poder ser aceito como um
"ser", nesse grupo. Essas posturas influenciam a formação dos sistemas
sociais, políticos e jurídicos que seguem privilegiando os dominadores em
detrimento dos mais frágeis.
E a grande maioria do povo que é um "não-ser",
não tem acesso às garantias básicas vez que estas, ainda quando previstas (como
atualmente na Constituição Federal), carecem de instrumentos para seu
exercício.
A conseqüência, e que perdura até nossos dias, é que
existe uma elite que tem o domínio do poder e o domínio econômico, e usa esse
povo para seus objetivos particulares, sem dar a menor importância com o
destino ou o seu bem estar.
Assim, essa elite dominante, cria mecanismos para impor
sua vontade, conseguindo manipular a instâncias formais normativas, bem como
dominando a interpretação e aplicação dessas normas, com uma aparência de legitimidade
que é totalmente ilusória e fantasiosa. Em verdade, o povo imagina estar sendo
objeto de atenção pelo Estado, mas este (o Estado), serve apenas de instrumento
a consecução dos interesses dos poderosos. Como já afirmou Manoel Eduardo Alves
Camargo e Gomes, em seu trabalho "Apontamentos Sobre Alguns Impactos do
Projeto Neoliberal no Processo de Formação de Tutelas Jurídico-Políticas,"
os Estados latino-americanos nunca passaram de arremedos dos Estados de
Bem-Estar Social.
Reiteramos, portanto, que essa situação tem continuidade
nos dias atuais, continua havendo uma total exclusão dos direitos sociais, do
acesso às necessidades básicas em relação a dois terços da população
latino-americana, atuais representantes do povo anteriormente mencionado como
"não-ser".
E é face a tal estado de coisas que fazemos uma abordagem
crítica; focamos, no desenvolvimento, a visão da parcela de responsabilidade
que nos cabe, como operadores do direito, pelo status quo que impera. Apontando
o que nos parece contribuir para tal manutenção da miséria e opressão, buscamos
fomentar a busca de soluções.
Em princípio, ponderamos que os juristas em geral, sofrem
uma total castração de seu senso crítico, constituindo-se em meros repetidores
de disposições legais que vêm sendo mantidas pela tradição dos influentes.
Recitam a "segurança jurídica" como postulado a ser mantido, ao mesmo
tempo que descuram-se de por em prática princípios garantidores básicos dos
direitos sociais e individuais e, via de conseqüência, da paz social.
Para trazer a lição de Agostinho Ramalho Marques Neto,
vale transcrever que: "Crer que há uma essência verdadeira em si mesma do
Direito [...] não deixa de ser confortável. Dá ao estudioso do Direito a
impressão que dispõe de um ponto de partida unitário, simples e seguro (um
significante primordial, digamos assim) que garantiria de antemão ao terreno
jurídico uma solidez suficientemente confiável para que ele por aí se
enveredasse por maiores riscos, [...]. Quanto mais o discurso jurídico caminha
nesse sentido, mais vai-se tornando e mais fechado em si mesmo vai
ficando." (ii). Concluí o mencionado autor que não há tal sistema único de
Direito, mas este deve ser construído a partir das diversas fontes possíveis, sem
apego exclusivo a nenhuma delas, e aqui acrescentamos, sem o medo de decidir
com fundamento único na "letra da lei".
Mas qual é a tão propalada "segurança
jurídica"? A manutenção da exclusão social, da miséria, de castas de
dominadores, o abismo na distribuição de renda seriam "bens" a serem
assegurados pela ordem jurídica atual?
Ensina-se, já nos bancos acadêmicos de graduação, aos
estudantes, a declamarem em verso e prosa a "segurança jurídica",
como o respeito indiscutível a lei. O jurista deve ser o "soldado da
lei", sem se observar que esse termo foi cunhado por J. B. Cordeiro
Guerra, em um contexto totalmente diferente do qual se emprega atualmente. Hoje
pensa-se que por "soldado da lei" o jurista deve ser um míope social,
quando o que o notável jurista quis afirmar com tal locução é que deveria
manter-se sereno.
E questionamos: devem ser soldados da lei ou da justiça?
Inegável que estas muitas vezes tomam caminhos diversos, por motivos que
pretendemos abordar mais adiante.
