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Sistema de solução de
controvérsias no direito comunitário – possibilidades de sua adoção pelo Brasil1
Luiz Antonio Soares Hentz
Advogado, Juiz de Direito aposentado,
Professor de Direito Comercial e atual Diretor da UNESP em Franca e autor,
dentre outros, do livro "Direito Comercial Atual", Saraiva.
Introdução
A perspectiva de
estudar, discutir e compreender um sistema jurídico novo motivou este professor
a propor a pesquisa que ora se encerra, iniciada ainda no ano de 1997. Naquela
ocasião, a expressão direito comunitário nem era bem compreendida entre
nós, que sempre preferimos reportar-nos à integração comunitária e,
portanto, o ramo do direito a regulá-la seria o direito da integração (assim
concebido didaticamente).
Alguns poucos
autores e pesquisadores, mais próximos geograficamente dos países
sul-americanos parceiros do Brasil no processo de integração denominado
Mercosul - Mercado Comum do Sul, debruçavam-se sobre os tratados editados numa
perspectiva supranacional, mas sempre ressalvando as dificuldades na adoção pelo
País de princípios verdadeiramente comunitários. A barreira sempre era a
soberania.
Na verdade, a
proposição nasceu do esforço de compreender os problemas jurídicos e, mais
precisamente, a forma de superá-los. O conhecimento do sistema europeu era
essencial - o que se fez com profundidade e que agora se apresenta de forma
sintética.
Nesse meio, a
dilucidação de uma questão em particular robusteceu a pesquisa: qual a
viabilidade de instalação e funcionamento no Brasil de um tribunal
supranacional?
As respostas a
essas questões se encontram em seguida, com o suporte necessário para o
equacionamento jurídico do problema.
Direito
comunitário/integracionista: o que é, como atua?
A existência de
uma ordem jurídica comunitária, nova, resultante das limitações pelos
Estados-membros dos seus direitos soberanos, constitui direito comunitário. O
direito comunitário é pouco estudado e discutido no Brasil, o que justifica
essas linhas introdutórias adicionais.
O que é?
Os Tratados
pelos quais se delineou e se avançou na formação da atual União Européia, ao
lado de princípios gerais de direito comunitário, evoluíram em direção a uma
espécie de constituição da Comunidade, incluindo a salvaguarda de direitos
individuais. Segundo Dagtoglou2, as características principais dessa
ordem jurídica nova são:
"a) as
instituições comunitárias específicas e independentes, que, mesmo sem uma
competência legislativa geral, são dotadas pelos Tratados de poderes mais
amplos, alargando continuamente a competência comunitária;
b) os particulares
enquanto sujeitos titulares de direitos ao lado dos Estados-membros;
c) a
aplicabilidade direta de certas regras de direito comunitário;
d) o primado do
direito comunitário sobre os direitos nacionais, incluindo o direito
constitucional e mesmo a proteção constitucional dos direitos individuais;
e) a criação não
somente de direitos e obrigações, mas também de processos obrigatoriamente
prescritos para a verificação de violações e a aplicação de sanções,
nomeadamente a consagração da jurisdição obrigatória do Tribunal de Justiça, e
do caráter obrigatório das suas decisões;
f) a
responsabilidade da Comunidade por infrações ao direito comunitário que causem
um prejuízo".
Como atua?
Ressalta-se que
a nova ordem jurídica da Comunidade Européia pressupõe e a um só tempo cria a
unidade. O mesmo autor - Dagtoglou3 - explica que a Comunidade é por
excelência uma comunidade de direito no sentido de que as relações entre os
sujeitos da Comunidade são relações entre sujeitos de direito e são legalizadas
num elevado grau sob o controle do Tribunal que garante o respeito do direito
(art. 164 do Tratado).
Por essa razão,
o direito comunitário constitui fator importante de unificação; não só os
Estados-membros mas também os particulares foram reconhecidos como sujeitos
relevantes para esse direito. Vai daí a importância especial do Tribunal de
Justiça da Comunidade Européia.
Depois de muitas
reservas e hesitações, a jurisprudência dos tribunais nacionais reconhece a
autonomia e o primado do direito comunitário4.
Esse enfoque
torna-se, pois, necessário, também no Brasil, em vista do plano de ingresso do
País no mundo globalizado - e da realidade atual, em que integramos, ainda que
em grau inicial e para fins notadamente comerciais, um bloco regional de
países, o Mercado Comum do Sul - Mercosul (no momento em que se escrevem essas
linhas, não se acredita na subsistência do Mercosul, quiçá nem da ALCA - Área
de Livre Comércio das Américas, ainda sem acerto de data entre os países para
entrar em vigência).
Salvaguarda jurisdicional da ordem
jurídica comunitária
Nós, neste
estudo, consideramos, como fizeram os primeiros doutrinadores do direito
comunitário, especialmente em Portugal, que a ordem jurídica instituída pelo
nascente direito comunitário não seria verdadeiramente eficaz se as normas que
a integram não se beneficiassem de sólida garantia jurisdicional do respeito
que lhes é devido por parte de todos os seus destinatários (órgãos
comunitários, Estados e particulares)5.
