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ALCA = OMC + [NAFTA ± MERCOSUL] Aspectos Jurídicos

 

Lígia Maura Costa

 

Doutora em Direito pela Universidade de Paris, Professora da Escola de Administração de Empresas de São Paulo - Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV), trabalhou no Legal Affairs Division da OMC e advogada-sócia do Lilla, Huck, Malheiros, Otranto, Ribeiro, Camargo e Messina Advogados

 

A abertura dos mercados ao comércio mundial é uma tendência praticamente inevitável, nos dias de hoje. Os benefícios resultantes da liberalização comercial são evidentes. A eliminação de barreiras alfandegárias é fundamental para o Norte industrializado. O Sul, mesmo falho de recursos e com poucas alternativas, beneficia-se do processo de liberalização econômica mundial. Isso porque, “a não ser que estejamos prontos para esperar por Godot, que assumiria a forma de uma crise de vastas proporções no mundo subdesenvolvido, algo deve ser feito por ambas as partes interessadas, pelo Norte industrializado e pelo Sul falho de recursos, a fim de paralisar a marcha rumo ao desconhecido”2. E é nessa perspectiva que a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) deve ser entendida.

Não se trata aqui de questionar a tendência mundial à globalização ou à regionalização. A esse título, a verdade parece estar com todos e com ninguém. Alguns afirmam que a liberalização do comércio resulta da era bipolar e, por via de conseqüência, a veneram ou a amaldiçoam. Outros consideram que devemos procurar suas origens no neoliberalismo. Todavia, tanto uns como outros são unânimes em afirmar que o que importa é a sua velocidade e sua direção. Vale lembrar que o livre comércio de bens, serviços e propriedade intelectual é apenas um meio e não um fim em si mesmo. É por essa razão que para uma adequada movimentação entre países de bens, serviços e direitos de propriedade intelectual é necessário que sejam estabelecidas regras harmônicas e uniformes, as quais afetam diretamente o universo jurídico interno dos respectivos países. É fato que tal tarefa já há muito vem sendo desempenhada pelo GATT-47 (“Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio”)3, antes mesmo da celebração da Rodada Uruguai e da criação da Organização Mundial do Comércio (OMC). É o que se passa a examinar a seguir.OMC

As Negociações Comerciais Multilaterais (“Rodadas”), conduzidas no âmbito do GATT-47, foram finalmente concluídas em 15 de dezembro de 1993, com a assinatura, em 15 de abril de 1994, da Ata Final da Rodada Uruguai, firmada em Marrakesh, Marrocos, depois de um longo período de sete anos de negociações, iniciado em Punta del Este, Uruguai – ganhando assim o seu nome. A Rodada Uruguai representou a mais ampla negociação comercial até então conhecida, envolvendo mais de uma centena de países e quase todos os aspectos do comércio mundial de bens, serviços e propriedade intelectual. As negociações da  Rodada Uruguai resultaram no estabelecimento de quatro Anexos. O Anexo 1 é formado pelos Acordos Multilaterais de Comércio de Bens (“GATT-94”), pelo Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (“GATS”) e pelo Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (“TRIPS”). As novas regras para solução de controvérsias entre os países Membros da OMC são tratadas no Anexo 2. Nos Anexos 3 e 4, encontram-se o mecanismo de Exame de Políticas de Comércio e os Acordos de Comércio Plurilaterais, respectivamente. Os principais pontos resultantes das negociações da Rodada Uruguai foram os seguintes: (i) redução das tarifas; (ii) novas regras de comércio para a agricultura e para o setor têxtil, incluindo limitações às exportações com subsídios; (iii) extensão aos serviços dos princípios de livre comércio do GATT-94; (iv) proteção internacional aos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio.

O GATT-94 é composto pelas disposições do GATT-47 e seus respectivos protocolos e certificações e pelos seguintes Entendimentos: (i) Entendimentos sobre a Interpretação do Art. II:1(b) do GATT-94; (ii) Entendimentos sobre a Interpretação do Art. XVII do GATT-94; (iii) Entendimentos sobre as Disposições sobre Balanço de Pagamentos do GATT-94; (iv) Entendimento a respeito de Derrogações de Obrigações sob o GATT-94; e (v) Entendimento sobre a Interpretação do Art. XXIV do GATT-94. De todos esses Entendimentos, a compreensão do último deles, o Entendimento sobre a Interpretação do Art. XXIV do GATT-94, é fundamental para a implementação de uma zona de integração econômica regional, como se vê a seguir. Entendimento sobre a Interpretação do Art. XXIV do GATT-94

Antes de mais nada, vale lembrar que os níveis de integração econômica regional são cinco. O primeiro deles é a Zona de Livre Comércio (livre circulação de bens). O segundo é a União Aduaneira (tarifa externa comum). O Mercado Comum é o terceiro nível de integração (livre circulação de mercadorias, pessoas, capital, serviços e concorrência). Um mercado comum com um sistema monetário, uma política externa e de defesa comercial comuns é o quarto nível de integração, chamado de União Política e Econômica. Finalmente, o último nível de integração econômica regional é a Confederação. Esta corresponde a uma unificação política, econômica e de todos os ramos do direito. O Entendimentos sobre a Interpretação do Art. XXIV do GATT-94 trata, especificamente, das Uniões Aduaneiras e das Zonas de Livre Comércio. Da mesma forma que o GATT-47, o GATT-94 autoriza a formação de Uniões Aduaneiras, Zonas de Livre Comércio e Acordos Interinos. Assim, a constituição de blocos econômicos regionais é compatível com as regras da OMC. A única condição imposta para essas formas de integração econômica regional é que, no comércio com os outros Membros do GATT, não haja tarifas aduaneiras mais altas ou medidas tarifárias mais restritivas do que as aplicadas anteriormente, isto é, antes do estabelecimento do acordo de integração econômica regional. Ainda, as regras da OMC estabelecem que um acordo de integração econômica regional, para ser considerado como uma zona de livre comércio, deve incluir a maior parte do comércio entre os países signatários, medida em termos de valor4, e o prazo para sua implementação, sendo que a eliminação de todas as barreiras ao comércio entre aqueles países não poderá ser superior a dez anos.

