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A época do terror e os pistoleiros dos serviços de inteligência
Fazer da Segurança Interna um sinônimo da Segurança Nacional, ignorar a soberania dos Estados e transformar os homens do Serviço de Inteligência em pistoleiros foram algumas das práticas do atual governo Bush

Sonia Ilich e Carlos Ilich Santos Azambuja

  
   A definição oficial dos EUA chama “terrorismo” o “uso calculado da violência ou a ameaça de empregá-la para alcançar fins de natureza política, religiosa e ideológica (...) mediante a intimidação, a coerção ou a inculcação do medo”.
   O período conhecido como da Guerra Fria (de 1945 a 1989) terminou quando o Muro de Berlim foi derrubado pelos próprios cidadãos berlinenses. Foi sucedido por uma breve Era Pós-Guerra Fria, que teve seu fim em 11 de setembro de 2001. A partir de então o mundo entrou em uma nova Era, que poderia ser chamada Época do Terror.
   Os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos além de destruírem o símbolo da supremacia econômica norte-americana resultaram em um número de norte-americanos mortos quase cinco vezes maior que os de todos os incidentes terroristas das três décadas anteriores somados e cerca de duas vezes maior que as vítimas do ataque japonês a Pearl Harbor. A lista de vítimas do World Trade Center incluiu ainda cidadãos de outros 62 países, inclusive alguns brasileiros.
   Os atentados desencadearam uma reação do presidente Bush semelhante à da Primeira-Ministra de Israel, Golda Meir, após o ataque palestino aos atletas de Israel durante as Olimpíadas de Munique, em 1972, que ficou conhecido como o Massacre de Munique: “Vamos matar os que mataram”, determinou, e a ordem foi cumprida à risca nos anos seguintes. Bush declarou guerra ao terrorismo de forma ampla, definindo que “aqueles que acolhem terroristas são terroristas da mesma forma; quem ajuda terroristas é um terrorista, e será tratado como tal”. Dessa forma, o espaço e a profundidade das ameaças de Bush abrangem o mundo inteiro. E ainda mais, segundo divulgado em 15 de dezembro de 2002 pelo jornal The New York Times, objetivando destruir “ameaças emergentes aos EUA”, o presidente Bush teria autorizado a CIA, por escrito, a matar, em qualquer lugar do mundo, os terroristas constantes de uma lista até agora secreta, considerados “o pior do pior”.
   Com o ataque de 11 de setembro, o presidente Bush reverteu o quadro de altíssima rejeição ao seu governo e abafou as acusações de fraude eleitoral, favorecimento de empresas e companheiros de campanha e de corrupção. A atenção dos norte-americanos se voltou inteiramente para arremeter o país indiscriminadamente contra o mundo árabe, incitando assim os muçulmanos contra o Grande Satã. Bush passou de vilão a xerife do mundo, e seus métodos até então questionados passaram a ser entendidos como a alternativa possível. .
   Fazer da Segurança Interna um sinônimo da Segurança Nacional, ignorar a soberania dos Estados e transformar os homens do Serviço de Inteligência em pistoleiros foram algumas das práticas do atual governo que conseguiram incompatibilizar os EUA com o resto do mundo e desvanecer o clima de solidariedade criado após os atos terroristas de 11 de setembro, com as ausências de consenso na ONU e na OTAN. As políticas unilaterais de Bush provocaram um isolamento dos EUA, o que toda a propaganda comunista ao longo de 40 anos de Guerra Fria não conseguiu realizar. Implantando um Estado Policial, Bush está criando exatamente o tipo de situação que os extremistas gostariam que fosse criado, pois agora têm um inimigo fascista para combater.
   Tudo isso parece comprovar que Segurança Nacional requer mais que a mera distribuição de tropas, operações militares de Inteligência e a criação de Departamentos que
  se superpõem (1). Ela depende do estabelecimento de um ambiente internacional que esteja de acordo com os interesses da Nação. Esse parece ser o papel da política externa de qualquer país. Parte importante dessa guerra não será travada no campo militar. O terrorismo começará a ser derrotado na medida em que forem sendo reduzidas a opressão, a fome, a miséria, a discriminação, o narcotráfico e a corrupção, sem esquecer que a não criação de um Estado Palestino está na origem da maioria dos atos terroristas.
