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A mentira espetáculo

Maria Lucia Victor Barbosa

Conforme Carlos Rangel em sua magistral obra "Do Bom Selvagem ao Bom Revolucionário", "a sociedade latino-americana (católica) se satisfaz facilmente com aparências: aparência de boa conduta, aparência de responsabilidade familiar e paterna, aparência de talento, aparência de probidade, aparência de erudição, aparência de radicalismo revolucionário, aparência de heterossexualidade, aparência de religiosidade".

De fato nesta América Latina mentimos por prazer, por necessidade, por hábito e, muitas vezes mentimos para nós mesmos. Desse modo nos fechamos em nosso individualismo, nos isentamos de todas as culpas atribuindo-as aos outros, nos eximimos de nossas responsabilidades fingindo que elas não existem, criamos um mundo à nossa imagem e semelhança.

É claro que todos os povos mentem; que principalmente políticos de todas as nações têm na mentira uma de suas técnicas mais apuradas de conquista e manutenção do poder, e que a humanidade como um todo se compraz na mentira porque precisa de ilusão. Mas há alguma variação no grau de mentira entre as sociedades e isso aparece se observarmos suas instituições. Tomemos como exemplo os Estados Unidos. Lá os poderes constituídos são mais respeitáveis que os nossos, as leis rigorosamente cumpridas, as atividades econômicas costumam se processar em níveis mais leais que nossas costumeiras práticas corruptas, a confiança mútua é bem mais generalizada e isso se dá por força de uma outra formação cultural onde prevaleceu o espírito associativo, brilhantemente analisado por Alex de Tocqueville em "A Democracia na América". O resultado dessa formação pode ser visto até hoje no notável desenvolvimento econômico e tecnológico do povo norte-americano, que na América Latina insistimos em negar pois mentimos para nós mesmos para justificar nossos fracassos.

No momento, a guerra travada entre os Estados Unidos e o Iraque ensejou a mentira espetáculo, globalmente potencializada pela televisão de uma forma nunca vista. E se houvesse um Oscar para o ator que melhor encenasse a mentira no palco do conflito, esse prêmio sem dúvida teria que ser dado ao ministro da informação do Iraque (o correto seria dizer da desinformação) Muhammed al Sahaf. Sempre vociferando contra as forças anglo-saxãs ele chama o poderoso exército americano de "cobra no deserto" e "vilões baratos", desanca o presidente Bush cobrindo-o de insultos para o gáudio das platéias antiamericanistas, cospe bravatas o tempo todo. O ministro Muhammed mente tanto que parece se divertir com suas mentiras, pois em certos momentos não se contém e ri. Apelando para o patriotismo, para o sentimentalismo e para o fortíssimo elemento religioso de sua gente, Muhammed diz que batalhas foram ganhas por soldados iraquianos, que apenas civis foram atacados pelas tropas inimigas, que templos religiosos foram destruídos. E mesmo quando os soldados americanos já puseram os pés dentro de Bagdá, o ministro iraquiano nega que tal coisa esteja acontecendo.

Não há dúvida, Muhammed al Sahaf merece o prêmio da mentira espetáculo. Ele humilha os mais experientes profissionais de marketing e nosso chanceler de fato, Marco Aurélio Garcia, além de oferecer asilo a Saddam Hussein deveria se esforçar para abrigar sobre a proteção brasileira o ministro da "desinformação". Seria um reforço e tanto para a equipe de Duda Mendonça. Muhammed poderia aparecer sempre no Jornal Nacional para nos contar como o Iraque ganhou a guerra, como o Brasil é superior aos Estados Unidos em termos da economia e política, como tudo aqui se transformou num paraíso sobre a terra, um Eldorado onde não existem doenças, ninguém envelhece, ninguém morre vitimado pela violência. Seria apenas mantida a questão da fome, pois o Programa Fome Zero necessita ser implementado. Muhammed recolheria milhões de tonelada de alimentos ou de quantias astronômicas de reais num só Programa do Faustão e a área social do governo se transformaria num sucesso retumbante. Afinal, como sentenciou o francês Frédéric Beigbeder, escritor e expoente do marketing: "As pessoas não sabem o que querem até que alguma coisa lhes seja proposta". Mas Muhammed sabe.

Maria Lucia Victor Barbosa é socióloga, jornalista, escritora, autora entre outros livros de "O Voto da Pobreza e a Pobreza do Voto: a Ética da Malandragem" (Jorge Zahar Editor) e "América Latina: em Busca do Paraíso Perdido" (Editora Saraiva).

E-mail: mlucia@sercomtel.com.br

Retirado de: www.argumentum.com.br