Apesar de muitos julgarem que as negociações comerciais multilaterais de livre comércio acabariam, a médio prazo, com os acordos de integração econômica regional, a realidade atual é, porém, outra. Hoje, mais da metade do comércio mundial é realizada dentro dos blocos econômicos regionais. É quase desnecessário lembrar que, nas últimas décadas, houve uma proliferação de acordos de integração econômica regional, em resposta a demandas geopolíticas e econômicas. A esse título, cita-se a União Européia, a Área de Livre Comércio da América do Norte (“NAFTA), a Associação Latino-Americana de Integração (“ALADI”), o Grupo Andino, o Mercado Comum do Caribe (“CARICOM”), o Mercado Comum Centro-Americano (MCCA), o acordo G-3 firmado entre Colômbia, México e Venezuela e o Mercado Comum do Cone Sul (“MERCOSUL”), entre muitos outros. É fato que a maior parte dos acordos econômicos regionais celebrados entre os países latino-americanos ficou aquém das expectativas inicias, em função das dificuldades econômicas desses países, dentre outros fatores. É importante ressaltar que, apesar de uma série de dificuldades, o resultado prático do MERCOSUL foi surpreendente. É o que passaremos a examinar.MERCOSUL

O MERCOSUL, criado com a assinatura, em 26 de março de 1991, do Tratado de Assunção, pelo Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, foi o primeiro passo para um processo de integração econômica no Cone Sul. O Mercosul, hoje uma União Aduaneira, tem por objetivo alcançar o terceiro nível de integração econômica regional: um Mercado Comum entre os Estados Partes do Mercosul. As principais fontes jurídicas do Mercosul são o Tratado de Assunção e seus protocolos e instrumentos adicionais ou complementares; as Decisões do Conselho do Mercado Comum; as Resoluções do Grupo Mercado Comum e as Diretrizes da Comissão de Comércio. Com o advento do MERCOSUL, as trocas comerciais entre os Estados Partes triplicaram e foram intensificados os montantes de investimentos diretos na região do Cone Sul. A incorporação dessas fontes jurídicas ao ordenamento interno dos Estados Partes do MERCOSUL é dada através do fenômeno clássico da recepção, isto é, o tratado internacional é negociado pelo governo, aprovado pelo Congresso, ratificado e promulgado. Não há portanto a primazia direta das normas do MERCOSUL sobre a legislação nacional dos Estados Partes. A supranacionalidade da ordem jurídica do MERCOSUL admite, assim, reservas. A título de exemplo, a estrutura jurídica constitucional brasileira veda, numa interpretação estritamente literal, qualquer forma de submissão a diretivas supranacionais. Isso também ocorre no Uruguai. Já na Argentina e no Paraguai, é admitida a submissão a uma ordem jurídica supranacional. Após essas breves linhas a respeito do MERCOSUL, para uma melhor compreensão da ALCA é importante levar em consideração alguns aspectos do NAFTA.NAFTA

O NAFTA é a imensa zona de integração econômica regional da América do Norte. Ele é formado pelos Estados Unidos da América, Canadá e México. Se, por um lado, a parceria EUA-Canadá é sinérgica, por outro, o México representa uma parceria histórica e geopolítica importante. O passo inicial para a formação do NAFTA foi a celebração do Acordo de Liberalização Econômica entre EUA e Canadá. Em 13 de agosto de 1992, o México aderiu ao bloco regional então formado. O NAFTA entrou em vigor em 1º de janeiro de 1994, com um prazo de 15 anos para a total eliminação das barreiras alfandegárias entre os três países integrantes5. O modelo de integração econômica regional do NAFTA estabelece a criação de uma zona de livre comércio restrita a alguns produtos, e prevê uma série de acordos específicos, dentre eles citam-se acordos sobre regras de origem; serviços; investimentos; propriedade intelectual; relações trabalhistas e normas ambientais relacionadas ao comércio. Assim, após essas breves linhas a respeito da OMC, do MERCOSUL e do NAFTA, pode-se passar ao exame da ALCA.ALCA

Em dezembro de 1994, na reunião de cúpula de Miami, a qual se denominou Cúpula das Américas, os representantes de 34 países (Antigüa e Barbuda, Argentina, Bahamas, Barbados, Belize, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, El Salvador, Equador, Estados Unidos, Granada, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Santa Lúcia, São Cristóvão e Névis, São Vicente e Granadinas, Suriname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela) concordaram em iniciar negociações para o estabelecimento da ALCA. É patente, assim,  a amplitude geográfica da ALCA. É importante notar que a ALCA tem objetivos nitidamente econômicos, cuja implementação depende de aspectos políticos.

