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O processo de
formação da ALCA e a posição brasileira:
implicações jurídico-diplomáticas
Thales Castro
sócio-diretor da Globalplan Consultoria
Internacional, professor adjunto da Universidade Católica de Pernambuco e da
Faculdade Integrada do Recife, bacharel em Relações Internacionais e em
Economia e mestre em Relações Internacionais pela Indiana University of
Pennsylvania (EUA), doutorando em Ciência Política pela UFPE
I. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Os
conceitos de Estado e de Direito têm sofrido drásticas modificações desde a
segunda metade do século XX, que nos sugere uma reavaliação crítica quanto aos
processos de formulação e execução da política externa. Antes, no entanto,
cumpre ressaltar algumas caracterísitcas historicistas e condicionantes
politológicas do atual cenário internacional, notadamente de prepoderância
unimultipolar (Huntington) com eixo norteador hegemônico norte-americano, embora
alguns teóricos considerem a existência de uma poliarquia no cenário externo
hodierno.
O
cenário internacional do pós-guerra (1939-1945) fora esterilizado por uma
bipolaridade de confronto entre o Leste e o Oeste, cujas matrizes
doutrinário-ideológicas se firmaram entre a democracia liberal e o comunismo
autárquico, respectivamente. Não somente se encontrava em debate acirrado, sob
a constante ameaça nuclear em escala global, tais matrizes, mas também o
próprio papel da sociedade na construção do Estado. Concernente ao paradigma
econômico, o liberalismo, o capitalismo democrático e sua destruição
criadora (J. Schumpeter) e a economia de mercado, e, por outro, o
planejamento centralizado socialista do Estado Soviético, constituiu foco de
tensões durante a Guerra Fria e seus vários desdobramentos ao longo de 45 anos.
Os primeiros versos do poema "Nosso Tempo" do itabiarano Carlos
Drummond de Andrade escrito em 1945, caracterizam bem o contexto de
ambivalência internacional que ora se iniciara: "Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos".
Com
o esfacelamento do Império Soviético em dezembro de 1991, inicia-se, desta
forma, o sistema externo polaridades indefinidas, assim definidas por Celso
Lafer ou ainda definido pelo internacionalista Samuel Huntington, como já
dissemos, por unimultipolaridade. Outros epicentros de poder, como a Europa
pós-Maastricht (1991), pós-Amsterdam (1997) e pós-nice (2001) e o Japão, além
da própria República Popular da China e da Índia – maior democracia do mundo –
emergiram como atores precípuos deste sistema. (1) O pós-guerra
fria, ao mesmo tempo que acelerou o processo de globalização, conseqüenciando a
formação do Mercosul, com seus crescentes fluxos de comércio, de informação e
de intercâmbio cultural, eclodiu, outrossim, faxinas étnicas e guerras civis.
Este
ainda é tempo de perplexidades e antagonismos. Ao passo que Estados se
unificam, dando nova roupagem ao conceito de soberania, até pouco tempo um
baluarte intocável do Estado desde a Paz de Westfáfia em 1648, outros
desaparecem totalmente ou tornam-se independentes, como é o caso do Uzbequistão
em 1991 e de Palau em 1994. Há, outrossim, uma gritante disparidade
sócio-econômica nos três-quartos do planeta que vivenciam as vicissitudes do subdesenvolvimento.
(2) A temática de discrepância sócio-econômica e também de assimetria de
representatividade política das regiões de industrialização tardia no entorno
do Mercosul (diplomacia econômica Brasil com a ALCA) é logo lembrada no que
tange a amplitude de "perplexidades e antagonismos".
II. BREVES NOTAS ACERCA DO PROCESSO
GLOBALIZANTE
O
entorno político-filosófico acerca dos processos globais e regionais hodiernos,
resultantes da intensa interdependência transnacional, ainda busca suas
próprias estruturas abalizantes, particularmente no que tange à soberania
nacional. O lato debate acerca da modernidade, como síntese histórica primaz
das correções das injustiças sociais, remonta-nos ao dizer de Jürgen Habermas
quando afirma que a modernidade é um projeto inacabado. De fato, faz-se
necessário equacionamento crítico da soberania nacional (summa potestas),
diante das vertiginosas mudanças sistêmicas. Marx defina com rigor e
propriedade tal processo qualificando-o como alienação ontológica, que ainda
repercute, de forma significativa, os âmbitos atuais de indentificação cultural
do sujeito cognoscente diante do desterritorializante processo de globalização
e regionalização. (3)
Concepções
teóricas acerca do Estado integralizado ou do Estado geoeconômico em âmbito
sub-regional dos vários blocos deverão tomar forma na conjuntura mundial atual.
