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Alca versus Mercosul III : uma década de integração

Os dez anos de criação do Mercosul transcorreram em meio à crise econômica argentina e às pressões americanas pela aceleração das negociações da Alca. Assim, o transcorrer de uma década, normalmente voltado para comemorações e balanço do passado, neste caso abre espaço para críticas e discussão de perspectivas futuras.

Ainda que muitos considerem o Mercosul uma iniciativa malograda, é preciso reconhecer suas realizações. Numa década marcada pela abertura das economias, que castigou os países em desenvolvimento, o Mercado Comum do Sul serviu para mitigar a desindustrialização que afetou muitos países. O estabelecimento de uma Tarifa Externa Comum (TEC), ainda que limitada a certos produtos, permitiu que empresas locais, que não seriam competitivas no plano mundial nem poderiam concorrer internamente com as importações, em caso de abertura total, pudessem sobreviver. De fato, o Mercosul foi bem sucedido em propiciar um desvio de comércio em favor dos países membros.

Por outro lado, a existência da TEC, ao dificultar importações, fez com que transnacionais aqui investissem ou se instalassem como forma de ter acesso aos mercados locais. Assim, o crescimento do comércio intrabloco foi intenso, e não passou desapercebido pelas grandes potências, levando os EUA a reagirem propondo a Alca, e a União Européia a assinar um Acordo Marco de Associação com o Mercosul. Paralelamente, ele passou a atrair outros países sul-americanos, como o Chile e a Bolívia, que se tornaram associados. Enfim, o Mercosul evitou que a região retrocedesse, como ocorreu com a outras partes da América Latina e com a África, e a região platina se tornou uma referência mundial.

Contudo, os governos dos quatro países-membro, não aproveitaram a situação para lançar políticas efetivas no campo tecnológico e macro-econômico para tornarem suas empresas competitivas, permitindo, inclusive, a desnacionalização de ramos estratégicos, cujo controle seria vital para efetuar-se um salto qualitativo. Além disso, negligenciaram a importância da ampliação dos próprios mercados internos que, se ampliados via reformas sociais, lhes proporcionariam uma economia de escala, potencializando o desempenho de suas empresas. Faltou, enfim, um projeto de desenvolvimento conseqüente.

Mas, mesmo que muitos insistam em repetir isto, a integração não se limitou ao comércio, ainda que diversos ítens do Tratado de Assunção permaneçam letra morta. Após quase dois séculos de existência separada, os países envolvidos no processo propiciaram condições para a aproximação de suas sociedades. Nos campos cultural, educacional e político-social, o Mercosul também transformou-se numa realidade, lamentavelmente encarada sem a devida importância pelos governos.

Assim, a crise financeira e comercial gerada pela desvalorização do Real em 1999, a recessão profunda em que a dolarizada economia argentina mergulhou, bem como a instabilidade dos mercados financeiros mundiais, produziram a chamada "crise do Mercosul". Na verdade, a crise é mais dos modelos de inserção econômica internacional dos quatro países-membro do que da integração enquanto tal, pois cada um tenta compensar dentro do Mercosul, déficits comerciais que possuem individualmente com outras regiões, especialmente no caso da Argentina. Isto, por sua vez, é consequência de uma política comercial que facilita importações dos EUA, UE e Ásia, e dificulta as exportações locais, que seriam compensadas pela atração de capitais (a maioria dos quais especulativos), em lugar de fomentar a produção.

Neste contexto, houve a tentativa brasileira de dar um salto qualitativo, propondo a integração sul-americana na Reunião de Cúpula de Brasília de setembro de 2000, através da associação entre o Pacto Andino e o Mercosul. A reação americana não tardou: tentativa de cooptação do Chile, com a proposta de ingresso no NAFTA; condicionamento político da ajuda financeira à Argentina ao apoio à Alca; e a própria busca de aceleração dos prazos de negociação da integração hemisférica. Para completar, a Argentina busca dividir o custo de recuperação de sua crise com o Brasil, fragilizando ainda mais o Mercosul.

Assim, ao completar dez anos de existência, o Mercosul esgotou-se no formato até então vigente. Para sobreviver, é preciso que seus dois maiores membros rejeitem, a curto prazo, a aceleração dos prazos de implantação da Alca na reunião de Quebec, e, a médio prazo, recusem a própria noção de integração hemisférica, pois ela implica no desaparecimento ou dissolução do Mercosul. No plano da integração propriamente dita, é necessário um aprofundamento, com a adoção de instituições supranacionais com poder de decisão e de políticas marco-econômicas comuns, criando mecanismos para a retomada do crescimento da produção e de estabelecimento de fundos de compensação para os setores mais prejudicados. Além disso, é preciso criar um fundo de desenvolvimento científico-tecnológico, a ser financiado com recursos da TEC.

Finalmente, devem ser aprofundados os vínculos com a UE (via acordo de associação) e com a Ásia, além dos já existentes com o Nafta, para que a região tenha certa margem de manobra como global player. Mas, paralelamente, é preciso concretizar a integração de toda a América do Sul e do Atlântico Sul, com a associação do Pacto Andino e da SADC (South African Development Coordination), já proposta por países-membros destes dois blocos. Assim, a personalidade do Mercosul como integração de países em desenvolvimento seria preservada. Tudo dependerá da vontade política dos governos e, esta, da tomada de consciência e da mobilização das respectivas sociedades. Assim, o Mercosul deixaria de ser uma forma defensiva e adaptativa de integração frente à globalização, para tornar-se um instrumento estratégico de desenvolvimento e de inserção internacional em sentido positivo.

Paulo Fagundes Vizentini é Professor de Relações Internacionais e Diretor do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS. Pesquisador Associado do NUPRI/USP.