O documento oficial, resultado da Cúpula das Américas, contém uma Declaração de Princípios e um Plano de Ação. Na Declaração de Princípios, os países signatários propõem um pacto pela preservação e fortalecimento da democracia, pela promoção da prosperidade, pela erradicação da pobreza e da discriminação, pelo desenvolvimento sustentável e pela conservação do meio ambiente. É fácil constatar que, além da liberalização de bens e serviços, foram inseridos também outros temas relevantes. É quase desnecessário dizer que tais propostas, que alteram o funcionamento de sistemas econômicos,  influenciam, de forma determinante, o plano jurídico. A integração econômica regional gera conseqüências tão significativas no direito interno dos países integrantes quanto a liberalização comercial mundial, em especial, diante de um acordo econômico regional amplo como a ALCA, que gera efeitos estruturais e institucionais não apenas profundos, mas também duradouros. É forçoso constatar que a ALCA não será uma zona de livre comércio simples. Isso porque uma zona de livre comércio nada mais é do que um acordo internacional no qual os países signatários comprometem-se a eliminar, num determinado período de tempo, as barreiras tarifárias e não tarifárias ao comércio recíproco de bens e eventualmente de serviços. O objetivo da ALCA é, na verdade, muito mais amplo que isso.

Seja como for, para atender às diretrizes contidas na Declaração de Princípios da Cúpula das Américas, foi elaborado um Plano de Ação para cada um dos temas mencionados na Declaração de Princípios, inclusive com um cronograma inicial para os trabalhos. Em 30 de junho de 1995, dando seqüência ao calendário estabelecido pela Cúpula das Américas, realizou-se a primeira reunião dos Ministros de Comércio do hemisfério (“Reunião Ministerial de Denver”). Desse primeiro encontro foram estabelecidos alguns pontos relevantes: (i) a ALCA terá um processo decisório por consenso; (ii) a ALCA terá por base os acordos sub-regionais e bilaterais já existentes; (iii) o Acordo da ALCA será um empreendimento único (single undertaking); e (iv) a ALCA será compatível com os dispositivos dos Acordos da OMC.

Ainda, para facilitar as negociações da ALCA, foram criados grupos de trabalho, divididos por tema. Os principais temas são: (i) Acesso a Mercados; (ii) Agricultura; (iii) Procedimentos Alfandegários e Normas de Origem; (iv) Investimentos;  (v) Normas e Barreiras Técnicas ao Comércio; (vi) Medidas Sanitárias e Fitossanitárias; (vii) Subsídios, Antidumping e Medidas Compensatórias; (viii) Economias Menores; (ix) Compras Governamentais; (x) Direitos de Propriedade Intelectual; (xi) Serviços; (xii) Políticas de Concorrência; (xiii) Solução de Controvérsias. Esses grupos de trabalho, dada sua influência no sistema jurídico interno serão, a seguir, objeto de nosso estudo, sob o prisma jurídico brasileiro.(i) Acesso a Mercados

Num processo de integração econômica regional, a eliminação de barreiras tarifárias é a forma clássica para se alcançar um maior acesso a mercados. De fato, a maior parte dos obstáculos tarifários está dentro das fronteiras dos países. A liberalização progressiva de direitos alfandegários faz parte de qualquer processo de integração econômica. Entretanto, medidas não tarifárias tem, em muitos casos, efeitos muito mais nefastos na liberalização econômica do que as tarifárias. Abolir medidas não tarifárias e transformá-las em tarifas, é, por exemplo, um dos objetivos básicos dos acordos da OMC. Também o é da ALCA. A ALCA, independentemente do acordo final a ser celebrado, terá de ser compatível com as normas da OMC. Isso porque normas de caráter mais amplo são, sob o prisma jurídico, superiores hierarquicamente a acordos de menor amplitude, que é o caso da ALCA. As regras da OMC sobrepõem-se, por razões óbvias portanto, às regras da ALCA. A título de exemplo, o Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, teve de obedecer às regras do GATT-47, hoje OMC, e da ALADI, pois ambas são normas jurídicas mais amplas e que o antecederam. Isso não significa porém que as regras da ALCA não possam estabelecer uma liberalização comercial mais importante do que as normas estabelecidas pela OMC, a chamada ALCA-Plus. Ao contrário, são perfeitamente possíveis e aceitáveis, numa zona de integração econômica regional, normas jurídicas ainda mais favoráveis do que aquelas previstas nos Acordos da OMC relativas à liberalização do comércio mundial de bens, serviços e propriedade intelectual. Para corroborar tal afirmação, cita-se o exemplo da União Européia.

É importante notar ainda que serão respeitadas pela ALCA as disposições da OMC. É nesse sentido que dispõe o art. 3.1. da proposta de acordo da ALCA : “Nenhuma das disposições deste... modifica ou altera, de forma alguma, as concessões acordadas em matéria de tarifas aduaneiras e medidas não-tarifárias no âmbito de outros acordos comerciais subscritos entre as Partes, ao amparo do Artigo XXIV do GATT de 1994... ”. Ainda, na minuta do acordo ALCA relativa a acesso a mercados, são tratados os seguintes temas: (i) Tarifas e Medidas Não-Tarifárias; (ii) Medidas de Salvaguarda; (iii) Regime de Origem; (iv) Procedimentos Aduaneiros; (v) Procedimentos Relacionados ao Regime de Origem; (vi) Normas e Barreiras Técnicas ao Comércio.(ii) Agricultura