Afranio Silva Jardim já mencionou a respeito da formação
dos profissionais em direito em nosso país que "não desenvolvem uma
formação crítica e reflexiva sobre a sua própria existência e o seu papel social
a ser desempenhado através da atividade laborativa escolhida. Para tal situação
muito contribuem, dentre outros fatores, os currículos antiquados e o
tradicional conservadorismo das instituições de ensino de um modo geral."
(iii)
Observemos a esse respeito, para ilustrar, princípios
constitucionais. Comentemos especificamente um, como o fim social da
propriedade, albergado pela Carta Magna, e que encontra-se esquecido,
adormecido, não sai do discurso (ou das letras da Constituição Federal), para a
vida real, por ausência de uma norma infra-constitucional, que possa por em
prática a "matemática" forma de aplicação do direito.
Essa forma "matemática" a que nos referimos é
aquela ensinada nos bancos escolares brasileiros onde, de uma forma geral,
aplicar o direito traduz-se em aplicação cega da lei.
Transforma-se a lei no "tudo jurídico",
"tem que estar na lei", e passa-se a produzir leis desenfreadamente,
com finalidades inconfessáveis.
Apenas para se aproveitar o princípio em exemplo, vemos
corriqueiramente confronto entre o direito de propriedade, cujos titulares são
os donos de terras e o direito a posse de terras para o fim de nelas exercer
seu trabalho, este segundo, um objetivo compreendido na gama de direitos
sociais do cidadão. A testilha em questão, como é sabido, ocorre entre
fazendeiros e integrantes do chamado "Movimento dos Sem Terra" (MST).
Abstraindo-se a questão político-partidária que acabou
dominando tais confrontos e que só se presta a retirar a legitimidade de um
movimento social, observa-se que sempre a questão é resolvida em favor do
proprietário, possuidor de título das terras. Assim o é, posto que em um
confronto entre a lei, que assegura ao proprietário os interditos legais, e um
princípio constitucional, em relação ao qual não foi editada nenhuma lei, dá-se
maior prevalência à norma inferior. É o apego à lei.
Já afirmaram Sérgio Cademartori e Marcelo Coral Xavier,
que "de nada servem declarações de direitos fundamentais estabelecidas ao
nível mais alto dos ordenamentos se a sociedade não dispuser de mecanismos
capazes de torná-los efetivos. Verifica-se assim uma tremenda defasagem entre a
vontade da sociedade, expressa em nível constitucional, e as práticas concretas
dos diversos Estados, sempre tendentes a avassalar os direitos consagrados no
ordenamento, principalmente no que tange aos direitos sociais." (iv)
E o Poder Legislativo (tanto quanto o Executivo)
encontra-se totalmente comprometido com o dominador. Quando não é formado por
membros da casta exploradora, é formado por representantes desses que, servindo
como instrumentos, são guindados a condição de legislador. Ressalva-se, desde
logo, as honrosas e raras exceções que felizmente, existem no seio do
Legislativo e, eventualmente, do Executivo.
Ninguém ignora os métodos de obtenção de grande parte dos
mandatos parlamentares, que a retórica atribui ao "sufrágio
universal" (ainda que os parlamentares, a rigor, recebam "sufrágio
proporcional"). A manutenção dos "currais eleitorais". Outrora
com o "coronelismo", o Senhor de Fazendas, que decidia sobre a vida e
a morte dos seus empregados e familiares (empregados?).
Falamos no passado, mas sabemos que em algumas
regiões ainda existem tais atrocidades. Onde um rancho de sapé e um pouco de
farinha, são suficientes para induzir o eleitor a conceder o mandato ao seu
próprio algoz, travestido em benfeitor. E pobre daquele que ousar questionar a
"bondade" do candidato-patrão, irá encontrar-se com o Criador mais
cedo, carregado pela fumaça de seu rancho, já queimado, juntamente com sua
família, de regra de numerosa prole.
Em pequenas cidades são aqueles "favores
pessoais" (que nada têm de favores), o chamado
"assistencialismo", a dentadura do favelado, a caixa-d’água do
barraco, a cesta básica do desempregado, a compra de um remédio, e tantos
outros expedientes que demonstram a utilização do poder econômico para a
imposição da "obrigação de votar" em dado candidato. Sem se falar no
uso da "máquina administrativa".
Mas nos grandes centros e nas regiões mais desenvolvidas
desse nosso imenso país, não é mais esse (ao menos não exclusivamente), o
método utilizado para a perpetuação do dominador no poder (e não é diferente
com nossos irmãos latinos, apenas concentramos o enfoque sobre o Brasil, posto
que é nossa realidade mais próxima).