O aproveitamento
das jurisdições nacionais como tribunais comuns da ordem jurídica comunitária
garantiram que uma parcela considerável das normas de origem comunitária
pudesse ser de disposições diretamente aplicáveis. Assim, aos tribunais internos
compete a aplicação das normas de direito comunitário nos litígios que ocorram
no quadro das relações entre particulares (indivíduos ou empresas) ou entre
particulares e os Estados-membros da Comunidade.
Mota de Campos
ressalta, ante o exposto, que o Tribunal de Justiça da Comunidade Européia e o
Tribunal de Primeira Instância estão dotados de meras competências de
atribuição, cabendo-lhes exercer a função jurisdicional apenas nos casos em que
a competência respectiva lhes for expressamente conferida6.
Pode-se
acrescentar, ainda, que o TJCE não tem natureza de um tribunal hierarquicamente
superior aos tribunais nacionais, habilitado por isso a revogar ou reformar as
decisões destes proferidas na área do direito comunitário. Cabe-lhe, no
entanto, nos termos do art. 164 do Tratado, assegurar o respeito do direito na
interpretação e aplicação dos tratados, em adequado sistema de colaboração
entre as jurisdições nacionais e o TJCE, facultando, e às vezes obrigando,
àquelas submeter ao tribunal das comunidades as questões de interpretação do
direito comunitário ou de apreciação da validade dos atos da autoridade
comunitária (art. 177 do Tratado). Permite, dessa forma, assegurar uma
interpretação e aplicação uniformes do direito comunitário.
Ainda, segundo
Mota de Campos7, deram origem os tratados a um direito processual
comunitário, citando-se as disposições que figuram nos três Tratados
Comunitários (art. 31.º a 45.º e 88.º a 90.º do Tratado de Paris; 164.º a
188.º, 93.º, n. 2, 100.º-A, n. 4 e 225.º do Tratado CEE; e 136º a 160º do
Tratado CEEA), nos Protocolos relativos ao Estatuto do Tribunal, anexos a cada
um desses tratados; no Regulamento de Processo, elaborado pelo próprio
Tribunal, mas sujeito a aprovação unânime do Conselho (cf. art. 188.º do
Tratado do CEE); no Regulamento adicional e nas Instruções ao Escrivão.
O processo no
Tribunal de 1.ª Instância é regido pelo título II do Estatuto do Tribunal de
Justiça, complementando-se, na medida do necessário, pelo Regulamento
Processual adotado nos termos do n. 4 do art. 168º-A do Tratado CEE.
Há, ademais,
processos comuns e processos especiais; estes, são os expressamente designados
na lei. O processo comum abarca vias contenciosas muito diversificadas,
configuradas como ações ou como recursos, obedecendo a todas as regras e
princípios fundamentais comuns no que toca ao desenrolar do processo.
O instituto da supranacionalidade
A integração,
seja aquela alcançada pelos países europeus, seja a que ora é buscada por
alguns países latino-americanos, entre esses o Brasil, não pode ser buscada sem
um ordenamento jurídico comum. No dizer de D´Angelis8, o ordenamento
jurídico comum assegura a existência e continuidade e, ao mesmo tempo, confere
a uniformidade de interpretação e aplicação.
Na Europa, o
alcance desse ideal foi possível porque o ordenamento jurídico especial contou
com a conseqüente diluição do conceito de soberania estatal - criando, assim,
um recurso denominado supranacionalidade9.
Sobre o que
significa na prática o abandono do conceito absoluto de soberania, como vem
sendo considerado nos direitos constitucional e internacional aplicáveis na
quase-totalidade dos países do globo, ninguém é capaz de dizer. Não significa
muito, certamente, em termos práticos, pelo que se tem visto, mas implica o
abandono de tradições arraigadas em torno do conceito de Estado nacional.
Alguns autores,
como Borba Casella10, afirmam que não há perda de soberania em face
da supranacionalidade: considera-se que o Estado-membro cede parte de sua
soberania e liberdade de ação em certas esferas, gerando supressão da
soberania, mas a "reestruturação de sua regulação", na medida em que
as instâncias comunitárias "não eliminam a condição de sujeitos de direito
internacional dos Estados-membros, mas tão-somente se superponham parcialmente
a estes".
Não haveria
perda, mas "restrições ao exercício da soberania".
Fausto de
Quadros11 adota a posição de que há uma delegação e não uma
transferência de poderes soberanos dos Estados-membros às comunidades. Explica
que enquanto transferir significa ceder definitivamente os respectivos
poderes, para nunca mais se poder reavê-los, delegar tem o sentido de o
delegante não poder exercer, enquanto durar a delegação, os poderes delegados,
mas de se conservar no sujeito a quo a titularidade dos poderes
respectivos e, portanto, a faculdade de, cessada a delegação, recuperar
automaticamente o pleno exercício dos poderes delegados.