(4) A proposta norte-americana com a ALCA a partir de 2005 é
concebida como de primeiro nível integracional (Tipologia de Bela Balassa, de acordo
com Mozart Foschette) e, inegavelmente, distorce grande parte dos paradigmas
conceituais e definidores do Estado em referência a essa configuração. Ao que
se parece, não tem havido sistemática evolução paradigmática e conceitual do
Estado diante do franco processo de globalização que, podemos sinteticamente,
definir em quatro grandes matrizes: globalização produtiva, globalização
especulativo-financeira, globalização assimétrica e globalização solidária.
(5)
Para
tanto, elaboramos quadro (Tabela 1) de correlação na próxima página para melhor
visualizarmos a problemática de falta de atualização conceitual e paradigmática
do Estado nas Relações Internacionais conjunturalmente – que, inegavelmente,
constitui óbice em uma mais ampla, significativa e crítica avaliação do Estado
e seu papel no cenário externo de hoje. Deve-se, à guisa de explanação da
construção desta tabela, ater não ao grau de valoração da globalização
(meramente atribuindo o binômio positivo/benéfico – negativo/maléfico),
mas sim às suas conseqüências residuais na estabilidade do Estado e de sua
política externa. Esse critério elaborado pelas nossas observações traz nova
luz à necessidade de atualização da teoria do Estado e de seu poder no presente
momento histórico de unimultipolaridade. A tabela foi arquitetada a partir da
nossa observação da existência de múltiplos conceitos (muitos dos quais,
acríticos e distorcidos) atribuídos ao amplo escopo do processo globalizante em
vigor.
Tabela
1
Correlação
entre globalização, grau de volatilidade e estabilidade do Estado
III.
POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA: EIXOS DIRETIVOS, FORMULAÇÃO E EXECUÇÃO
A
leitura do texto constitucional de 5 de outubro em seu Artigo 4 serve como
referência dos padrões indentificadores das relações internacionais do Brasil. Prima
facie, para se aprofundar no que seriam os pontos principais da política
externa brasileir, faz-se necessário adentrar nos focos do interesse nacional.
Isto é, a síntese da política externa de qualquer país se dá pelo substrato de
de interesses emanados pelas manietações dos variados setores da sociedade
civil e do Estado.
Como
país de vocação pacífica, o Brasil dá ênfase no multilateralismo, cujo eixo
normativo se encontra na Organização das Nações e demais agências
especializadas e órgãos reguladores. Em seu texto constitucional de 1988, o
Brasil defende a causa da paz e a defesa da integridade territorial e a unidade
nacional em prol do progresso de seu povo. O parágrafo único externa o ímpeto
de defesa do Brasil do afã de criação de uma comunidade latino-americana de
nações. Antes da ALCA, o Brasil já vivenciara positiva experiência integrativa
o Cone Sul com a assinatura e posterior ratificação do Tratado de Assunção em
1991, entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Consolidado ainda mais pelos
Protocolos de Brasília, de dezembro de 1991, e de Ouro Preto de dezembro de
1994, o Mercosul tem fornecido as bases para uma integração salutar e em franco
processo de crescimento e hoje constitu prioridade na agenda externa nacional.
(6) A Declaração de Ushuai, Argentina, em dezembro de 1998, além de
corroborar o ímpeto democrático da integração, consolida a necessidade de
integração ética – elemento central em qualquer formação de bloco geoeconômico.