É claro que seria humanamente impossível manter-se o
método arcaico de dominação, com a explosão populacional e os conseqüentes
problemas materiais para se impor tal método a milhões de pessoas, concentradas
em grandes centros e possuindo um pouco mais de acesso à informação.
Agora quando vivenciamos uma época em que, como já se definiu,
ocorreu uma compressão do tempo e do espaço, em que a velocidade é supersônica
e nos permite atravessar de um continente a outro em poucos minutos (quando os
colonizadores levavam meses), a informação torna-se a chave da dominação.
O indivíduo possui em sua casa um aparelho de televisão,
um aparelho de rádio, e pelas ondas eletromagnéticas entra em sua casa todos os
dias, uma enorme quantidade de informações. Ele sequer tem condições de
decodificar todas aquelas notícias e acontecimentos, mas ele ouve, ele vê, e
isso influi em seu ânimo.
Junto com a informação, vem a tendência de quem produz,
veicula ou faz veicular o noticiário. E o "caboclo" do sertão que
ouve seu rádio, o operário morador da favela e mesmo o indivíduo de classe
média, em regra, acredita no que ouve como verdade absoluta. Não teve (e
certamente não terá tão cedo) desenvolvido o espírito crítico, "o
ceticismo crítico ou a dúvida metódica da qual falou Descartes" (v).
Ele ouviu no noticiário, ele leu nos jornais, e assim,
para ele é verdade absoluta. São os dominadores utilizando-se do meio que
deveria ser mais o respeitado, pela sua importância: é a utilização da
imprensa.
Lembramo-nos do que já afirmou o impagável Lima Barreto,
em sua obra literária "Recordações do Escrivão Isaías Caminha" a
respeito da imprensa, pinçando, entre tantos, um pequeno trecho: "é a mais
tirânica manifestação do capitalismo e a mais terrível também... É um poder
vago, sutil, impessoal, que só poucas inteligências podem colher-lhe a força e
a essencial ausência da mais elementar moralidade, dos mais rudimentares
sentimentos de justiça e honestidade! São Grandes empresas, propriedade de
venturosos donos destinadas a lhes dar o mínimo sobre as massas, em cuja linguagem
falam, e a cuja inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos,
os caracteres para os seus desejos inferiores, para os seus atrozes lucros
burgueses..." (vi). E veja-se que esse romance data de 1908.
E fazemos um parêntesis posto que não é o escopo do
presente trabalho fazer uma abordagem crítica do trabalho da imprensa. Não se
discute aqui a sua importância.
A imprensa, os meios de comunicação, são indispensáveis à
sociedade e a esperança da formação de uma opinião crítica do povo. Se
utilizados com ética e consciência, são uma forma extremamente positiva de
fiscalização, de freio aos apetites dos gananciosos, poderosos, desonestos,
etc.
O que se aponta e se espera, é um maior controle, uma
maior ética na veiculação da informação, uma fiscalização que pode ser exercida
em forma de autocontrole dos meios de comunicação, diante mesmo dessa
importância que têm. Uma utilização responsável e conscenciosa da comunicação e
da informação.
Toda notícia tem uma certa tendenciosidade, mas quando
esse comportamento parcial é explícito, aberto, inequívoco, não causa maiores
danos, ao revés, cumpre seu papel, informa. O problema surge quando o interesse
vem oculto, de forma subliminar, como se imparcial fosse a matéria. Aí sim,
torna-se perigosa e manipuladora a informação.
Quem ignora que uma rede de televisão, em nosso país,
recentemente elegeu e, em seguida, depôs um Presidente da República. E em
nenhum momento deixou transparecer que aqueles eram seus objetivos, mas ao
contrário, abordava fatos que induziam a população a adotar determinado
comportamento, como se fosse uma narração imparcial.
Mas não é somente através da notícia que se manipula o
povo nestes tempos de globalização (e odiamos o termo). Manipula-se também, e
talvez principalmente, através da criação de padrões a serem seguidos. Padrões
de beleza, padrões de moda, padrões de comportamento, demonstrando sempre que
dado padrão é "o bom", "o certo" e outro "o
errado".
Voltamos ao "ser" e ao "não-ser"? Ou
nunca saímos dessa condição de "não-ser"?