Esse mesmo
pensar é adotado por Mota de Campos12.
Esse autor,
dentre outros citados por D´Angelis13, reporta-se à figura da
concessão temporária de um número limitado de direitos soberanos dos
Estados-membros para a comunidade. Dar-se-ia a transferência de competências na
perspectiva do funcionamento do mercado comum para a defesa do interesse global
das comunidades.
Convém lembrar que o conceito de
supranacionalidade não se encontra expresso nos tratados que formam o arcabouço
jurídico da atual União Européia. Na verdade, foi se formando gradativamente
para justificar e caracterizar o fenômeno comunitário. Segundo D´Angelis14,
embora a expressão supranacionalidade tenha deixado de figurar nos
textos convencionais, o Tratado de Fusão e o Tratado de Maastricht proclamaram
implicitamente o caráter supranacional das estruturas comunitárias ao validarem
o conceito sem usar o termo. Impõe-se afirmar, nesse passo, que um regime
integracionista não prescinde do conceito de supranacionalidade, embora esta
possa ser graduada, conforme as conveniências e em razão das diversas fases
previstas para a integração regional. Deslindar esse aspecto é o objetivo desse
estudo, conquanto estarmos nos limitando às possibilidades de implantação de um
dos órgãos da estrutura comunitária, qual seja, o Tribunal de Justiça.
As
possibilidades e as dificuldades de uma harmonização legislativa
Uma forma
alternativa à abdicação do conceito absoluto de soberania é a harmonização
legislativa. Todos os países integrantes do bloco adotariam legislações
aproximadas, não contraditórias e sujeitas a alterações ditadas por um
interesse comunitário.
Não há, no entanto,
nenhuma segurança na ordem constitucional brasileira que assegure ou valide um
sistema legislativo harmonioso com o dos parceiros. Quer-se dizer que a
soberania dos poderes da República no Brasil, notadamente do Poder Legislativo
e do Poder Executivo, não pode ficar sujeita à obrigação de legislar de modo
equiparativo, ou aproximativo, da legislação de outros países.
Mas esse foi o
método que seduziu, inicialmente, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai, que
passaram a buscar identidades nas suas legislações comerciais, creditícias e
tributárias. A validação do cheque de pagamento diferido, por exemplo, foi
adotada por aqueles países, por intermédio de leis, o que não encontrou
ressonância no legislador brasileiro, que nem sequer atualizou o sistema penal
para excluir da punição o cheque emitido sem a devida provisão de fundos para
apresentação em data certa posterior, embora os tribunais de longa data não
considerem existente o crime de estelionato nessa hipótese.
Essas breves
referências ao tema da harmonização legislativa servem para ilustrar a
quase impossibilidade de vingar semelhante sistema entre nós.
Uma visão geral acerca da
solução de conflitos no âmbito do direito comunitário
O Tratado de
Roma - instrumento plurinacional pelo qual se possibilitaram as gestões
necessárias para a criação e implementação de instituição supranacional de
objetivos comunitários -, firmado em 25 de março de 1957, deu a dimensão
institucional do que viria a ser a União Européia. Dispôs sobre a necessária
existência do Parlamento Europeu, de um Conselho, de uma Comissão e de um
Tribunal de Justiça15 16.
Tratava-se de
sedimentar um regime que se formara ao longo de muito tempo.
Pires17
rememora que desde o século XVI até nossos dias os meios tipicamente
político-diplomáticos de solução de controvérsias têm sido aperfeiçoados,
passando por entendimentos diretos, bons ofícios, mediação, consulta e
conciliação. Os métodos jurídicos, ou seja, a arbitragem e a solução judicial,
começaram a firmar-se gradativamente no final do século passado, encontrando
notável impulso institucional a partir das duas Conferências de Paz em Haia, do
Tratado de Versalhes e da Constituição da Liga das Nações.
A lenta
elaboração de sistemas jurisdicionais não limitados pelo princípio da soberania
absoluta dos Estados nacionais - ainda na opinião de Alice Pires -,
especialmente a Corte Institucional de Haia e o Tribunal de Justiça da
Comunidade Européia, representam esforços bem-sucedidos de solucionar
controvérsias entre Estados e reforçar o primado da razão, em que antes já
predominou a utilização da força.
Completa-se este
tópico mencionando que a Corte de Luxemburgo representa uma das garantias mais
eficazes de estabilidade comunitária no continente europeu, bem como um
controle mais estrito da legalidade das ações dos países-membros da União
Européia. Juntamente com o Tribunal do Pacto Andino, constitui exemplo claro da
importância de se manter a unidade jurídica numa ordem comunitária em
construção, firmando a superioridade do direito comunitário sobre os
ordenamentos jurídicos nacionais.
A questão da soberania
A soberania
acaba sendo um obstáculo contrário ao estabelecimento de meios supranacionais
de solução de controvérsias.