O principal objetivo do Acordo sobre Agricultura da OMC é reincorporar o comércio do setor agrícola às regras do GATT-94. Com essa reincorporação será possível, a longo prazo, ter um mercado de produtos agrícolas mais justo e livre de restrições e de distorções comerciais. Esse foi o primeiro passo para um processo de reforma agrícola em escala mundial. Na verdade, os países criaram um amplo arsenal de medidas não tarifárias como meio “legítimo” de ajudar setores em dificuldades, em especial o setor agrícola. A exclusão dos produtos agrícolas da pauta de negociações de uma zona de livre comércio regional e sua limitação a bens manufaturados, em especial quando tais produtos agrícolas são importantes na pauta de exportação de alguns países, corresponderia ao abandono de importante vitória, duramente obtida durante a negociação da Rodada Uruguai, pelos países em desenvolvimento. Como o Acordo Agrícola da OMC faz parte integrante do GATT-94, poder-se-ia afirmar, categoricamente, que a liberalização das barreiras comerciais em relação aos bens numa zona de livre comércio deveria incluir, obrigatoriamente e da mesma forma, os produtos agrícolas. Diante disso, nada mais justo será que, pelo menos, fazer valer as disposições do Acordo Agrícola da OMC para a ALCA.

Em princípio a Declaração Ministerial de San José da ALCA a respeito do setor agrícola segue os passos das regras sobre agricultura da OMC. O grupo de trabalho para o comércio de produtos agrícolas deve respeitar os mesmos objetivos básicos do grupo de trabalho de acesso a mercados. Do mesmo modo, as regras sobre barreiras sanitárias e fitossanitárias da OMC deverão ser consideradas no âmbito agrícola pela ALCA. De qualquer modo, o fundamento mais importante é a eliminação dos subsídios agrícolas, em especial pelos países desenvolvidos integrantes da ALCA.

(iii) Procedimentos Alfandegários e Normas de Origem

A padronização dos procedimentos alfandegários pode ser um modo eficaz para os países protegerem-se contra eventuais fraudes comerciais. É fundamental que as atividades alfandegárias sejam realizadas de forma não discriminatória, objetiva, uniforme e de modo transparente. Ainda, a determinação das regras de origem são tão relevantes quanto os procedimentos alfandegários para a liberalização do comércio. As regras de origem não devem ser utilizadas como forma de policiamento do comércio. Diante disso, o princípio de não discriminação, um dos pilares da OMC, surge como um ponto inexorável.

A determinação das regras de origem de um produto tem apresentado uma importância sem limites. O Acordo sobre Regras de Origem da OMC tem por objetivo harmonizar, internacionalmente, as regras de origem e evitar que tais regras sejam utilizadas como instrumento de policiamento do comércio mundial. Vale ressaltar que o Acordo da OMC sobre Regras de Origem estabelece expressamente que as mercadorias poderão ser beneficiadas por um tratamento preferencial diverso, nos termos de eventuais acordos de comércio regionais. Não é sem razão que regras de origem são um ponto fundamental nas negociações da ALCA. De fato, o sucesso de um acordo de integração econômica regional depende, fundamentalmente,  da forma como são estabelecidas as regras de origem, em especial em relação ao rigor, seletividade, transparência e simplicidade administrativa. Deve-se, a todo custo, evitar que sejam criadas áreas protegidas para determinados setores industriais, pois isso pode alterar a estrutura das preferências estabelecidas e até mesmo todo o cronograma de eliminação tarifária. É quase desnecessário lembrar que é com base nas regras de origem que alguns países vêem legitimamente obstaculizando à utilização de componentes originários de países não integrantes de determinada zona de livre comércio. O tema é tão relevante que é por essa razão que tanto o MERCOSUL quanto o NAFTA estabelecem critérios para determinação das regras de origem. Contudo, dada a divergência dos critérios usados por ambos para definir a origem da mercadoria, será necessária uma harmonização desses textos legais para a celebração da ALCA. Breve: o grupo de trabalho sobre Procedimentos Alfandegários e Normas de Origem da ALCA estabelece os seguintes princípios: “(i) compilar da forma mais eficiente possível um inventário abrangente dos procedimentos alfandegários do Hemisfério e determinar a viabilidade da publicação de um Guia Hemisférico de Procedimentos Alfandegários; (ii) elaborar aspectos que sejam fundamentais para um sistema eficiente e transparente de regras de origem, inclusive de nomenclatura e certificados de origem; (iii) identificar áreas para cooperação técnica na operação de alfândegas, tais como conexões entre sistemas de computador e prevenção de fraude; (iv) recomendar uma abordagem específica para condução dos procedimentos alfandegários em escala hemisférica; (v) fazer recomendações específicas para a realização de negociações sobre as regras de origem”.

