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Notas Sobre o Impacto da ALCA Sobre o Sistema Jurídico Brasileiro

Luiz Olavo Baptista*
Introdução
Alguns temas são recorrentes em vários ambientes. Na economia, na política, nas relações do trabalho, nas reflexões dos meios acadêmicos, encontramos referências à mundialização ou globalização, a diferentes formas de regionalismo (cuja importância varia de acordo com a região), e ao chamado neoliberalismo.
Este começa a assumir características ideológicas de tal importância que pode ser tido como uma nova religião laica. Algum leitor da Bíblia poderia até compará-lo à adoração do bezerro de ouro pelos hebreus durante o Êxodo (quiçá na esperança - virtude teologal - de que um novo Moisés desça do Sinai para destrui-lo quebrando as tábuas da lei).
A característica militante tem como conseqüência impedir as pessoas de uma visão crítica do que ocorre - com medo da excomunhão pelos iniciados.
Por isso, há poucas análises sobre seu real conteúdo e efeitos, havendo, a par da adoração fanática, críticas, em geral desinformadas ou que partem de plataformas ideológicas, o que lhes impede o acesso à objetividade.
Os regionalismos, por sua vez, são ora cantados em prosa e verso, ora combatidos ferozmente. Para esse tema, também faz falta uma visão equilibrada, analítica. Com a globalização passa-se o mesmo.
A ALCA é vista dentro desse quadro.
Há quem a recuse porque é forma de regionalismo, há quem a rejeite porque seria fruto do neoliberalismo, ou instrumento da globalização, e há ainda os sobreviventes do mundo bipolar que a abominam ou adoram apenas por ser iniciativa norte-americana.
É preciso que apreciemos o tema sob outro ângulo: o do impacto que terá e da sua conveniência para o Brasil.
Mas, ao fazê-lo sei que mesmo essa abordagem causará arrepios em alguns, dos missionários - neoliberalizantes, globalizantes e outros - aos interessados - lobistas, importadores, certos investidores – pois, para eles, seu ideário ou interesses colocam-se acima da noção de interesse nacional, e as análises críticas podem ser vistas como obstáculos ao seu modo de pensar.
Uns argumentarão o fato de que os Estados não tem mais importância (ou até que já morreram e apenas se aguarda seu enterro). Outros, que a idéia de Nação, além de anacrônica, só serve para separar a Humanidade e que, por isso, deve ser atirada na vala comum dos preconceitos e discriminações do passado. Enfim, outros ainda alegariam que o interesse é do mercado, e que a expansão deste, resultando no bem de todos, tudo o que se diga em contrário redunda no mal.
Este artigo, então, é exercício de navegação em águas perigosas. Certamente desagradará a todos, pelo menos em algum ponto. Porém, para quem tem a formação de advogado e de professor, esta é uma preocupação secundária. Para se advogar é preciso ter em vista o interesse do cliente, e não temer o desagrado dos que se opõe a esse, e para descobrir a verdade científica é preciso saber dizer, ainda que entredentes, para o inquisidor de plantão: - e pur si muove...
Devidamente advertido o leitor de que - além da possibilidade de não gostar do estilo - não gostará de coisas que aqui serão ditas, passo a abordar a ALCA sob o ângulo do jurídico, enfocando-o a partir do que concebo como o interesse nacional de um brasileiro.
Desde logo, desagradarei os positivistas de plantão:– direito é história, é vinha que adquire características próprias do terreno em que cresce, e que depende do vinhateiro e de seus métodos para transmiti-las ao vinho que se extrairá de seus frutos.
Assim também os fatos econômicos, sociais, assim como a tradição e a cultura de cada povo, têm peso e efeitos certos e fundamentais no que é ou virá a ser o direito em cada época e lugar.
Mas uma característica da mundialização (talvez a mais evidente) é a tentativa de estabelecimento de padrões globais, inclusive no campo normativo. Estes se almejam para facilitar as movimentações dos fatores produtivos, permitindo que o movimento de integração global prossiga no âmbito econômico. Com isso, é afetado o universo jurídico, tendo em vista a exigência de novas regras para as atividades econômicas.
Portanto, para os adeptos da globalização, o vinho, digo, o direito deveria ser um blend, mistura cujo gosto pudesse agradar a todos na melhor das hipótese, ou a desagradar apenas a algumas minorias na pior delas. Nada de vinhos regionais, com safras marcadas - apenas varietais sem indicação de safra, pois as melhores mescladas às piores levam ao produto anódino que qualquer um pode tomar sem fazer caretas.