Explora-se a falta de identidade cultural de nosso povo,
induz-se à coletividade a espelhar-se naquilo que é pregado como certo.
Cria-se paulatinamente com isso, um pensamento
maniqueista na comunidade, mostrando o explorador como o benfeitor e aqueles
que se opõe a ele como os maus, que devem ser combatidos e destruídos.
É o "lobo em pele de cordeiro". Muda-se o
método, mantém-se os objetivos e alcançam-se os resultados.
Muda também a metrópole, antes Portugal, agora o chamado
Primeiro Mundo, com especial predomínio dos Estados Unidos da América.
O referencial monetário é o dólar americano, a música é
do mesmo pais, a língua mundial o inglês, entre tantos outros pontos que
poderiam ser mencionados como demonstração da dominação.
A modernidade é a globalização, o
enfraquecimento do Estado (entendido esse como barreira aos interesses
econômicos). O discurso é que os orgãos públicos são onerosos, ineficientes,
superados. Tem-se que privatizar todas empresas estatais (ainda que para serem
compradas por outras estatais, mas estrangeiras). O funcionário público, não é
mais visto como um prestador de serviços, um trabalhador como qualquer outro,
mas um parasita a ser perseguido e exterminado.
Os serviços públicos são sucateados, não por acaso, mas
para confirmar a idéia difundida de imprestabilidade do setor, e deles se
servem somente aqueles segmentos excluídos e marginalizados da população
(tome-se a saúde pública como exemplo). Quem tem poder aquisitivo, deve ter bom
atendimento, mas deve também dar lucro aos organismos privados (seguros saúde,
cooperativas médicas, etc.)
Se o trabalhador da iniciativa privada tem direitos
inferiores aos dos funcionários, o discurso não é o de melhorar os direitos
daqueles, mas de aniquilar-se os destes. É uma canalização de ódio, tarefa extremamente
fácil em um país de tantos problemas.
E a ignorância, a falta de conhecimentos e de espírito
crítico do povo são mantidos como forma de facilitar extremamente essa
manipulação de idéias.
Desestruturam-se todas as empresas e serviços públicos,
exceto aqueles setores que interessam aos conglomerados financeiros privados,
como bem ponderou Óscar Correas: "Porque nunca se han propuesto achicar el
estado comandados por los jerarcas del capital - o por sus empleados -, porque
sin ese estado no podrían hacer tan buenos negocios. Tampoco al estado casado con las grandes
empresas telivisivas e radiales, sin el cual tampoco podrían estupidizar el
imaginario colectivo y reproducir esta ideología insulsa." (vii)
O próprio Movimento dos Sem Terra é explorado para enfraquecer
o que é público. Mesmo sem nenhum interesse na causa dos trabalhadores, os
meios de comunicação em massa não se cansam de mostrar a violência da polícia e
a ineficiência do judiciário em relação aos menos favorecidos.
Evidentemente que existem várias mensagens subliminares
passadas em tais informações, entre as quais podemos identificar algumas:
pretende-se, em primeiro lugar, mostrar a existência de um "perigoso
movimento contra a propriedade privada" e evidentemente fazer com que a
população se antipatize com tal causa de "desordeiros", ainda que não
se diga isso explicitamente; em segundo lugar, mostrar como os órgãos públicos
são ineficientes no desempenho de seus misteres; em terceiro, soa como um aviso
aos cidadãos que, aqueles que pretendem se insurgir contra a ordem
estabelecida, por mais injusta que a considerem, serão objeto de execração
pelos meios de comunicação como se fossem "foras-da-lei" e sentirão o
peso do aparelho repressivo do Estado, não lhes sendo garantido qualquer direito,
mesmo pelo Poder Judiciário.
Nos detemos aqui, no comentário dos meios de dominação,
para não fugirmos por demais ao tema proposto.
Assim, com toda sorte de manipulação, seleciona-se
(negativamente) a grande parte dos seus membros e mantém-se o domínio das
rédeas do Poder Legislativo, que continua em uma produção desenfreada, daquela
que seria a apregoada fonte quase exclusiva do direito: a lei (na retórica,
pois que na prática se converte em fonte única). Umas para reforçar o domínio
das elites, outras, para trazer a aparência, a ilusão de que os direitos e
necessidades do povo estão sendo tutelados.
Criam-se normas antagônicas umas em relação a outras, com
o escopo único de, travestido de interesse em "atender ao clamor
popular", manter o verdadeiro estado de amortecimento, de letargia em
relação à realidade, no qual encontra-se mergulhado o povo brasileiro como, de
resto, todo o povo latino-americano.
