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Lei de Propriedade Industrial do Brasil em discussão na OMC

 

Priscila Akemi Beltrame

 

Advogada em São Paulo, com especialidade em Relações Internacionais, pela London School of Economics, atuando nas áreas de Propriedade Industrial e Direito Internacional.

 

Temos assistido, com grande interesse, o contencioso recentemente travado entre o Brasil e os EUA em torno da discussão sobre um instituto da Lei de Propriedade Industrial (Lei n.  9.279/96 – LPI), denominado licença compulsória. Considerada mais do que adequada e que recepcionou com grande amplidão os dispositivos do tratado internacional que a inspirou (Trade Related Intellectual Property Aspects – TRIPS), por motivos políticos e econômicos direcionados à abertura econômica que não nos cabe abordar, fato é que a licença compulsória, ainda como um aspecto tópico, tem causado preocupação em tese (com relação à previsão geral presente na norma) e de fato (com relação às patentes de medicamentos para o tratamento da Aids).

I – A Lei de Propriedade Industrial e o Direito Concorrencial

Por meio da licença compulsória, o Poder Público, por decisão administrativa ou judicial, pode retomar o privilégio concedido por uma patente que não esteja fazendo uso dela de acordo com as necessidades do mercado (sub-aproveitamento dos direitos concedidos), ou se, no exercício dos referidos direitos, se comprovar sua forma abusiva ou com práticas que denotem abuso de poder econômico. Claro está que o Poder Público em ação é aquele que zela e equilibra os direitos individuais exercidos em função dos direitos coletivos, sempre se tendo em vista a dimensão social do direito da propriedade intelectual na medida em que os privilégios, os direitos de exclusividade, representam garantias individuais que impulsionam e estimulam avanços tecnológicos e de bem estar da sociedade. A dimensão individual, assim, justifica-se pelo interesse coletivo (v. art. 240 da LPI e art. 7.º do TRIPS)

Assim entendido, o que se verifica com a licença compulsória não é, prima faccie, a preferência pelo local da produção, se nacional ou do exterior, mas no interesse de quem ela servirá. O texto da lei estabelece que a patente deve atender à demanda local e que, como o poder jurisdicional da autoridade restringe-se ao território brasileiro, somente sobre este território pode ele determinar a produção e garantir os direitos de quem requer a licença compulsória. Ainda, ela estabelece a possibilidade de importação do objeto da licença, por prazo determinado, no caso de esta ter sido concedida por abuso de poder econômico.

A previsão de uso da licença compulsória restringe-se aos eventos legalmente identificados como abuso de direito ou abuso de poder econômico, que são infrações à ordem econômica disciplinada na nossa legislação de direito concorrencial (arts. 20, IV, e 21, XX e XXI, da Lei n. 8.884/94). Ainda que a legislação concorrencial esteja na seara das relações de mercado e a de propriedade industrial, na dos privilégios de exploração exclusiva, consideramos plenamente aplicável, com interpretação extensiva, o texto do art. 15, que estabelece que a lei se aplica “às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado (...), mesmo que exerçam atividades sob regime de monopólio legal”.

À extensão do que se verifica, o texto concorrencial continua fornecendo balizamentos para a conduta de todos os agentes do mercado, sem exclusão dos que se beneficiam de monopólios de exploração de um setor econômico, entendimento este que se ajusta plenamente à função que a propriedade industrial ostenta em nossa sociedade.

 A restrição conferida pela licença compulsória no caso das patentes é mera extensão da pena prevista na legislação concorrencial (Cap. III da Lei n. 8.884/94), que estabelece, em seu art. 19, que a repressão das infrações não exclui a punição de outros ilícitos previstos em lei. Neste caso, a licença compulsória é forma específica para atingir aos fins a que o direito de exploração exclusiva da patente se destina e que certamente dependem de um conjunto probatório consistente, por decisão administrativa ou judicial. Muito embora o ato administrativo se paute pelos critérios de conveniência e oportunidade, a decisão administrativa depende de processo investigatório mais detalhado e isento.