Essa postura é irrealista, pois tanto quanto cada homem nasce com um paladar diferente, e seu gosto é educado no curso de sua vida por suas experiências, assim também as suas necessidades em matéria de direito precisam ser específicas para sua cultura, e até mesmo para sua classe.
Essa idéia do blend jurídico conduz a um resultado similar ao dos textos dos tratados internacionais: a necessidade do consenso leva a concessões que tendem a diluir o conteúdo, ao mesmo tempo em que introduzem contradições e inexatidões, pois tanto mais vago o sentido mais fácil de torná-lo aceito por todos. Essas características levam, irresistivelmente, à necessidade de interpretação, e esta conduz à especificidade e diversidade.
O caso da OMC é antológico e autoexplicativo, pela sua contemporaneidade, amplitude temática e extensão geográfica. Não há texto mais difícil de se interpretar e aplicar, não há texto em que as interpretações possam ser mais diferentes.
Mesmo a existência de leis uniformes ou leis modelo não conduz à almejada unificação do direito, como qualquer leitor da Revue de Droit Uniforme da Unidroit pode constatar ao ler a crônica jurisprudencial.
Uma tendência de todos os movimentos de integração tem sido a harmonização de direito.
O emprego da palavra harmonização pode ser decorrente de duas atitudes teóricas. Uma, a de quem sabe que a uniformização formal do direito não leva a resultados concretos², outra a de quem procura o blend jurídico.
Como resultante pragmática, a última visão teórica abrange não só normas substantivas como também aquelas de procedimento. Tem uma incidência inegável sobre a cultura jurídica que tende a descaracterizar, levando à criação de um modo de pensar único, em geral o de quem detém a hegemonia.
Alguns autores ³ apontam este fenômeno no Nafta, e por isto a proposta normativa contida neste tratado - que abrange desde regras aduaneiras até as de investimentos, passando por medidas de defesa econômica, limitações ao poder normativo dos Estados e mecanismos de solução de disputas entre outros temas - merece um exame, pelo impacto que pode ter sobre o Brasil, na eventualidade da ALCA vir a se concretizar.
Evidentemente as diferenças históricas, econômicas e políticas existentes entre os países da América Latina e os anglo-saxões da América do Norte, constituem-se num verdadeiro abismo, que teria que ser atravessado no domínio jurídico para que houvesse esta harmonização. Essa travessia pode ocorrer pelo predomínio de um sistema sobre o outro - que será superado, como os ameríndios foram, com a chegada dos europeus - ou pela criação de um blend jurídico.
Cabe assinalar que a palavra integração tem alcance mais amplo que o econômico, quiçá porque o elemento cultural, e, nele, o jurídico, cumprem o importante papel de criar o quadro no qual a atividade econômica se desenvolverá.
Abrange, como é inevitável, o aspecto social, e nele o jurídico desempenha funções diferenciadas, organizando a vida quotidiana, e às vezes induz a novos padrões sociais.
Dessa forma, o direito será fator de facilitação do comércio (ou obstáculo), elemento de organização social que dá estabilidade ao projeto integracionista, motor ou freio no seu percurso.
Os efeitos da integração regional sobre os Estados participantes, em geral, são mais profundos, porque mais concentrados, que os da mundialização. Por isso a necessidade da harmonização regional - uma variante do blend jurídico universal que resultaria da mundialização. Ela é mais específica, e portanto mais característica, respondendo a objetivos próprios de um número menor de participantes.
Temos sob nosso olhos a experiência do Mercosul, tendo sido um dos objetivos do Tratado de Assunção, definido no seu art. 10o, justamente,
"O compromisso dos Estados Partes de harmonizar suas legislações, nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento do processo de integração."
Com efeito, o volume de normas emanadas do Mercosul, ou com ele relacionadas, destinadas à harmonização da legislação já não é pequeno, e tendo em vista o tempo decorrido, antes é preocupante operacionalmente que animadora, sobretudo no plano regulamentar.
A implementação dessas normas adquire, no curso da curta história do Mercosul, uma importância crescente. Basta ver a literatura sobre solução de disputas e sobre a aplicabilidade das normas da organização ?.
Dá também lugar ao aparecimento de teorias que passam a ver a integração como um fim em si mesma, e exigir a aplicabilidade das normas porque são de integração. Essa atitude - que poderá ter reflexos na temática da ALCA - merece uma breve nota.