Acentua Ventura
que a exacerbação do nacionalismo e a ênfase à soberania nacional são elementos
muito presentes na história dos países platinos e, por essa razão, é preciso
investigar as diversas concepções de soberania para a escolha de um dado modelo
de integração18.
No Brasil, as
acepções jurídicas de soberania predominantes são resultado das doutrinas
constitucionalista e internacionalista. Os defensores da primeira sustentam o
caráter absoluto do regime de soberania, como sendo esta um aspecto da
supremacia dos estados nacionais; os internacionalistas têm a visão de que o
caráter absoluto da soberania implica a negação do próprio direito
internacional19.
A busca por um
novo conceito de soberania é considerada uma necessidade para superação das barreiras
ao pleno estabelecimento de um regime de direito comunitário. É verdade - como
afirma Ventura, lembrando o aspecto destacado por Kelsen20 - que a
soberania, como concebida para esses efeitos, está mais em função dos
propósitos políticos dos governantes do que da finalidade do conhecimento
científico do Estado.
Convém lembrar
que no âmbito do Mercosul, o Tratado de Assunção, do qual o Brasil sabidamente
é um dos signatários, prevê a criação de um sistema de solução de
controvérsias, no seu Anexo III, dispondo inicialmente sobre as divergências
entre Estados, que deverão ser enfrentadas primeiro por negociações diretas
entre os litigantes, depois em etapas sucessivas pela atuação do Grupo do
Mercado Comum - GMC ou do Conselho do Mercado Comum - CMC21.
O Protocolo de
Brasília trata como obrigatória para os Estados-partes a jurisdição do Tribunal
Arbitral, constituído para, em cada caso, conhecer e resolver todas as
controvérsias mencionadas no seu texto.
Esclarece Pires
que o âmbito de aplicação do sistema de solução de controvérsias durante a fase
de implementação do Mercosul é limitado, justamente por seu caráter
transitório. "O sistema de solução de controvérsias adotado pelo Protocolo
de Brasília é marcado, sobretudo, pelo consenso e transitoriedade"22.
Assim, tem-se no
Brasil, em vigência, um sistema precário de solução de controvérsias no âmbito
comunitário ou integracionista, caracterizado por mecanismos diplomáticos em
que o sistema judicial é meramente a solução arbitral, mas que não afronta os
conceitos de soberania tão arraigados no sistema brasileiro, por sinal uma das
balizas constitucionais do Estado brasileiro (art. 1.º, I, da Constituição
Federal de l988)23.
A visão do problema no âmbito da Europa
unificada
O conhecimento,
a análise e as críticas à estrutura institucional comunitária adotada pela
Comunidade Européia são o pano de fundo de qualquer discussão sobre direito
comunitário. Pode-se dizer que seu nascimento e sua razão de ser estão até hoje
atrelados unicamente ao pioneiro sistema de regionalização europeu.
Daí o apego e as
referências obrigatórias à experiência dos analistas e estudiosos do problema
na União Européia.
Além das
instituições de direção - Conselho da União Européia e Comissão das Comunidades
Européias -, dos órgãos de consulta - Comitê Econômico-Social, Comitê das
Regiões - e do Sistema Europeu de Bancos Centrais - Banco Central Europeu e
Banco Europeu de Investimento -, encontram-se as instituições de controle.
Dentre estas, destaca-se o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (as
outras duas são o Parlamento Europeu e o Tribunal de Contas).
O controle
jurisdicional se exerce por meio de sanções, tidas por eficazes24.
Dispõe o art.
177 do Tratado da Comunidade Européia:
"O Tribunal
de Justiça é competente para decidir, a título prejudicial:
a)
sobre a interpretação do presente Tratado;
b)
sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições da
Comunidade e pelo BCE;
c)
sobre a interpretação dos estatutos dos organismos criados por ato do Conselho,
desde que este estatuto o prevejam.
Sempre que uma
questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de
um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre
essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal de Justiça
que sobre ela se pronuncie.
Sempre que uma
questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão
jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial
previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao
Tribunal de Justiça".
Esclarece-se que
o instituto do reenvio prejudicial objetiva obter do Tribunal de Justiça a
interpretação ou a apreciação de validade de uma norma comunitária, seja em relação
aos atos adotados pelas instituições, regulamentos, diretivas, decisões,
recomendações e pareceres, seja em relação aos acordos concluídos pela
Comunidade. Lobo acentua o fato de que os acórdãos prolatados em sede de
reenvio prejudicial - que constituem mais da metade das decisões do Tribunal -
são uma valiosíssima fonte de direito comunitário, denotando as características
próprias do ordenamento jurídico comunitário e sua originalidade em relação ao
direito internacional público25.
Diz ainda que o
Tribunal de Justiça considera o sistema de reenvio prejudicial a trave-mestra
do direito comunitário, essencial para a preservação do caráter comunitário do
direito constituído pelos tratados, garantindo que, em qualquer circunstância,
esse direito tem o mesmo efeito em todos os Estados-membros da União Européia.
