Buscalegis.ccj.ufsc.br

 

Proteção jurídica do Capital Intelectual no Direito Internacional – primeiras linhas

 

Antonio Grillo Neto

 

Membro da Comissão de Relações Internacionais do CORECON/SP (Conselho Regional de Economia do Estado de São Paulo), Especializado em Direito Internacional pela Escola Superior de Advocacia da OAB/SP e advogado.

 

Chamou-nos atenção uma reportagem publicada no jornal O Estado de S. Paulo, intitulada “Nasce no Japão o robô que sabe tomar decisões”, publicada no suplemento de Negócios, do dia 27 de agosto de 2002, ao relatar a recente conquista obtida no campo da robótica, na qual um minicircuito integrado à máquina reproduzia o cérebro humano nos complicados mecanismos que controlam a “mente”, permitindo a um robô tomar decisões e fazer escolhas entre o que seria seguro e o que seria perigoso, como se humano fosse.

No entanto, um fato ocorrido no mês de junho último no Magna Science Adventure Park de Rotherdam, no Yorkshire, Inglaterra, segundo a referida reportagem, somente foi divulgado recentemente: a fuga ( ! ) de um desses super robôs de uma sala fechada onde era objeto de pesquisas, aproveitando-se de um momento de distração de seu criador – um pesquisador britânico. Em outras palavras, o robô, que se chamava Gaak, copiou o Homem, ao escolher a liberdade.

O tema que pretendemos introduzir trata de um passo nem tão nem menos sofisticado quanto as aventuras do robô Gaak, porém depende dos mesmos recursos que seu criador empregou para criá-lo – conhecimento e informação –, e se chama Capital Intelectual.

Por Capital Intelectual devemos entender toda matéria intelectual – conhecimento, informação, propriedade intelectual, experiência – que pode ser utilizada para gerar riquezas, consoante definição de Thomas Stewart1 em obra homônima.

Nessa definição, encontra-se implícito um caráter humanitário, na medida em que tem pressuposto de manipulação pelo Homem do material intelectual em ordem de gerar riquezas, o que prescinde de um processo de educação e cultura, existentes, inclusive, no conhecimento tradicional e no folclore.

Capital Intelectual é sinônimo de trabalho intelectual, seja este uma tecnologia de ponta que toma forma coerente pelas mãos e idéias do homem, seja sob a forma de remédios oriundos do conhecimento tradicional indígena, ou ainda, aquele plus que torna um advogado especial e procurado por clientes – também conhecido por expertise, mas fato é que cada vez mais o conhecimento e a informação estão ocupando um papel central na geração de riquezas das Sociedades.

Um estudo organizado pela OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento nas Nações Unidas, de 1996, citado por Marcos Cavalcanti, Elisabeth Gomes e André Pereira2, define dois tipos de negócios intensivos em conhecimento: o knowledge business, no qual o conhecimento é efetivamente o produto final; e o knowledge based business, em que o produto é gerado pelo conhecimento. O primeiro teria, por exemplo, o ensino, a consultoria; enquanto o segundo, um projeto de arquitetura, o projeto físico em si considerado.

Outro estudo publicado em 1999 pela OCDE3, também mencionado pelos referidos autores4, apontou que mais de 55% da riqueza mundial advém do conhecimento e dos denominados bens ou produtos intangíveis; como softwares, patentes, royalties, serviços de consultoria e bens culturais, como filmes, música e entretenimento em geral.

Pode-se dizer que o sistema jurídico teve papel fundamental no processo de geração de riquezas relatado pela OCDE, graças ao sistema de propriedade intelectual, na medida em que proporcionou a segurança que garantiu a exploração econômica dos resultados desse trabalho intelectual.

Entretanto, as inovações constantes geradas pelas novas tecnologias se sucedem numa escala e velocidade cada vez maiores, fato que aponta a necessidade do sistema jurídico proteger não apenas os resultados práticos do trabalho intelectual, mas o desenvolvimento dessas criações do espírito humano, e, assim, conferir segurança ao ambiente onde se desenvolvem as inovações e criações tecnológicas e, ao mesmo tempo, buscar uma ordem mais justa à medida que possibilite sua aplicação em benefício da humanidade.

Antonio Chaves5 registra que, ao lado dos direitos morais personalíssimos e dos patrimoniais, existiria um terceiro direito, que chamou de direito do criador intelectual, que, diferentemente do primeiro, não é pessoal e, diferentemente do segundo, não tem por objeto a materialidade do produto, mas a invenção em si e por si, enquanto, fora da matéria na qual pela primeira vez a invenção tomou corpo, é suscetível de indefinidas reproduções.

Esse terceiro direito tem gerado riqueza econômica e pode ser concebido tanto no campo da estética de onde são representativos os direitos autorais que exaltam valores do espírito humano, quanto no campo dos interesses materiais, objetivando a fabricação de produtos de utilidade.