Por fim, e em abono do que foi até aqui considerado, a lei concorrencial (Lei 8.884/94) estabelece que além das penas atribuídas no art. 23, outras poderão ser impostas. Assim é o texto explícito do art. 24:

“Sem prejuízo das penas cominadas no artigo anterior, quando assim o exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral, poderão ser impostas as seguintes penas, isoladas ou cumulativamente:

(...)

IV – a recomendação aos órgãos públicos compententes para que:

a) seja concedida licença compulsória de patentes de titularidade do infrator;” (grifo nosso).

Portanto, o instituto não só contempla o benefício social pelo avanço tecnológico ao qual a patente deve corresponder, mas também inscreve-o no contexto do direito concorrencial como mecanismo de controle das condutas anticompetitivas.

Esse instituto visa atingir principalmente aquele detentor de patente que, pelo monopólio de exploração conseguido com a proteção do Estado, com aparato jurídico, administrativo e até policial disponíveis, extrapole a exploração normal, justa, com razoáveis expectativas de lucro, sem que para isso, apoiado na proteção que tem, aplique preços exorbitantes, atenda a uma demanda local quando a necessidade e o interesse social são amplos, deixe de produzir, pois mudou do ramo de seus negócios. Nesses casos, tendo o Estado concedido o privilégio de exploração, e não possuindo o titular interesse social de uso do referido monopólio, sua retomada é mais do que justificada, ela é necessária e útil. Com efeito, discorre o autor sobre o espírito da LPI: “O espírito da lei somente será alcançado se efetivamente o objeto da patente for devidamente utilizado. Caso contrário, não haveria necessidade de se obter qualquer privilégio”1.

II – Aspetos da legislação internacional – o TRIPS

Outro aspecto que merece ser abordado com o devido cuidado diz respeito ao conflito que se estabeleceria com os preceitos do comércio internacional constantes do TRIPS. Para os que alegam que a licença compulsória fere disposições do TRIPS, estes fundam suas alegações especialmente no art. 27, I, do referido Acordo. Entendem que, ao conter disposição que afasta a possibilidade de discriminação em matéria de patentes dos direitos de estrangeiros em benefício do nacional2, o acordo retiraria do universo do poder nacional qualquer favorecimento que privilegiasse a produção local.

O princípio do tratamento nacional, importante instrumento de definição das rodadas de negociação no âmbito da OMC, encontra-se inscrito no art. 3º do TRIPS e independe do entendimento enviesado do art. 27 supra-referido, pois ele mesmo estabelece que aos nacionais de outros Estados será concedido o mesmo tratamento dado ao seu nacional, sem favorecimento de qualquer ordem, em relação à proteção da propriedade intelectual.

Certo é que a extensão que se procura dar ao art. 27, I, depende da coordenação de seu entendimento com outros institutos do sistema jurídico, pois ele, assim como qualquer outro comando normativo, não encerra em si todos os conceitos que o inserem no ordenamento. Assim é que, recorrendo ao art. 8o – Princípios, que define a medida e o padrão de interpretação do TRIPS, lemos:

“1 – Os Membros, ao formular ou emendar suas leis e regulamentos, podem adotar medidas necessárias para proteger a saúde e nutrição públicas e para promover o interesse público em setores de importância vital para seu desenvolvimento sócio-econômico e tecnológico, desde que estas medidas seja compatíveis com o disposto neste Acordo.

2 – Desde que compatíveis com o disposto neste Acordo, poderão ser necessárias medidas apropriadas para evitar o abuso dos direitos de propriedade intelectual por seus titulares ou para evitar o recurso a práticas que limitem de maneira injustificável o comércio ou que afetem adversamente a transferência internacional de tecnologia”.