Com base no
Tratado da Comunidade Européia pode-se dizer que o contencioso comunitário
direto compreende o contencioso de legalidade e o contencioso pleno. O primeiro
abrange o recurso de anulação, a exceção de ilegalidade e o recurso por
omissão.
Dispõe o art.
173 do Tratado da Comunidade Européia:
"O
Tribunal de Justiça fiscaliza a legalidade dos atos adotados em conjunto pelo
Parlamento Europeu e pelo Conselho, dos atos do Conselho, da Comissão e do
Banco Central Europeu, que não sejam recomendações ou pareceres, e dos atos do
Parlamento Europeu destinados a produzir efeitos jurídicos em relação a
terceiros.
Para o efeito, o
Tribunal de Justiça é competente para conhecer dos recursos com fundamento em
incompetência, violação de formalidades essenciais, violação do presente
Tratado ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação, ou em desvio de
poder, interpostos por um Estado-Membro, pelo Conselho ou pela Comissão.
O Tribunal de
Justiça é competente, nas mesmas condições, para conhecer dos recursos
interpostos pelo Parlamento Europeu e pelo Banco Central Europeu com o objetivo
de salvaguardar as respectivas prerrogativas.
Qualquer pessoa
singular ou coletiva pode interpor, nas mesmas condições, recurso das decisões
de que seja destinatária e das decisões que, embora tomadas sob a forma de
regulamento ou de decisão dirigida a outra pessoa, lhe digam direta e
individualmente respeito.
Os recursos
previstos no presente artigo devem ser interpostos no prazo de dois meses a
contar, conforme o caso, da publicação do ato, da sua notificação ao recorrente
ou, na falta desta, do dia em que o recorrente tenha tomado conhecimento do ato".
Afora o controle
jurisdicional, assim exercido, o contencioso pleno do Tribunal de Justiça da
Comunidade Européia compreende a ação de descumprimento de que trata o art. 169
do Tratado:
"Se a
Comissão considerar que um Estado-Membro não cumpriu qualquer das obrigações
que lhe incumbem por força do presente Tratado, formulará um parecer
fundamentado sobre o assunto, após ter dado a esse Estado oportunidade de
apresentar as suas observações.
Se o Estado em
causa não proceder na conformidade com este parecer no prazo fixado pela
Comissão, esta pode recorrer ao Tribunal de Justiça."
Compete, ainda,
ao Tribunal de Justiça conhecer dos litígios pertinentes:
"1. À
execução das obrigações dos Estados-Membros, decorrentes dos Estatutos do Banco
Europeu de Investimento, que tem os mesmos poderes da Comissão quanto ao
descumprimento pelos Estados das obrigações determinadas pelos Tratados;
2. Às
deliberações do Conselho de Governadores do Banco Europeu de Investimento,
podendo qualquer Estado-Membro, a Comissão e o Conselho de Administração do
Banco interpor recurso de anulação;
3. Às
deliberações do Conselho de Administração do Banco Europeu de Investimento,
podendo os Estados-Membros ou a Comissão interpor recurso de anulação por
violação de formalidades, nos casos expressamente previstos nos Estatutos do
Banco;
4. À execução
das obrigações resultantes dos Tratados e dos Estatutos do Sistema Europeu de
Bancos Centrais, tendo o Banco Central Europeu os mesmos poderes da Comissão em
caso de descumprimento das obrigações por parte dos bancos centrais
nacionais."
É unânime entre
os comentadores do sistema de controles comunitários o extremo acerto da
instituição, desde o início, do Tribunal de Justiça da Comunidade Européia26.
Mencionado desde 1950 como o garante de uma nova ordem jurídica e instalado em
1958, mantém a unidade européia como intérprete final e suprema do direito
comunitário. O seu primado sobre as regras de direito nacionais contrárias
representa os efeitos diretos do direito comunitário na ordem jurídica dos
Estados-membros.
As ações e recursos no Tribunal de Justiça
da Comunidade Européia
Não escapa ao
analista, com efeito, o fato de que o TJCE exerceu um papel destacado desde o
início na valorização das instituições comunitárias.
D´Angelis27
justifica a definição e a partilha de competências entre os Estados-membros e a
comunidade, afirmadas nas decisões do Tribunal, como um reforço da posição da
comunidade em face dos seus membros e do mundo extrabloco, conseguindo impor
aos Estados o respeito pela ordem jurídica comum e, ao mesmo tempo,
aprofundando um esquema de interdependência cooperativa no plano jurisdicional.
Como visto, o
mecanismo principal de que se vale o TJCE denomina-se reenvio prejudicial,
e, ao lado de outros instrumentos, adiante mais bem explicitados28,
teve destacada contribuição na formatação do espaço integrado e do direito
comunitário.
A ação de
incumprimento (arts. 169 a 171 do Tratado). Permite ao TJCE o controle do cumprimento,
pelos Estados-membros, das obrigações de que estão imbuídos por força do
direito comunitário. A quebra desse compromisso por parte de algum membro pode
ensejar a propositura da ação, pela Comissão ou por um outro Estado, o que pode
levar o TJCE a exigir a reposição da legalidade sob pena de sanção pecuniária.