Segundo, ainda, Chaves6 as referências à propriedade científica são apenas nominais, incidentais, e, destarte, mostram a injustiça que a falta de proteção leva ao completo abandono das criações espirituais do inventor, do técnico, do cientista, e alerta para uma realidade muito presente num ambiente onde se privilegia o trabalho inelectual: “Cada vez mais, no entanto, percebe-se a necessidade de se proteger o trabalho e as descobertas realizados pelo sábio no que diz respeito às suas idéias, independentemente do critério atualmente em vigor, de amparar apenas a expressão material das mesmas, por meio de escrito, esquemas, desenhos, maquetas, gravações fonomecânicas ou audiovisuais7.

Carlos Alberto Bittar8 nos ensina que é do fenômeno da criação que resulta a atribuição de direitos sobre a obra intelectual, destacando-se a importância do criador da forma protegida como o titular de direitos, ou seja, “a pessoa que concebe e materializa a obra de engenho, qualquer que seja sua idade, estado ou condição mental, inclusive, pois, incapazes, de todos os níveis9.

O principal ambiente onde se desenvolve o Capital Intelectual é no trabalho, onde o homem interage com o material intelectual de que dispõe na perspectiva de gerar novas riquezas nesse processo, chamando atenção para uma equação que precisa ser resolvida, que é a adequação entre a criação e a perspectiva de ganhos e retribuições àqueles que a conceberam.

Nesse sentido, a retribuição do trabalho intelectual proporcionado pelo expertise de um consultor ou de um palestrante pode ser medida pelo valor das horas de trabalho, ou, ainda, a valorização de empresas no mercado de ações quando contratam executivos bem-sucedidos ou de renome, situações que traduzem como a economia do conhecimento encara o caráter de retribuição de seus agentes.

Por outro lado, há casos em que os frutos desse trabalho intelectual se traduzem em lucro, mas não são identificados, e, destarte, não são vertidos em remuneração adequada ao trabalhador intelectual, refletindo, como alguns estudos comprovaram, na baixa produtividade e capacidade de inovação tecnológica de empresas e na dependência tecnológica de países.

Sem adentrar na antiga discussão sobre a titularidade e comercialização dessas criações, o fato é que a melhor remuneração é o reconhecimento do trabalho intelectual, de forma que seus frutos sejam vertidos, também, em benefício daqueles que desenvolvem e criam riquezas através de seus trabalhos intelectuais.

O capital intelectual representa, nesse sentido, o substrato de geração de riquezas no mundo atual, pois não se funda apenas em grandes invenções tecnológicas, mas, sobretudo, no aproveitamento das idéias e criações, sob uma forma coerente, razão pela qual no âmbito do direito comparado, países norte-americanos e europeus esboçam o início de uma proteção ao processo criativo no âmbito do direito contratual, com alguns profissionais de alta posição em grandes e estratégicas corporações possuindo até seguro de capital e de propriedade intelectual.

No entanto, inexiste uma proteção institucionalizada para a matéria que contemple também o desenvolvimento das criações intelectuais e não apenas seus resultados que se situarem no campo da estética ou da técnica, situação absolutamente incompatível com uma realidade social e econômica em que a geração de riquezas reside no espírito e na aptidão de criar e inovar, razão por que uma regulamentação jurídica do Capital Intelectual se apresentar mais que uma necessidade, mas como pré-condição do desenvolvimento social.

O conceito de Capital Intelectual e os Direitos Humanos

Por direitos humanos, devem ser entendidas todas as garantias jurídicas fundadas na dignidade humana. Sua titularidade deriva do fato natural e indispensável a quem é humano.

Suas bases encontram-se na Declaração Universal dos Direitos do Homem que é fonte do direito internacional, muito embora se discuta sua eficácia jurídica, se seria apenas enunciativa ou se teria força vinculativa, e nas demais convenções e tratados internacionais sobre o tema.

Em matéria de direitos humanos, pouco mais de setenta convenções internacionais foram concebidas sob a tutela das Nações Unidas, que assume uma posição central e atuante nessa questão, visto que um dos propósitos dispostos em sua carta instituidora, artigos 1(3), 55 c, e 56, é atingir a cooperação internacional por meio da promoção, proteção e respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais contra qualquer tipo de discriminação, em nível universal.

O caráter humanitário do Capital Intelectual tem como pressuposto a educação que permitirá ao Homem desenvolver-se nessa nova realidade social, e nesse sentido lhe dão respaldo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e as Convenções e Tratados Internacionais, notadamente as Convenções de Proteção dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 16/12/1966, e a Convenção Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 16/12/1966, que protegem não apenas o acesso à educação – para todos – mas à proteção do resultado das criações do espírito humano.

O conceito de Capital Intelectual e os Direitos de Propriedade Intelectual

O sistema de propriedade intelectual é uma das formas de proteção mais tradicional do conhecimento humano e a que mais se aproxima do conceito de Capital Intelectual.

Nesse sentido, tem por fundamento a proteção dos direitos morais dos criadores intelectuais, e dos direitos patrimoniais do resultado dessas criações intelectuais, representados, comumente, pela concessão do monopólio, que se torna um meio para acumulação de capital.