Tomando-se em conta o disposto no art. 27, I, à luz dos princípios fixados nos incisos acima do art. 8o, não há fundamento de direito que sustente o pleito norte-americano contra a previsão da lei brasileira sobre a licença compulsória por se tratar de uma autonomia concedida pelo próprio tratado em que se fundamenta referido pleito.

As exceções ao direito de exclusividade concedido pela patente são, ainda, tratadas na própria sessão do tratado, sob a rubrica do outro uso sem autorização do titular. Trata-se, portanto, de instituto semelhante, em quase tudo, ao da licença compulsória, com exigências plenamente compatíveis em virtude da interpretação à luz do art. 8º supra e do art. 31, alínea “k”. Não há como se sustentar, portanto, a alegação de que a licença compulsória não seja reconhecida pelo TRIPS, pois na regulamentação que a lei brasileira faz de sua concessão estão presentes os mesmos requisitos inscritos na lei internacional. Neste sentido, há a previsão de que a licença não será concedida a título exclusivo; terá por base, quando requerida por terceiros, o seu mérito individual; terá direito à licença cruzada; pode ser utilizada em caso de emergência nacional, com prazo de vigência determinado etc. Um cotejamento específico dos referidos aspectos regulamentares dependerá de uma comparação mais detida, tendo por base os principais elementos trazidos nessa oportunidade.

Alega-se, inclusive, que o disposto no art. 71 da LPI possibilita o exercício de política protecionista em caso de emergência nacional ou interesse público. Entretanto, a licença de que fala esse artigo somente será concedida se o titular não atender a essa necessidade, além do que já havia sido prevista no TRIPS, em seu art. 31, II.

III – Patentes de produtos farmacêuticos para o tratamento da Aids

Insere-se dentro do tema a discussão sobre licença compulsória dos medicamentos que compõem-se o coquetel de tratamento da Aids. Sabe-se que dos doze remédios do coquetel, o Ministério da Saúde só paga direitos intelectuais sobre cinco, haja vista que os outros, mais antigos, já se encontravam em produção e eram conhecidos no Brasil antes de 1996, quando a atual LPI entrou em vigor. O que o Ministério da Saúde pretende fazer, caso não se chegue a um acordo entre o preço praticado pelas indústrias farmacêuticas e o que se considera razoável para a manutenção do programa brasileiro de combate à Aids, é pleitear a utilização do mecanismo previsto no art. 68, combinado com o art. 71, ambos da LPI.

Certamente que, se o País se encontra à frente no programa de combate e tratamento mundial da Aids, com possibilidade de fornecimento de pessoal e disponibilidade para transferir gratuitamente a tecnologia que detenha legitimamente, seu poder de avançar nas pesquisas farmacológicas também devem fortalecer-se. Nunca é demais lembrar, prefigurando a Assembléia Geral da ONU que se realizará em junho deste ano, e servindo como exemplo inspirador para as sociedades humanitariamente desenvolvidas, a pesquisa do químico inglês A. Fleming, que, tendo descoberto a penicilina, não procedeu ao seu patenteamento em vista da difusão do acesso que ele almejava universal.

A razão de se admitir a licença compulsória, como estabelece o TRIPS, é o suprimento do mercado interno do país que autorizou a retomada da patente, dentro dos padrões das normas de  concorrência. No nosso entender, a discricionariedade do governo em requerer a concessão da licença compulsória dos medicamentos para a fabricação dos medicamentes deve ater-se às condições de uso fixadas na LPI, que recepciona e se inspira no TRIPS.



1.       José C. Tinoco Soares. Lei de patentes, marcas e direitos conexos, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 113.

2.      Art. 27, I: “...as patentes serão disponíveis e os direitos patentários serão usufruíveis sem discriminação quanto ao local de invenção, quanto a seu setor tecnológico e quanto ao fato de os bens serem importados ou produzidos localmente”.

 

 

 

Retirado de: www.saraivajur.com.br