(iv) Investimentos

Alguns regulamentos internos sobre investimentos e investidores estrangeiros podem limitar ou reduzir o fluxo comercial. Medidas que dificultam a entrada de capital estrangeiro podem ser consideradas como verdadeiras armas nucleares apontadas contra potenciais investidores e contra o próprio comércio mundial como um todo. É fato que o Acordo sobre Medidas de Investimento relacionadas ao Comércio (“TRIMs”) da OMC visa promover a liberalização e a expansão dos investimentos estrangeiros. Segundo o TRIMs, qualquer medida de investimento relacionada ao comércio deve basear-se nos seguintes princípios: (i) não discriminação desfavorável aos estrangeiros, e (ii) obrigação de eliminar restrições quantitativas. Tendo em vista que a ALCA respeitará as regras da OMC, esses também serão os princípios fundamentais a serem perseguidos no processo de integração regional do continente americano. Os termos de referência relacionados a investimentos decorrentes da reunião de Denver da ALCA são: “criar um inventário de tratados e acordos sobre investimentos incluindo os dispositivos de proteção, existentes na região; compilar da forma mais eficiente possível, um inventário de regimes de investimento na região e, com base nessa informação, determinar áreas de convergência e de divergência, e formular recomendações específicas.” Para atender a esses princípios, o grupo de trabalho deverá: “publicar um manual sobre os regimes de investimento no Hemisfério; promover o acesso às Convenções Arbitrais existentes; publicar inventário dos acordos e tratados sobre investimentos da região”.(v) Normas e Barreiras Técnicas ao Comércio

A proteção da saúde, da qualidade de vida e da segurança dos cidadãos é dever de qualquer país. Essas medidas, porém, podem vir a ser tomadas visando, essencialmente, excluir exportações em detrimento de produtos nacionais. Tal postura é indesejável, tanto sob o prisma da OMC quanto da ALCA. Por essa razão lê-se nos termos de referência de Denver que a proposta da ALCA deverá “recomendar formas específicas de aumentar a transparência, especialmente no que se refere a estabelecimento de padrões; compilar informações sobre os órgãos existentes incumbidos da avaliação da conformidade dos regulamentos técnicos no Hemisfério bem como sobre as organizações que credenciam os referidos órgãos; recomendar métodos para promover a compreensão do Acordo da OMC sobre Padrões e Barreiras Técnicas ao Comércio, inclusive mediante assistência técnica.” Evitar que padrões e regulamentos sejam utilizados como barreiras não tarifárias é portanto um objetivo importante a ser perseguido nas negociações. (vi) Medidas Sanitárias e Fitossanitárias

“Ninguém discorda que as medidas sanitárias são essenciais e que, para a proteção da saúde dos consumidores, elas devem ser respeitadas não apenas pelos produtos importados, mas também pelos bens fabricados internamente”6. Tais medidas podem e devem ser utilizadas pelos países, desde que não restrinjam o comércio mundial nem sejam utilizadas de modo arbitrário visando exclusivamente discriminar produtos e países. As regras da OMC a esse título merecem ser citadas: toda vez que forem utilizadas medidas de proteção da vida ou da saúde humana, animal ou vegetal será o Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias que será aplicado, e não o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio. É também essa a postura da ALCA.

A esse título, vale observar que os termos de referência de Denver objetivam “criar um inventário de todos os acordos sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias no Hemisfério e compilar da forma mais eficiente possível um inventário dos regimes de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias na região; recomendar formas específicas de aumentar a transparência e de compartilhar informações, além de aperfeiçoar a compreensão das leis e regulamentos que afetam os fluxos de comércio na região; identificar práticas que possam requerer aperfeiçoamento e formular recomendações para seu aperfeiçoamento; promover a compreensão do Acordo da OMC sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias inclusive por meio de assistência técnica e recomendar medidas para implementação efetiva desse Acordo; aumentar o entendimento mútuo da base científica dos procedimentos para certificação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias, com vistas a recomendar formas de promover o reconhecimento de certificados entre os países do Hemisfério; compilar da forma mais eficiente possível os métodos usados para avaliar riscos no hemisfério, com vistas a trabalhar para encontrar abordagens comuns”.(vii) Subsídios, Antidumping e Medidas Compensatórias

Os subsídios não devem ser utilizados como um meio de ameaçar e, muito menos, de prejudicar parceiros comerciais. Essa regra simples na sua forma é a base do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias da OMC. A simplicidade de seus termos não reflete porém as dificuldades de sua aplicação. Seja como for, as condições necessárias para a caracterização de um subsídio, nos termos do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias, são: “(i) a existência de uma contribuição financeira governamental, ou de um órgão público; (ii) a existência de um benefício ou vantagem concedida à indústria nacional, em decorrência de um ato ou ação governamental; e (iii) a especificidade desse benefício a determinadas empresas ou indústrias nacionais7”. Esses três requisitos devem ser também a mola-mestra das negociações da ALCA. Já o  acordo sobre a Implementação do Artigo VI do GATT-99 define dumping como sendo “a oferta de um produto no comércio de outro país a preço inferior, a seu valor normal, no caso de o preço de exportação do produto ser inferior àquele praticado, no curso normal das atividades comerciais, para o mesmo produto destinado ao consumo no país exportador”. A caracterização de dumping requer, concomitantemente, três elementos: (i) preço com dumping; (ii) prova do dano;  e (iii) nexo causal entre o preço com dumping e o dano sofrido pela indústria doméstica. Tanto o dumping quanto o subsídio são considerados como práticas desleais de comércio. Assim, elas devem ser evitadas. A imposição de direitos anti-dumping ou compensatórios visa neutralizar o dano sofrido pela indústria doméstica, em virtude dessas práticas desleais de comércio.  Como o dumping e o subsídio afetam diretamente o setor privado, é importante a participação da indústria doméstica nacional na negociação desses tópicos na ALCA, pois ela será a grande beneficiária de eventuais medidas que poderão vir a ser adotadas resultantes das negociações dos grupos de trabalho.