Contudo, muito embora represente uma parte do Capital Intelectual, a propriedade intelectual não esgota este, visto que muitas atividades intelectuais e tecnologias estão ligadas a valores e símbolos – o expertise de um advogado ou de um executivo, p.ex. – que, apesar de gerarem riquezas tanto quanto uma patente ou um desenho utilitário, não encontram uma proteção em nível internacional.

Prevendo a revolução que o conhecimento e a tecnologia trariam ao Homem num futuro próximo, a Convenção de Estocolmo, em 1974, ao ser criada a OMPI – Organização Mundial da Propriedade Intelectual –, traz em seu preâmbulo uma definição que serve de fundamento para o capital intelectual, constando em sua parte final que a proteção ao sistema de propriedade intelectual se estende a todos os direitos da criatividade humana “all rights resulting from intellectual activity in the industrial, scientific, literary and artistic fields”.

Preserva-se a proteção ao direito moral do criador intelectual oriundo do artigo 6o Bis da Convenção de Berna, muito embora se tenha delimitado a esses quatro campos de criação a proteção jurídica de seu trabalho intelectual.

Ao mesmo tempo, a parte final desse preâmbulo lança luzes de proteção à criação per si, e o processo criativo, assume, portanto, status principal nesse campo de proteção, o que vem de encontro com a noção de Capital Intelectual à medida que a riqueza gerada pelo conhecimento na atual sociedade se opera em rede, não sendo possível, muitas vezes, identificar o responsável por determinado avanço tecnológico, ou desenvolvimento de uma solução útil ou estética, muito embora possa ser reconhecida a titularidade de muitos, ou de grupos no processo de criação que realizam trabalhos intelectuais.

Conclusão

 Vivemos a realidade de uma era da informação, da economia em rede (networking economy), e de inovações constantes que são o resultado de um trabalho intelectual ordenado do Homem, nasceram de uma idéia que ganhou uma forma coerente.

No entanto, muitas vezes não há como classificar essas inovações no campo da estética nem da técnica, não sendo possível contemplarmos proteção jurídica das mesmas no atual sistema de propriedade intelectual vigente.

Daí a necessidade de entendermos essas transformações sociais que o conhecimento sob uma forma coerente, tem causado ao sistema jurídico, que acreditamos refletir a idéia de Capital Intelectual, e, assim como o movimento pelo reconhecimento dos direitos de Autor, buscando seus apontamentos no direito internacional com vistas a iniciar um debate que nos possibilite, num futuro próximo, atingir uma adequada e moderna proteção jurídica dessas novas criações que a inteligência e o conhecimento têm proporcionado à Sociedade.

Adverte o filósofo francês Pierre Levy que “raciocinar em termos de impacto é condenar-se ao padecimento”, o êxito de uma ordem jurídica em nível internacional apta a lidar com o conhecimento humano passa pelo capital intelectual, que deve ser estudado, identificado e certamente regulamentado, privilegiando-se o Homem, que é o empreendedor social responsável pela existência dessas inovações, quem cria e dissemina a riqueza que se espera estar protegida na ordem jurídica.

Bibliografia

BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

CHAVES, Antonio. Direito de Autor:Princípios Fundamentais. 1. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987.

CAVALCANTI, Marcos; GOMES, Elisabeth; PEREIRA, André. Gestão de empresas na sociedade do conhecimento. 1. ed., Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2000.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 1. ed., São Paulo:Saraiva, 2001.

OECD – Economic Surveys. Structural Policies: The labour market in a Knowledge Business Economy. Paris, 1998.

______. The knowledge Business Economy. STI – Science, Technology and  Industry Outlook. Paris, 1996.

SILVEIRA, Newton. A Propriedade Intelectual e a Nova Lei de Propriedade Industrial. 1. ed., São Paulo: Saraiva, 1996.

STEWART, James A. O Capital Intelectual: A nova vantagem competitiva das empresas. 6. ed., Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1998.

O Estado de São Paulo. “Nasce no Japão o robô que sabe tomar decisões”. Suplemento Negócios. Reportagem de 27 de agosto de 2002


1 STEWART, James. O capital intelectual. Ed. Campus, p. 3-4.

2 CAVALCANTI, GOMES e PEREIRA. Gestão de empresas na sociedade do conhecimento. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 2001, p. 28-29.

3 Economics Survey, Structural Policies: The Labour Market in a Knowledge-Based Economy – Paris, OECD, 1998.

4 Ibid, p. 28-29.

5 Chave, Antonio, Direito de autor. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 500-501.

6 Ibid, p. 502/503.

7 Ibid, p.502.

8 “Portanto, é a ação do autor, ao plasmar do cenário fático e sua concepção – artística literária ou cientifica – que se manifesta o direito em causa, revelando-se, de início, sob o aspecto pessoal do relacionamento criador-obra”.BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitário, 1997, p. 29.

9 Ibid, p. 30.

Retirado de: www.saraivajur.com.br