No cerne dos estudos acerca do processo de formulação e execução de política
externa sobre integração geoeconômica, devemos ter em mente o conceito
entrópico do poder, em sentido amplo e pluridimensional, como elemento
definidor da ordem normatizante e consubstanciadora da diplomacia, como elo os
interesses da nação no plano exterior. (7) No caso da ALCA, uma
iniciativa norte-americana externada na I Cúpula das Américas em Miami, em
dezembro de 1994, a posição político-diplomática brasileira, como asseverada
pelo Embaixado Graça Lima, é que:
"Interessa-nos
negociar um programa de liberalização comercial em âmbito continental na medida
em que sejam contemplados os interesses essenciais dos 34 países do hemisfério,
se alcance um equilíbrio de ganhos e concessões e contribua para promover a
prosperidade de nossos povos." (8)
Ademais,
é importante salientar que há, notadamente, certo desencaixe entre a práxis
diplomática e a voz ecoada dos setores empresariais brasileiros, sobretudo de
pequeno e médio portes, com relação à ALCA. Percebe-se que há prática desleal
de negociação e de prática comercial entre os Estados Unidos e o restante dos
34 países do hemisfério – excluindo Cuba por questões históricas bilaterais
entre os supra-citados países que remonta à crise dos mísseis de Cuba em
outubro de 1962.
IV. EM BUSCA DE SÍNTESE CONCLUSIVA
As
principais decisões adotadas desde a Cúpula de Miami têm correspondido a aos imperativos
defendidos pelo Brasil nas diversas instâncias desde Miami (1994), passando por
Denver (1995) e demais reuniões decorrentes, até culminar, mais recentemente,
em Québec em abril de 2001. Na Reunião Ministerial de Belo Horizonte (maio de
1997), presidida pelo Brasil, adotou-se um conjunto de princípios para as
futuras negociações que são consideradas essenciais para o processo
liberalizante hemisférico: processo decisório por consenso; "single
undertaking" ou indissolubilidade do pacote negociador; coexistência da
ALCA com acordos bilaterais e sub-regionais de integração e de livre comércio
mais amplos ou profundos; e compatibilidade da ALCA com os acordos da
Organização Mundial de Comércio (OMC). Esses princípios permitem que as futuras
negociações sobre uma ALCA se realizem de forma equilibrada, gradual,
democrática e congruente com as normativas da OMC, como querem os integrantes
do MERCOSUL. A estrutura político-decisória pactuada em São José foi a
seguinte, que teve amplo apoio dos países da América Latina:
-
Reunião de Ministros,
responsável pela supervisão e direção superiores das negociações, a convocar-se
pelo menos a cada 18 meses;
-
Comitê de Negociações Comerciais, integrado pelos Vice-Ministros Responsáveis
por Comércio,
encarregado da orientação permanente das negociações, a reunir-se pelo menos
semestralmente;
-Nove
Grupos de Negociação, sobre os seguintes temas: acesso a mercados; investimentos;
serviços; compras governamentais; solução de controvérsias; agricultura;
direitos de propriedade intelectual; subsídios, anti-dumping e direitos
compensatórios; e políticas de concorrência. Cada grupo terá um presidente e um
vice-presidente para o primeiro período de funcionamento, de 18 meses, conforme
o quadro seguinte:
Grupo
de Negociação |
Presidência |
Vice-Presidência |
Acesso
a Mercados |
Colômbia |
Bolívia |
Investimentos |
Costa
Rica |
República
Dominicana |
Serviços |
Nicarágua |
Barbados |
Compras
Governamentais |
Estados
Unidos |
Honduras |
Solução
de Controvérsias |
Chile |
Uruguai/Paraguai |
Agricultura |
Argentina |
El
Salvador |
Direitos
de Propriedade Intelectual |
Venezuela |
Equador |
Subsídios,
Anti-Dumping e Medidas Compensatórias |
Brasil |
Chile |
Políticas
de Concorrência |
Peru |
Trinidad
e Tobago |
A presidência do processo da ALCA será rotativa, cabendo ao
mesmo país sediar a próxima reunião ministerial e presidir o Comitê de
Negociações Comerciais, como segue: Canadá (maio de 1998 a outubro de 1999);
Argentina (novembro de 1999 a abril de 2001); Equador (maio de 2001 a outubro
de 2002); e co-presidência entre Brasil e Estados Unidos (de novembro de 2002 a
dezembro de 2004, ou até a conclusão das negociações).