Na verdade, o grupo de trabalho da ALCA tem por tarefa “identificar os subsídios à exportação agrícola e outras práticas de exportação que tenham efeitos semelhantes sobre o comércio hemisférico; recomendar maneiras de lidar com todas as práticas de exportação que distorcem o comércio, relativas a produtos agrícolas comercializados dentro ou com o Hemisfério; promover o entendimento das obrigações da OMC na área de subsídios e iniciar a compilação de um inventário sobre práticas de subsídios no Hemisfério; examinar informações sobre leis de dumping e de subsídios nos países do Hemisfério; trocar pontos de vista sobre a aplicação e a operação das leis de defesa comercial referentes a subsídios e dumping e elaborar recomendações para um trabalho adicional”.

(viii) Economias Menores

É essencial às economias menores integrantes da ALCA que sua plena participação seja assegurada durante as negociações. É patente que, para algumas economias menores, pode ser difícil uma participação expressiva nas negociações da ALCA. Diante disso, era importante prever uma forma de proteção a elas, através de mecanismos de assistência técnica e de exame das diferentes etapas de desenvolvimento de tais economias. A tarefa do grupo de trabalho da ALCA, a esse título, é “identificar e avaliar os fatores que afetam a participação das economias menores na ALCA e a expansão do comércio e investimentos por eles estimulada; identificar e examinar formas de facilitar o ajuste das economias menores ao processo da ALCA, inclusive a promoção e expansão de seu comércio, proporcionando recomendações sobre medidas a serem tomadas e assuntos a serem levados em conta nas negociações da ALCA; solicitar ao BID, à CEPAL, à OEA e a outras instituições relevantes que proporcionem informação pertinente sobre suas atividades a fim de facilitar a integração das economias menores no Hemisfério”.(ix) Compras Governamentais

“Numa era em que 25 a 40 por cento do grosso do produto nacional da maior parte dos países passa pelas mãos dos orçamentos públicos, discriminação contra produtos importados nas compras governamentais constitui uma das mais importantes barreiras ao comércio mundial, de um ponto de vista puramente quantitativo”8. O Acordo sobre Compras Governamentais, que integra os Acordos Plurilaterais constantes do Anexo 4 dos Acordos da OMC, não é obrigatório a todos os Membros da OMC9. Portanto, ele só se aplica aos Membros da OMC que o ratificaram. Trata-se de Acordo que não necessita ser respeitado pelos países não signatários. Ainda, por cuidar-se de um Acordo Plurilateral, não precisam ser obedecidas as regras do Acordo sobre Compras Governamentais pela ALCA, pelo menos em princípio. O objetivo do Acordo Plurilateral sobre Compras Governamentais é evitar que compras realizadas pelos órgãos governamentais sejam feitas de forma discriminatória. Trata-se, sem dúvida, de tema relevante. Tanto é assim que o MERCOSUL já vinha tentando estabelecer regras a esse respeito. O NAFTA já tem regras estabelecidas sobre compras governamentais. E é essa também a postura da ALCA, ao prever que o grupo de trabalho está incumbido de “(i) compilar, sistematizar e criar um inventário sobre a legislação, normas e procedimentos de compras governamentais nos países do Hemisfério, começando pelo Governo central e incluindo, entre outras, empresas estatais; (ii) baseado neste inventário realizar estudo sobre as barreiras de acesso às compras governamentais; (iii) elaborar um inventário e uma análise das disposições sobre compras do setor público incluídas nos esquemas de integração e outros acordos subscritos pelos países do Hemisfério; (iv) compilar a informação disponível sobre compras de bens e serviços por parte dos governos centrais, incluindo, entre outros, empresas estatais, dos países do Hemisfério; (v) determinar as áreas de convergência e divergência entre os diferentes sistemas de compras de governo dos países do Hemisfério; (vi) recomendar métodos que contribuam para promover a compreensão do Acordo da OMC sobre Compras do Setor Público; (vii) recomendar métodos que contribuam para promover a transparência nas compras governamentais; (viii) formular recomendações específicas sobre passos a seguir na construção da ALCA nesta área”. Com isso, pretende-se ampliar a transparência das compras governamentais na região, através da criação de mecanismos que facilitem o acesso às informações.(x) Direitos de Propriedade Intelectual

O Acordo TRIPS trata da proteção internacional de direitos de propriedade intelectual. No âmbito internacional, essa matéria não é uma novidade. Em 1883, em Paris, foi celebrada a Convenção sobre Proteção de Propriedade Industrial. Os direitos autorais, isto é, a proteção das obras literárias e artísticas, são tratados pela Convenção de Berna de 1886. Apesar disso, essas regras ofereciam uma proteção ineficaz, em muitos aspectos. Preencher as lacunas e, principalmente, diminuir as distorções e os obstáculos ao comércio mundial são o principal objetivo do Acordo TRIPS. “O TRIPS representa, portanto, um documento fundamental na consolidação da proteção dos direitos de propriedade intelectual na sociedade internacional contemporânea, e a vinculação definitiva desses direitos ao comércio internacional”10. Sem dúvida, o melhor meio para apoiar os investidores é oferecer condições de proteção dos direitos de propriedade intelectual. Isso porém não significa permitir a inserção nas negociações da ALCA de áreas não tratadas pelo TRIPS.

