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Alca versus Mercosul - II (Canadá x Brasil)

A disputa comercial entre o Brasil e o Canadá envolvendo as indústrias aeronáuticas Embraer e Bombardier, acompanhada do embargo canadense à carne brasileira, permite avaliar o diferencial de poder entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Ainda que, formalmente, trate-se de um episódio bilateral, também se relaciona com a disputa em torno da formação da ALCA, a Área de Livre Comércio das Américas.

O Brasil é acusado de subsidiar o setor. Ocorre que tal política de incentivo é praticada de forma explícita, através de um programa governamental. Já países como o Canadá e os Estados Unidos praticam formas indiretas e pouco visíveis de subsídio. No caso da indústria aeronáutica, as políticas de defesa desenvolvem pesquisas e avanços tecnológicos com recursos públicos, que posteriormente são disponibilizadas praticamente sem custos para indústrias privadas civis. Assim, vislumbra-se uma forma de pressão para evitar que grandes países do Terceiro Mundo desenvolvam certas tecnologias sensíveis.

Como instrumento de pressão, são desencadeadas retaliações em setores vitais para as exportações destes países, como o agropecuário. No caso da carne, a própria opinião pública canadense deu-se conta da manobra, posicionando-se contra a atitude do governo. O absurdo é ainda maior, na medida em que a "vaca louca" constitui um problema gerado no Primeiro Mundo. A Europa, passando por cima das chamadas vantagens comparativas, que tanto exalta ao criticar os subsídios industriais dos países em desenvolvimento, impulsionou a irracional política agrícola comum, por razões políticas e sociais. Carente de pastagens, os europeus resolveram produzir carne em grande quantidade, empregando rações que contém inclusive carne, a loucura que gerou a vaca louca.

   

Enquanto o Canadá defendia seus interesses nacionais com vigor, menosprezou o fato de que tal atitude geraria uma reação unânime dos produtores e governo brasileiro, em especial do Ministério da Agricultura. Se o Brasil fosse membro da Alca, tal reação provavelmente seria impossível, pois estaríamos submetidos a determinadas regras "técnicas". Talvez o episódio, que nitidamente escapou do controle, sirva para despertar a consciência dos riscos que o projeto da Alca contém, e de que maneira os vários setores da economia estão associados. Especialmente no caso dos que são indiferentes à Alca, por acreditar que seu setor não seria afetado.

Mas a disputa Brasil-Canadá também possui outras dimensões ocultas. A Bombardier é uma subsidiária de companhias norte-americanas. Além disso, o episódio constitui um instrumento de pressão americano sobre o Brasil, exercido através de intermediários, num momento em que as negociações da Alca podem vir a ser antecipadas. Cria-se um problema para o Brasil, que seria resolvido caso cedêssemos na questão da integração hemisférica. Assim, ganharíamos o que já era nosso, e cederíamos numa questão que compromete a futura inserção internacional do Brasil. Portanto, na questão do Canadá, parafraseando Shakespeare, entre o céu e a terra há mais coisas do que a nossa vã filosofia se apercebe.

Paulo Fagundes Vizentini é Professor de Relações Internacionais e Diretor do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS. Pesquisador Associado do NUPRI/USP.