Recurso de
anulação (art. 173 do Tratado). Permite aos Estados-membros, ao Conselho,
à Comissão e, eventualmente, ao Parlamento pedir ao TJCE a anulação parcial ou
total de atos comunitários emitidos por qualquer dos órgãos de direção, bem
como aos particulares solicitar a anulação de atos jurídicos que os afetem
direta e individualmente. É um instrumento de garantia do controle da
legalidade dos atos das instituições comunitárias contra incompetência, vício
de forma, desvio de poder e violação dos Tratados.
Ação por omissão
(art. 175 do Tratado). Permite ao TJCE, em decorrência de violação ao
Tratado, controlar a legalidade da inatividade de instituições comunitárias
(Conselho, Comissão, Parlamento) quando elas se abstiverem de agir ou de se
pronunciar a respeito.
Ação de
indenização (art. 178 combinado com o art. 215 do Tratado). Confere ao TJCE
a oportunidade de determinar a responsabilidade das instituições comunitárias
por danos que possam causar.
Recurso
ordinário. É
um remédio a ser interposto perante o TJCE visando a reforma de acórdãos de
primeira instância.
Reenvio
prejudicial (art. 177 do Tratado). Permite uma cooperação entre o TJCE e os
tribunais nacionais, proporcionando o respeito à autonomia destes e, ao mesmo
tempo, garantindo a aplicação descentralizada do direito comunitário.
Na explicação de
D´Angelis29, os juízes nacionais - os efetivos aplicadores do
direito comunitário -, diante de matéria que versa sobre interpretação e
validade de um dispositivo de direito comunitário, suspende o processo e
promove o reenvio prejudicial para solicitar ao TJCE que se pronuncie sobre a
norma comunitária. O TJCE então pronuncia-se quanto à melhor interpretação do
direito comunitário, cabendo à instância de origem aplicar a posição definida
pelo tribunal comunitário ao litígio em questão.
A esse rol de
instrumentos de garantia do pleno funcionamento do sistema supranacional,
pode-se acrescentar, mais de quarenta anos depois de sua implementação, uma
jurisprudência firme e fundada em princípios inarredáveis e que se foram
delineando a partir da hermenêutica do direito comunitário. Ao lado dos
princípios gerais de direito encontram-se princípios de direito comunitário,
princípios comuns interestatais e outras formas de integração igualmente
valiosas na afirmação de um sistema sem paradigma no mundo.
Relações entre o direito comunitário e o
direito interno
Uma discussão
por vezes abandonada, mas que em princípio foi seriamente considerada para fins
de implementação do Mercosul, sobretudo pelos demais parceiros sul-americanos
afora o Brasil, diz respeito à harmonização de legislações, sobre o que fizemos
breve explanação páginas atrás.
Alves30
lembra que a existência do direito comunitário não impede a subsistência dos
direitos nacionais, mas condena a total liberdade legislativa, o que
possibilitaria contornar ou substituir certas barreiras por novos obstáculos de
índole jurídica. E acentua que a harmonização das diferentes legislações dos
Estados-membros tem como finalidade eliminar discriminações, suprimir obstáculos
jurídicos à atividade econômica e pôr instrumentos jurídicos comuns à
disposição dos agentes econômicos.
No direito
comunitário europeu, a harmonização foi prestigiada amplamente na área fiscal,
por intermédio de diretivas (art. 100 do Tratado).
Ramos31,
ao falar das relações entre o ordenamento jurídico comunitário e os
ordenamentos nacionais dos Estados-membros, destaca o fato de que as ordens
jurídicas estaduais não desapareceram com a criação de uma ordem jurídica
própria de direito comunitário, daí que a organização do relacionamento entre
elas e o sistema jurídico comunitário se apresenta como uma questão nuclear
para a efetivação deste último. E, ademais, a execução da ordem jurídica
comunitária depende da execução, no interior dos Estados-membros, pelos mesmos
órgãos que garantem a sanção dos direitos nacionais.
O
inter-relacionamento jurídico decorrente da convivência do direito comunitário
com a ordem nacional vigente - que alguns chamam de federalismo jurídico32
- impõe que se ergam princípios, como retrorreferido, alguns deles que vale a
pena conhecer, nas suas essências, porquanto constituem os meios de adaptação
dos dois sistemas.
Princípio da
aplicabilidade direta. Por ele explica-se o fato de que a integração do
direito comunitário na ordem jurídica dos Estados se opera de pleno direito,
dispensando-se para o efeito qualquer forma especial de recepção, e que os
tribunais estaduais são assim obrigados a aplicar, como direito comunitário, as
disposições respectivas, enquanto os particulares são livres de as invocar
perante eles.
Princípio do
primado do direito comunitário. A especificidade e a circunstância de ter
origem numa fonte autônoma impõe que à aplicação do direito comunitário não se
pode opor um texto interno, não importando sua natureza e independentemente do
momento da sua criação.
