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Ameaça à soberania nacional e tratados
internacionais
Reginaldo de Castro*
O Brasil assina em média um tratado internacional por dia, do qual, em
regra, ninguém toma conhecimento ¾ mídia, Legislativo ou opinião pública. Essa
constatação é suficiente para fazer soar o alarme da soberania nacional. É ela
que está em jogo, num processo distorcido como este. Raramente se discute o
tema, que envolve interesses fundamentais do país. Mais transparência é o que
se pede.
A questão está entregue à órbita burocrática do Itamaraty, que decide a partir
de critérios que não chegam ao conhecimento público. O que predomina, em geral
¾ e basta examinar o teor da maioria dos tratados firmados ao longo dos últimos
anos ¾, é a vontade dos países mais poderosos, sem que a sociedade brasileira,
por meio de suas instituições políticas, tenha o direito de intervir. Vez ou
outra, chega ao conhecimento público um ou outro tratado, cujo teor de
submissão extrapola. É o caso, por exemplo, daquele que autorizava o uso da
Base Espacial de Alcântara, no Maranhão, pelos Estados Unidos.
O tratado simplesmente desapropriava em favor dos norte-americanos aquele
espaço territorial estratégico, localizado nas margens da Floresta Amazônica,
ao qual o Estado brasileiro não teria acesso, nem qualquer tipo de ingerência,
não podendo sequer examinar os contêineres dos locatários na alfândega do
aeroporto.
Pior: não poderia aplicar os recursos obtidos com a locação em pesquisa
espacial, segundo rezava uma de suas cláusulas. Ou seja, nem o direito de
decidir o que fazer com os recursos apurados nós teríamos. Esse tratado,
felizmente, chegou ao Congresso, foi discutido, denunciado e rejeitado. Nem por
isso, no entanto, gerou qualquer reação ao modelo em voga de tratamento burocrático
e rito sumário, sem visibilidade pública, aos acordos internacionais.
Recentemente, por exemplo, outro tratado, lesivo ao interesse público, foi
firmado por delegados ou meros burocratas, com a finalidade de ressuscitar
cláusulas da Convenção de Varsóvia, revogadas pelo Código de Defesa do
Consumidor, que impõe às empresas aéreas, internas e externas, a obrigação de
indenizar o extravio de bagagem, na proporção da perda e não mais com
obediência às pífias tarifas fixadas no texto original da mencionada Convenção.
Atendidos foram os interesses das empresas aéreas que não querem, é óbvio, que
o Judiciário tenha a liberdade de fixar a indenização à altura do prejuízo.
Os consumidores e o próprio Poder Judiciário, foram surpreendidos pela
docilidade de nossos negociadores internacionais, muito mais quando a proteção
ao consumidor, entre nós, é dever constitucional do Estado (art. 5º, XXXII,
C.F.). A Convenção de Varsóvia, da qual o Brasil é signatário, foi um avanço. O
tratado que lhe impôs um aditivo, restabelecendo o critério tarifário, um
retrocesso. O mais grave é que de nada disso participou a opinião pública e
seus representantes políticos se limitaram a homologá-lo, certamente sem o
cuidado necessário. E as empresas aéreas celebraram. O Poder Legislativo
precisa estabelecer um mecanismo prévio de avaliação desses tratados, que, uma
vez aprovados, adquirem força de lei que muitos entendem ser irrevogável e
irretratável. O mais sensato é a instituição de uma comissão mista, de
senadores e deputados, que passem a supervisionar esses acordos, dando-lhes
mais transparência e garantindo, assim, os interesses do país.
Há poucas semanas, veio de um norte-americano, o historiador brasilianista
Thomas Skidmore, a inesperada recomendação para que o Brasil seja mais
nacionalista no trato de seus interesses. Ele se
referia a atitudes dos governos recentes (não excluindo o atual) que, no afã de
atrair e agradar investidores, se esquecem de agradar ao próprio país.
O Brasil é um país importante, oitava, nona e agora décima economia do planeta,
um dos mercados mais promissores do mundo. Não precisa se curvar para atrair
investidores, nem tem mais o direito de se subjugar a interesses externos em
detrimento dos seus.
É hora de fato de estabelecer novos paradigmas em questões vitais, como os
tratados internacionais, submetidos a ritos sumários e quase secretos, que
mantêm o povo à margem de decisões que muitas vezes comprometem esta e as
gerações futuras. Se nada for feito, em breve estaremos correndo o risco de revogar
o Grito do Ypiranga.
Revista Consultor Jurídico, 23 de junho de 2003.
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