O grupo de trabalho na ALCA, de acordo com os termos de referência de Cartagena, deverá criar e compilar um inventário dos convênios, tratados e acordos relativos à propriedade intelectual existentes no Hemisfério, incluindo as convenções internacionais de que fazem parte os países; e, com base nessa informação, identificar as áreas de convergência e divergência. Além disso, recomendar métodos para promover a compreensão e a implementação efetiva do Acordo TRIPS; identificar as possíveis áreas de assistência técnica que possam solicitar os países; e analisar as implicações das novas tecnologias para a proteção dos direitos de propriedade intelectual na ALCA. Por fim, formulará recomendações específicas sobre os caminhos a trilhar nas negociações da ALCA.

 

(xi) Serviços

O setor de serviços, que engloba atividades extremamente distintas, tem grande e crescente importância. O setor de serviços vivenciou um grande desenvolvimento, principalmente a partir da década de 80. Hoje esse setor é um dos mais dinâmicos. O comércio mundial de serviços, apesar de ser equivalente a cerca de ¼ do comércio mundial de mercadorias, vem se expandindo a taxas muito superiores às que se verificam para o comércio de bens. O GATS engloba todo o comércio de serviços, segundo quatro modos de fornecimento:

-       prestação de serviços transfronteiras, ou seja, serviços que cruzam as fronteiras de um país Membro para outro;

-       consumo no exterior, ou seja, serviços disponíveis no território de um país Membro aos consumidores de outro país Membro;

-       presença comercial, ou seja, serviços prestados por entidade de um Membro que se encontra comercialmente no território de outro Membro;

-       movimento de pessoas físicas, ou seja, quando há a presença de pessoas no território de qualquer país Membro, enviadas por fornecedores estrangeiros de serviços de um outro país Membro.

Uma área de livre comércio pode incluir, além do comércio de bens, o livre comércio de serviços, de acordo com as regras previstas na OMC, em geral, e no GATS, em particular. São duas, porém, as condições impostas pela OMC para a liberalização do comércio de serviços em zonas de livre comércio. A primeira é que esses acordos regionais não devem excluir nenhum setor de prestação de serviços. A segunda condição é o respeito ao princípio do tratamento nacional por esses acordos, isto é, não permitir que os fornecedores de serviços no território da zona de livre comércio mas oriundos de países não signatários do acordo regional sejam tratados de forma diferente dos fornecedores regionais.

Apesar de as normas na OMC sobre serviços serem distintas das normas sobre bens, devido à natureza muito peculiar do comércio internacional de serviços, seus fundamentos básicos são idênticos, isto é, a cláusula de nação mais favorecida e o tratamento nacional. Deve-se ressaltar que, em relação ao tratamento nacional, há uma diferenciação importante entre as regras do GATS e as negociações de serviços na ALCA. No GATS o tratamento nacional é aplicado somente aos setores de serviços incluídos nas listas de compromissos específicos elaborada por cada país Membro, que estabelece os setores em que cada país se compromete a aplicar as regras de liberalização. Essas listas são as chamadas listas positivas. A contrario, na ALCA, as negociações defendem as chamadas listas negativas, isto é, todos os setores são liberalizados, exceto aqueles indicados pelos países como reservas ou exceções. Este é o modelo já adotado nas negociações do NAFTA.

(xii) Políticas de Concorrência

É um grande desafio preparar regras uniformes de defesa da concorrência numa extensa e diversificada área como a ALCA. É certo que a harmonização desse setor não apenas facilitaria negócios, mas fundamentalmente atrairia novos negócios. Isso porque, o investidor estrangeiro necessita de certeza e segurança jurídicas. Regras sobre políticas de concorrência afetam o core business das empresas. Todo o cuidado será pouco. De qualquer modo, o intuito previsto na ALCA é regulamentar políticas de concorrência de modo transparente e não discriminatório. Dessa forma, seria possível a criação de mecanismos de controle de práticas anticoncorrenciais cujos efeitos ultrapassem as fronteiras de um país. O grupo de trabalho sobre políticas de concorrência tem como termos de referência: promover a compreensão dos objetivos e mecanismos da política de concorrência; preparar um inventário das leis e normas internas, bem como dos acordos, tratados e outros arranjos existentes no Hemisfério sobre as práticas anti-concorrenciais e, com base nessa informação, identificar áreas de convergência e divergência; identificar os mecanismos de cooperação entre os governos que objetivam assegurar o cumprimento das leis sobre política de concorrência; recomendar os meios para ajudar a estabelecer e melhorar regimes de política de concorrência dos países; trocar impressões sobre a aplicação e operação dos regimes da política de concorrência nos países e sobre sua relação com o comércio numa área livre de comércio; e formular recomendações específicas para as negociações da ALCA.Solução de Controvérsias

“É fundamental dispor de um conjunto de regras sobre o que deve e o que não deve ser feito para evitar distorções no fluxo do comércio mundial. Mas, tão importante quanto isso, é estabelecer normas sobre como serão decididas as divergências que surgirão no futuro. É, portanto, necessário que tais normas sejam criadas antes que as divergências aconteçam”11. Para que a ALCA se desenvolva de modo adequado, é preciso que essa funcione de acordo com um conjunto de regras que terão por objetivo regulamentar a forma como serão decididas as disputas. Num sistema em que a integração é tributária das decisões dos países, não é possível deixar a eles o poder de apreciação soberana das regras integracionistas criadas. Resulta daí a necessidade de se criar um sistema de solução de controvérsias. Esse sistema deve ser entendido como uma verdadeira “legislação jurisprudencial”, cujo objetivo é complementar as regras jurídicas escritas, dando a elas uma interpretação harmonizada e uniforme. Para a implementação de uma política legislativa harmonizada,  é preciso criar uma autoridade supranacional hemisférica. Os impedimentos porém não são poucos, levando-se em conta apenas a Constituição Federal do Brasil. O sistema de resolução de disputas proposto na ALCA é um misto do sistema – bem-sucedido, pode-se dizer – da OMC com o mecanismo adotado pelo NAFTA.