Princípio da
uniformidade de aplicação. Nenhuma causa em que deva ser aplicada uma
regra comunitária pode vir a ser decidida num tribunal de um Estado-membro sem
que, para a interpretação de tal disposição, se recorra ao órgão comunitário
responsável pela garantia da interpretação uniforme da ordem jurídica
comunitária.
Princípio da
autonomia. O
direito comunitário, embora integrado no direito internacional, considerado
este no seu sentido amplo, caracteriza-se por seus diferentes modos de formação
e diferenças na sua aplicação, o que revela sua emancipação, ou seja, sua
autonomia em relação às ordens jurídicas internacional e estaduais.
Princípio da
sede disciplinadora. Em caso de conflito sobre a aplicação do direito
comunitário com as ordens nacionais, dispõe aquele de poder disciplinador do
relacionamento com os direitos estaduais em que se vai inserir, afirmando o
caráter de supremacia da ordem comunitária, numa dinâmica federalizante na
construção comunitária.
Outros autores
apresentam de forma mais abrangente esse rol de princípios, justificando a
existência de outros, inscritos nos tratados ou não escritos, mas decorrentes
das afirmações deles constantes33. Não achamos necessário alongar
essa explanação com princípios gerais, mantendo-se a remissão feita para o
aprofundamento do leitor interessado.
Os óbices do
ordenamento jurídico brasileiro: ainda o problema da soberania
Como resulta do
direito vigente no Brasil, a soberania é um princípio inalienável do Estado
(art. 1.º, I, da Constituição Federal de 1988). Já nos reportamos a isso neste
estudo (v. A questão da soberania).
E, como
conseqüência dessa dificuldade real, a existência de um regime de
supranacionalidade - quer para legislação no âmbito do direito comunitário,
quer para solução de controvérsias entre Estados e particulares decorrentes da
aplicação desta ordem jurídica supranacional - afigura-se inadmissível, nem
sequer possível de ser imaginado seriamente pelos doutrinadores e estudiosos. E
pode pôr a perder os esforços diplomáticos de criação e implementação de
regimes integracionistas que prevejam a superação do direito interno em favor
da ordem supranacional. Ter-se-ia a supressão não casual e específica, mas
efetiva e incondicionada, sempre que se estiver no âmbito previsto para atuação
da comunidade regional de países.
Ventura lembra
que a construção das bases da Comunidade Européia dependeu de previsões nas
constituições dos países-membros, os quais, cada um em conformidade com sua
praxe de legislação constitucional, trataram de inserir autorizações abertas à
aplicação do direito supranacional e reconhecimento de decisões de instituições
comunitárias, ou fechadas, mediante exaustiva prescrição dos casos em que
atuaria a ordem jurídica nova em prejuízo da ordem interna, de que é exemplo a
Constituição da República Federal da Alemanha34.
É certo, assim,
que a supranacionalidade significa limitação à soberania - bem como que, entre
nós, é necessário estabelecer regras que possibilitem a adoção do direito
comunitário sem quebra total e inconciliável do consagrado princípio da
soberania.
D´Angelis35
expõe que a Constituição brasileira atual deixou de acompanhar a tendência dos
diplomas constitucionais modernos, evitando regulamentar a relação entre
preceitos nacionais e estrangeiros. Segundo ele, "também não referendou
qualquer grau de supranacionalidade".
Para refereido
autor, outrossim, essas questões e outras pertinentes a princípios norteadores
do Mercosul não vêm merecendo melhor acolhida no Poder Legislativo brasileiro -
do que é prova cabal a oportunidade perdida durante a revisão constitucional de
1993-4.
Na seqüência,
D´Angelis arrola os dispositivos constitucionais pertinentes ao tema da solução
de controvérsias no âmbito do direito comunitário, os quais se transcrevem para
facilidade na subseqüente análise.
"Título I
Dos princípios
fundamentais
Art. 1.º. A
República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito
e tem por fundamentos:
I - a soberania;
(...)
(...)
Art. 4.º. A
República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos
seguintes princípios:
I -
independência nacional;
II - prevalência
dos direitos humanos;
III -
autodeterminação dos povos;
IV -
não-intervenção;
V - igualdade
entre os Estados;
VI - defesa da
paz;
VII - solução
pacífica dos conflitos;
VIII - repúdio
ao terrorismo e ao racismo;
IX - cooperação
entre os povos para o progresso da humanidade;
X - concessão de
asilo político.
Parágrafo único.
A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política,
social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma
comunidade latino-americana de nações.
(...)
Título IV
Capítulo III
Seção II
Do Supremo
Tribunal Federal
(...)
Art. 102.
Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição,
cabendo-lhe:
I - processar e
julgar, originariamente:
(...)
e)
o litígio entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e a União, o
Estado, o Distrito Federal ou o Território;
(...)
III - julgar,
mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última
instância, quando a decisão recorrida:
(...)
b) declarar a
inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;
(...)