   O problema de combate ao terrorismo não é uma tarefa simples, principalmente quando se lida com antigos aliados. A Al-Qaeda, responsável pelos ataques, e o regime Talibã, duas entidades destinatárias das bombas e mísseis norte-americanos, foram alimentadas pelos EUA durante a guerra travada contra a invasão do Afeganistão pela União Soviética nos anos 80.
   Dentre os muitos erros e desvios cometidos pelos EUA desde o fim da II Guerra Mundial, talvez o mais importante tenha sido o unilateralismo, um risco ocupacional que ronda as superpotências quando são as únicas sobreviventes de sua espécie. Sem um opositor à altura os EUA tendem a liderar sem ouvir, isto é a impor, um hábito que causa resistências mesmo entre seus aliados. Enquanto os EUA tiveram na União Soviética uma superpotência concorrente, os seus aliados – e até mesmo antigos adversários – toleravam a arrogância porque havia “algo pior”.
   Com o fim da Guerra Fria, o “algo pior” desapareceu e as políticas dos EUA passaram a ser consideradas cada vez mais imperativas ou mesmo imperiais e insensíveis com relação aos interesses alheios, como o não pagamento das quotas devidas à ONU, o não reconhecimento do Tribunal Penal Internacional, o não ratificação do Tratado de Banimento de Testes Nucleares, e da Convenção de Otawa relativa a minas terrestres, bem como do Protocolo de Kyoto sobre Mudanças Climáticas.
   Igualmente as autoridades norte-americanas mostram-se insensíveis na medida em que a opulência e o poder dos EUA vêm sendo apontados como culpados, em grande parte do mundo, pelas iniqüidades geradas pela globalização do capital, identificando-se com algo, no exterior, que jamais tolerariam no âmbito interno: os danos causados por um mercado desprovido de regulamentação e de uma rede de segurança social, dando, assim, razão a Karl Marx quando este definiu que a riqueza não é distribuída igualmente por todos ao mesmo tempo, o que acarreta alienação.
   Outra atitude antipática é a parcialidade com que os EUA toleram as contínuas provações e repressões a que os israelenses submetem os palestinos no Oriente Médio e com que o governo Bush, ao contrário de Clinton, ainda incentiva o acirramento do confronto.
   Tais deficiências resultam de uma visão estratégica equivocada, cuja base é a ilusão de que é possível pôr em prática qualquer política em qualquer lugar sem provocar conseqüências.
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  (1) O Departamento de Segurança Interna, criado em novembro de 2002 por Lei do Congresso tem como principal objetivo evitar ações terroristas em território norte-americano. Contará com um orçamento de US$ 38 bilhões e 170 mil funcionários que atualmente trabalham em 22 Departamentos e Agências, como a Guarda-Costeira, a Polícia de Fronteiras, os Serviços de Imigração, assim como a nova Agência de Segurança do Transporte Aéreo. Esse novo Departamento atuará independentemente do FBI e da CIA e será dotado de meios para que todos os tipos de telefones, receitas médicas e até passagens em pedágios automáticos sejam registrados em um grande computador, responsável pela identificação de terroristas em potencial.
   A luta contra o terrorismo forjou inicialmente uma coalizão composta por 90 países. Estados Unidos, União Européia, China, Rússia, Japão, Paquistão, Uzbesquistão e até, talvez, o Irã, tornaram-se aliados contra o desafio à autoridade e à segurança que o terrorismo traz a todos os Estados. Assim reapareceu o “algo pior”.
   Os tempos, entretanto, parecem ser outros! Na era da informação é preciso tolerar a diversidade, abrir mão do unilateralismo e saber lidar com os ressentimentos que, em última análise, alimentam o terrorismo. Princípios que o governo do presidente Bush parece desconhecer.
   Com isso, o período da Época do Terror – chamemo-lo assim – está destinado a ser mais doloroso que os anteriores – vide o atentado em Bali, Indonésia – pois na medida em que as reações passarem a mais retaliações a coalizão antiterrorista decerto sofrerá pressões e defecções.
   Sabendo-se que o antiterrorismo consiste em levar a guerra aos terroristas ANTES que eles levem a cabo qualquer ataque e, portanto, que sejam causados quaisquer tipos de danos, sempre existirá o perigo que os que se pretendem antiterroristas apareçam perante a opinião pública como os terroristas de fato, por darem resposta a algo que não ocorreu e defenderem interesses particulares à custa de vidas de inocentes cidadãos. E isso parece estar em vias de ocorrer.

Retirado de: http://www.direito.com.br/Doutrina.ASP?O=1&T=3224