Outra definição não nos ocorre para a situação do povo em
relação ao poder em nosso país, senão a de um sono doentio, duradouro e
profundo do qual não pode despertar, não por sua culpa, não por falta de
interesse, mas por manobras maquiavélicas de sucessivos déspotas que, desde a
conquista dessas terras, vem mantendo o poder para um grupo exclusivo de
privilegiados ou a serviço desse grupo.
Os métodos de engodo, de se induzir o povo explorado em
erro, mudam e se adaptam com as naturais mudanças do tempo, mas os objetivos
sempre são alcançados.
E aumenta a
perversidade do dominador, a eficácia e competência demonstrada na manutenção
de seus privilégios, que demonstra acima de qualquer dúvida, que a manutenção
do grupo de poderosos não é acidental, não é casual, mas é muito bem planejada e
preparada, estudada nos detalhes e com os lances devidamente antecipados, tal
qual um mestre enxadrista planejando os lances futuros, retirando qualquer
chance de vitória do seu adversário, nesse contexto, um mero aprendiz.
Daí, dessas manobras perversas utilizadas para a
manutenção dos privilégios e, de conseqüência, para a produção legislativa,
questionamos a legitimidade das leis emanadas desse poder legislativo.
Ora, a idéia inicial do "Contrato Social" da
disposição, por parte do indivíduo, de parcela de seus direitos em favor do
Estado, foi de assegurar o bem comum, a melhoria da qualidade de vida em
sociedade e, conseqüentemente, de cada um de seus membros.
E o que ocorre em nosso país, embora com um
"contrato social" que alberga vários princípios garantidores de
direitos e liberdades individuais (representado tal "contrato
social", evidentemente, pela Constituição Federal), é uma flagrante
violação dessa relação indivíduo-Estado, é a quebra do "contrato
social".
De sorte que,
embora revestida a produção legislativa de uma aparente legitimidade, essa
aparência dissolve-se perante uma análise mais atenciosa, que demonstra ser tal
legitimidade meramente formal, dissociada daquela que adviria da manifestação de
uma vontade livre.
Poderia se comparar o voto do eleitor manifestado nessa
situação, a um ato jurídico viciado, como no Direito Civil, pelos vícios do
consentimento (vez que seria induzido em erro pelo e quanto ao candidato).
Sabe-se que é um dos elementos do ato jurídico, para sua
validade, para que produza um resultado jurídico, a liberdade na manifestação
de vontade, o que não ocorre com o eleitor brasileiro.
Na lição do sempre festejado Silvio Rodrigues, "Erro
é a idéia falsa da realidade, capaz de conduzir o declarante a manifestar sua
vontade de maneira diversa da que manifestaria se porventura melhor a
conhecesse." E mais, não é um mero erro, mas um erro substancial,
compreendido este como "aquele de tal importância que se fosse conhecida a
verdade o consentimento não se externaria." (viii) No caso do voto, o erro
seria sobre "as qualidades essenciais da pessoa a quem a declaração se
refere." (ix)
Não se pode discutir o caráter de ato jurídico do voto. A
esse respeito, já escreveu José Afonso da Silva "O voto é o ato político
que materializa, na prática, o direito subjetivo público de sufrágio. É o
exercício deste, como dissemos. Mas sendo ato político, porque contém decisão
de poder, nem por isso há de se negar natureza jurídica. É ato também
jurídico." (x) - grifamos
Se na seara do Direito Privado, onde de regra os direitos
tutelados são disponíveis, tal vício é capaz de invalidar o ato jurídico, com
muito mais razão em sede de Direito Público, temos como viciado e de nenhum
valor o mandato outorgado aos legisladores, por meio do voto do eleitor que
atuou, nessa sua especial forma de consentimento, por encontrar-se em erro
insuperável.
Voltamos a trazer a lição de José Afonso da Silva quando
afirma que "Para que o voto constitua legítima expressão da vontade do
povo, para que seja função efetiva da soberania popular, ‘deve revestir-se,
como disse Meirelles Teixeira, de eficácia política e ainda que represente a vontade
real do eleitor..." (xi) - grifo não original.