Seção III
Do Superior
Tribunal de Justiça
(...)
Art. 105.
Compete ao Superior Tribunal de Justiça;
(...)
III - julgar, em
recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos
Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito
Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:
a)
contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;
(...)
Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias
(...)
Art. 7.º. O
Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos
humanos".
Deve-se ter em
conta, em princípio, que o parágrafo único do art. 4.º da Constituição Federal
de 1988 aceita a idéia integracionista, embora em termos limitadíssimos, como
se verá. Esse dispositivo tem sido a bandeira de sustentação do ideal
comunitário - e nele os seus defensores vêem a constitucionalidade de uma
eventual transferência de competências em favor de órgãos supranacionais.
Celso Bastos36
entende que a mera existência do parágrafo único do art. 4º da Constituição de
1988 implica uma opção pela integração em organismos internacionais.
Não é assim,
porém, para a maioria dos doutrinadores37, porquanto o caráter
programático da disposição - bem como do art. 7.º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias - requer regra mais precisa e específica, a fim de
evitar conflitos de interpretação. E, ademais, o princípio fundamental da
soberania, que, como visto, atua como um óbice à adoção de critérios de
supranacionalidade, está registrado na Constituição no sentido de um valor
maior a ser perseguido na interpretação, ao qual devem subjugar-se todos os
demais princípios e valores constitucionais.
Borba Casella38
diz-se perplexo ante a citação constitucional favorecendo a integração
econômica, política, social e cultural e os aclamados princípios da soberania e
independência nacional nas relações internacionais, constantes dos arts. 1.º e
4.º.
As controvérsias
são evidentes, mas, no nosso entender, resolvem-se com clareza à vista do
próprio conteúdo do parágrafo único do art. 4.º da Constituição.
De fato, ao
mencionar uma "integração econômica, política, social e cultural dos
povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana
de nações", inquestionavelmente o legislador deixou de fora a
forma jurídica de integração, o que vale dizer que permanece único e
plenamente válido o princípio da soberania, do qual não se pode libertar a
nação sem dano à ordem jurídica interna.
Todavia, mesmo
essa assertiva mereceria ser mais bem considerada.
Uma solução
possível para o problema da solução de controvérsias
Ora,
aceitando-se a integração nos níveis econômico, político, social e cultural39,
é natural que se está admitindo a incidência de regras de direito
supranacional, vale dizer, de direito comunitário. Todo um arcabouço jurídico
composto de tratados existe e está em vigor, envolvendo o Brasil, e é natural
que surjam conflitos na sua aplicação, internos e externos, a demandarem
solução ágil.
Desse modo, a
não-aceitação da perda da soberania, no direito constitucional brasileiro, para
a plena vigência de uma ordem supranacional soberana, não implica a
inexistência de direito comunitário a ser respeitado e invocado por nosso País.
Pelo contrário, a precariedade do sistema atual, a falta de definição oficial e
a própria insegurança dos doutrinadores revelam uma fonte inesgotável de
problemas jurídicos a serem equacionados, mesmo que a integração apenas se
realize naqueles setores antes referidos.
Assim, não está
afastada a discussão tão-só pela não-aceitação de um regime integracionista
pleno (ou a caminho de tornar-se, como a União Européia, uma comunidade de
nações).
Além disso, não
convém a manutenção de um sistema tão precário e dependente do bom
relacionamento político entre os parceiros, como são a arbitragem e os meios
diplomáticos de solução de conflitos.
Daí, afigura-se
vantajosa a adoção de institutos próprios do direito comunitário em casos a
serem elencados em tratados internacionais, como o do reenvio prejudicial.
Diante dos problemas concretos de aplicação de normas comunitárias, os
tribunais brasileiros abririam espaço para o pronunciamento de organismo com
autoridade supranacional, mantendo-se inerte entrementes, e obrigando-se,
depois, a dar seguimento ao julgamento considerando o estabelecido pelo
organismo comunitário.
Conclusão
Diante de todo o
exposto, reafirma-se a importância do conhecimento dos institutos de direito
comunitário, dos seus princípios implícitos e explícitos e da experiência de
cinqüenta anos da União Européia. Desconsiderar esses fatores seria negar a
possibilidade do Brasil vir a integrar um bloco regional de países com
interesses comuns.
Porém, avançar
além do que se esboçou nesse estudo, a curto prazo, implicaria para o Brasil
uma perda de identidade jurídica absolutamente indesejada. Nos últimos cem anos
os tempos de vigência do Estado de Direito pleno não foram a regra - por mais
da metade do século o regime era de exceção. Por que desestruturar uma ordem
jurídica afinal vitoriosa?
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1Artigo originalmente publicado no site
www.franca.unesp.br/hentz.
2 DAGTOGLOU, Prodromos, A natureza
jurídica da Comunidade Européia, Coleção Perspectivas Européias, Comissão
das Comunidades Européias, p. 42.
Retirado de: www.saraivajur.com.br