A
deslegitimação dos paradigmas conceituais do Estado, como centro da dinâmica
internacional, e particularmente como elemento inerente ao processo integrativo
da ALCA, causa muitos uma série de problemáticas estruturais nos vários da
sociedade civil organizada sobre a própria vitalidade e padrão triunfalista do
Capitalismo neoliberal pós-bipolaridade – haja vista a relativamente frustrada
tese de Fukuyama de "fim da história". (9) Assim, podemos
vislumbrar os fatores causais para a crise sistêmica da economia global ou da
"nova economia", tornando-a parte integrante da corrosão
deslegitimante do Estado e do "Capitalismo senil" (Jorge Beinstein) –
o que vem a reforçar nossa tese central de maiores e mais aprofundados estudos
sobre a temática em apreço. Não se pode conceber que uma obra tão grande
engenharia econômico-diplomática possa ser alvo de apenas reducionismos ou de
conceitos parcializados baseados meramente em ideologismos. A ALCA para de
facto trazer ganhos sociais e econômicas para significativa parcela da
população nacional precisa ser investigada sob o ponto de vista do humanismo
inclusivo. Para tanto, faz-se necessário relembrar as palavras do poeta e
diplomata pernambucano João Cabral de Melo Neto em seu poema Morte e Vida
Severina: "Podeis aprender que a vida é sempre a melhor medida; mais
que a medida do homem não é a morte, mas a vida".
NOTAS
01.
Campos, Roberto. "Eurófilos e Eurocépticos". Artigo publicado no
jornal "O Globo" em janeiro de 1999.
02.
Beinstein, Jorge. Capitalismo Senil: A Grande Crise da Economia Global. Rio
de Janeiro, Record, 2001.
03.
Maiores informações e aprofundamentos acerca dessa temática vide Cf
Kroll, J. "The Complexity of Interdependence". International
Studies Quarterly. Número
37, Austin, 1993.
04.
Vide, por exemplo, pertinente artigo escrito pelo Embaixador Roberto Campos em
janeiro de 1999, no jornal O Globo, intitulado "Eurocéticos e
Eurófilos".
05.
Esses conceitos acerca da globalização foram angariados em diversas fontes,
inclusive, algumas já previamente citadas. Vide, precisamente, Cf.
Foschette, Mozart. Relações Econômicas Internacionais. São Paulo,
Aduaneiras, 2001.
06.
Listamos apenas algumas das muitas obras de consulta para a feitura do presente
artigo: Almeida, Paulo Roberto. Relações Internacionais e Política Externa
Brasileira. Porto Alegre, UFRGS, 1999. Gropalli, Alessandro. Doutrina do
Estado. São Paulo, Saraiva, 1962. Heller,
Hermann. Teoria Del Estado. México DF, Fondo de Cultura, 1942. Kelsen. Mello, Celso. Curso de Direito
Internacional Público. 11a Ed. Rio de Janeiro, Renovar, 1996.
Saraiva, José Flávio Sombra, Org. Relações Internacionais: Dois Séculos de
História. Brasília, FUNAG, 2001.
07.
Não se pode olvidar as contribuições seminais de Michel Foucault acerca do
estudo do poder e seus aparelhos estatais de dominação e repressão. Frases
célebres do dito filósofo francês, como a reformulação do aforismo de
Clausewitz "a política é a continuação da guerra por outros meios",
têm centralidade em nossa proposta de teorização das Relações Internacionais de
acordo com o Elementismo. Nesse contexto, vale mencionar, genericamente, suas
duas formas de poder: o poder disciplinar e o biopoder. Cf. Foucault,
Michel. Em Defesa da
Sociedade. São Paulo,
Martins Fontes, 2000.
08.
Lima, Graça. "A Alca: Alguns Comentários sobre as Reuniões de São José,
Santiago e Buenos Aires" in Repertório de Política Exterior. Brasília,
DF: Ministério das Relações Exteriores, 2001.
09.
Fukuyama, Francis. El Fin de la Historia y el Último Hombre. 5ª. Edição. Buenos Aires, Planeta, 1998.
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Retirado de: www.jus.com.br