Ora, evidentemente que não há legítima vontade de um
eleitor que imagina estar votando em alguém com determinado conteúdo moral e
com certas qualidades pessoais e dado ideário, quando em verdade quem esta
sendo eleito é pessoa totalmente diversa, apenas o invólucro físico, o corpo,
tanto quanto o nome, a identificação desse corpo e que são os mesmos.
Para utilizarmos um pouco de ironia, seria o caso dos
eleitores reclamarem junto aos órgãos de defesa do consumidor! Afinal o produto
(e hoje a propaganda política é toda desenvolvida por agências de publicidade)
anunciado não corresponde ao que foi "adquirido".
Além dessa primeira e fundamental ilegitimidade dos
legisladores, que já retira aquela aura de "res sacra" que se atribui
à lei em nosso país, há que se observar ainda, a ilegitimidade da própria
norma.
Visto ser a finalidade do Estado, em última análise, o
bem comum, o bem estar da sociedade, a lei, que pauta os indivíduos e a própria
atividade estatal, deve sempre estar direcionada a esse propósito. O saudoso
Hely Lopes Meirelles, nos ensinava que "Os fins da administração pública
resumem-se num único objetivo: o bem comum da coletividade administrada. Toda atividade
do administrador público deve ser orientada para esse objetivo. Se dele o
administrador se afasta ou se desvia, traí o mandato de que está investido,
porque a comunidade não institui a administração senão como meio de atingir o
bem-estar social. Ilícito e imoral será todo o ato administrativo que não for
praticado no interesse da coletividade." (xii)
Ora, utilizando-nos novamente da analogia, como fizemos
acima em relação ao Direito Civil, e agora, com o Direito Administrativo, é
valido lembrar que o ato administrativo que é praticado com desvio de
finalidade é ineficaz. A lei, embora não seja, evidentemente, um ato
administrativo, tem como finalidade assegurar a satisfação física e moral dos
integrante de dada sociedade e, violando tal finalidade, certamente perderá a
legitimidade.
Finalmente, buscando no Direito Constitucional, o
conceito de legitimidade da lei, nos socorremos novamente dos ensinamentos de
José Afonso da Silva quando afirma que "legitimidade e legalidade nem sempre
se confundem. Lembra bem D’Entrève: ‘Legalidade e legitimidade cessam de
identificar-se no momento em que se admite que uma ordem pode ser legal, mas
injusta’. Propõe, por isso, a recuperação do liame entre legalidade e
legitimidade, sob bases diferentes, a partir do abandono da noção puramente
formal da legalidade, definindo-a como ‘a realização das condições necessárias
para o desenvolvimento da dignidade humana’, como quer a nossa Constituição
(art. 1º, III), pois o ‘princípio da legalidade não exige somente que as regras
e as decisões que comportem o sistema sejam formalmente corretas’. Ele exige
que elas sejam conforme a certos valores, a valores necessários ‘à existência
de uma sociedade livre’, tarefa exigida expressamente do Estado brasileiro (art.
3º, I)."
Certamente que a lei, que não cumpre a finalidade última
da existência do Estado, também não pode ter validade.
Do exposto, a conclusão lógica que se extraí é que as
leis brasileiras padecem de falta de legitimidade, a um, por vício na formação
do Poder Legislativo e, a dois, pelo desvio da finalidade que deve nortear
sempre a atividade de qualquer poder do Estado, que é o bem do povo.
É verdade que muitas leis, embora emanadas de um poder
legislativo com sérios problemas de legitimidade, conforme abordamos
anteriormente, cumprem a finalidade precípua da norma, que é a busca do bem
estar social, assim, certamente que adquirem legitimidade pela aceitação da
própria sociedade. Há uma legitimação direta e posterior da norma.
Mencionando a possibilidade da legitimação posterior,
embora em sede de constituição, faz sólida consideração Arthur Pinto Filho em
seu trabalho "Constituição, Classes Sociais e Ministério Público",
que tem perfeita aplicação ao presente estudo, sendo válida também quanto a
legitimação posterior de lei. Diz referido autor que "Pode ocorrer
perfeitamente, em determinados casos, a legitimação de uma Constituição,
situação que ocorre sempre que um determinado texto, ao entrar em vigor tenha
escassa legitimidade. Mas, ao depois, mercê de uma série de fatores, acaba por
encontrar o mesmo texto, na mesma sociedade, um grau razoável de apoio, de
legitimidade." (xiii)
Esse portanto, o panorama por nós vislumbrado, em relação
ao nosso ordenamento jurídico.
Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=22