O grupo de trabalho sobre resolução de controvérsias tem como termos de referência “(i) preparar um inventário sobre os procedimentos e mecanismos de solução de controvérsias estabelecidos pelos acordos, tratados e esquemas de integração existentes no hemisfério e os da OMC, anexando os textos legais; (ii) com base no inventário mencionado acima, identificar as áreas de convergência e divergência entre os sistemas de solução de controvérsias no hemisfério, inclusive no que diz respeito à medida em que foram esses sistemas empregados; (iii) trocar pontos de vista, após consultas internas com o setor privado, no que diz respeito aos mecanismos para incentivar e facilitar o uso da arbitragem e outros meios alternativos de resolução de controvérsias para a solução de litígios comerciais internacionais; (iv) recomendar métodos para promover a compreensão dos processos previstos no Entendimento sobre as Regras e Procedimentos que Regem a Solução de Controvérsias, da OMC; (v) à luz dos diversos assuntos a serem abrangidos pelo acordo da ALCA e outros fatores relevantes, trocar pontos de vista sobre possíveis enfoques da solução de controvérsias previstos no acordo da ALCA, segundo o Entendimento sobre as Regras e Procedimentos que Regem a Solução de Controvérsias, da OMC; (vi) formular recomendações específicas sobre passos a seguir na construção da ALCA nesta área”.

CONCLUSÃO


Não resta dúvida de que são os governos que determinam o ritmo do processo de integração econômica regional. Esse processo depende da convergência das prioridades dos países. Se as divergências forem muitas, o processo de integração seguirá um ritmo mais lento, podendo inclusive ser interrompido. A eventual primazia das disposições da ALCA sobre os direitos nacionais dos respectivos países não poderá ser efetiva, a não ser que reconhecida pelos países do hemisfério. É certo que a construção de uma zona de integração econômica regional não poderá ser feita sem renegarmos normas internas fortemente estabelecidas. E a questão que se coloca é: até que ponto os países do hemisfério estão dispostos a abandonar noções jurídicas clássicas em prol de uma integração? Se de fato os governantes do países negociadores da ALCA tiverem por objetivo alcançar uma união maior entre os povos hemisféricos, o problema da soberania e da primazia de regras da ALCA sobre regras internas será facilmente resolvido, apesar de sua aparente complexidade.

 

1. Palestra proferida em 20 de setembro de 2002 no I Fórum ALCA - Impactos na Economia Brasileira, promovido pelo Conselho Regional de Economia 2ª Região -SP.

 

2. M. S. Wionczek, A integração latino-americana e a política econômica dos Estados Unidos, trad. Christiano Monteiro Oiticica, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969, p. 116. O autor faz referência a conhecida peça de Samuel Beckett, En attendant Godot.

 

 

3. V., em geral, sobre o GATT-47, J. H. Jackson e W. J. Davey, Legal problems of international economic relations, St. Paul-Minn, West Publishing Co., 1986; R.E. Hudec, The GATT legal system, New York-Washington-London, Praeger Publishers, 1975; D. Carreau, T. Flory e P. Juillard, Manuel droit international économique, 3 ed., Paris, LGDJ, 1990.

 

4. A expressão “maior parte do comércio” tem sido interpretada como a desgravação total de pelo menos 85% do comércio, sempre medido em termos de valor.

 

5. Não se pode deixar de mencionar que, em resposta à criação do NAFTA, o Brasil, em 1993, lançou iniciativas concêntricas de integração econômica regional, no âmbito do MERCOSUL. São elas: a Área de Livre Comércio Sul-Americana (“ALCSA”) e a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (“ZoPaCAS”), entre países sul-americanos e africanos. O objetivo aqui era fortalecer a posição negocial brasileira, em particular e do MERCOSUL em geral, diante de eventual negociação com o gigante NAFTA.

 

6. K. W. Dam, The Gatt law and international economic organization, Chicago-London, The University of Chicago Press, 1970, p. 192-3.

 

7. L. M. Costa, “Subsídios e salvaguardas”, in OMC e comércio internacional, São Paulo, Aduaneiras, 2002, p. 64.

 

8. K. W. Dam, The GATT law and international economic organization, cit., nota 5, p. 199.

 

9. O Brasil não ratificou o Acordo sobre Compras Governamentais. Trata-se de área nova de regulação no direito brasileiro.

 

10. M. Basso, O direito internacional da propriedade intelectual, Porto Alegre, Livr. do Advogado Ed., 2000, p. 169.

 

11. L. M. Costa, OMC. Manual prático da Rodada Uruguai, São Paulo, Saraiva, 1996, p. 141. V., também da mesma autora, “O sistema de solução de controvérsias da OMC e a globalização”, in Negociações Internacionais e a globalização,  São Paulo, LTr, 1999, p. 146-60

Retirado de: www.saraivajur.com.br