Em geral, a pressão pela regulamentação e "jurisdicização" da normativa integracionistas parte dos parceiros menores. É que o direito tende a proteger o fraco contra o forte. Parte também de setores da vida acadêmica encerrados na torre de marfim das disputas teóricas, incapazes de colocar as realidades da política e da economia nos seus esquemas mentais. Mas há outros aspectos que aparecerão no curso do tempo e que se enquadram no que chamarei de "aculturação jurídica", e que procurarei examinar mais adiante.
Feito este registro, anoto que há, sem sombra de dúvida, a tessitura de uma trama regulamentar que se sobreporá à nacional, em certas áreas - ao mesmo tempo em que com ela se mescla, em todos os níveis do poder.
Não é à toa que certos movimentos de integração regional deságuam num processo de federação ou confederação, como ocorreu na Europa, no século passado, com a experiência alemã do Zollverein, e vem ocorrendo em outros termos, na União Européia. O motor, ou melhor, a intenção motivadora desse rumo, é uma vontade política de algum centro hegemônico. No caso da Alemanha, foi a vontade da Prússia de unir os principados e reinos independentes. No da União Européia foi, de um lado, o desejo da democracia cristã de criar um bloco ideológica e politicamente unido capaz de fazer face ao império soviético, e de outro a necessidade da França e da Alemanha de se estabelecerem como pólos de um mecanismo agregador onde representassem a vontade hegemônica. De Adenauer e De Gaulle, até Kohl e Chirac, a concertação é constante, e o objetivo tem sido sempre o mesmo.
A proposta da ALCA é criar uma "zona de livre comércio". Desta a uma confederação, como a União Européia, a distância é grande. Entretanto, o objetivo da harmonização está presente.
Um exemplo muito marcante são os termos de referência para o Grupo de trabalho sobre resolução de controvérsias, elaborados por ocasião da IIIº Reunião dos Ministros de Comércio, em Belo Horizonte, em 1997, constando no Anexo II, abaixo transcrito:
"Anexo II
Termos de referência para o grupo de trabalho sobre solução de controvérsias
1.Preparar um inventário sobre os procedimentos e mecanismos de solução de controvérsias estabelecidos pelos acordos, tratados e esquemas de integração existentes no hemisfério e os da OMC, anexando os textos legais.
2.Com base no inventário mencionado acima, identificar as áreas de convergência e divergência entre os sistemas de solução de controvérsias no hemisfério, inclusive no que diz respeito à medida em que foram esses sistemas empregados.
3.Trocar pontos de vista, após consultas internas com o setor privado, no que diz respeito aos mecanismos para incentivar e facilitar o uso da arbitragem e outros meios alternativos de resolução de controvérsias para a solução de litígios comerciais internacionais.
4.Recomendar métodos para promover a compreensão dos processos previstos no Entendimento sobre as Regras e Procedimentos que Regem a Solução de Controvérsias, da OMC.
5.À luz dos diversos assuntos a serem abrangidos pelo acordo da ALCA e outros fatores relevantes, trocar pontos de vista sobre possíveis enfoques da solução de controvérsias previstos no acordo da ALCA, segundo o Entendimento sobre as Regras e Procedimentos que Regem a Solução de Controvérsias, da OMC.
6.Formular recomendações específicas sobre passos a seguir na construção da ALCA nesta área."
A leitura da Declaração de Princípios, assim como dos anexos Plano de Ação e Apêndice, de 11 de dezembro de 1994, frutos do Encontro das Américas em Miami, mostra-nos que outras atividades além do comércio de bens e mercadorias estarão sendo negociadas, e serão objeto dos tratados que irão compor a ALCA.
Esses documentos, por um lado contém uma verdadeira súmula das pautas da diplomacia dos Estados Unidos, incluindo temas que foram propostos durante a Rodada Uruguai (e em outras rodadas anteriores) e que não foram adiante, problemas como o tráfico de drogas, o terrorismo, a propriedade intelectual e outros. E por outro lado, estão presentes os temas tradicionais dos países latino americanos, como a autodeterminação dos povos, o respeito ao direito internacional, o desenvolvimento sustentável, etc.
No decorrer das negociações, aparece um quadro organizacional semelhante ao do NAFTA, tanto quanto ao modo de criar fatos e temas para serem negociados, através da iniciativa de ONGs e lobbies, quanto ao papel a ser desempenhado por um sistema de solução de controvérsias, e temário a ser coberto.
Tudo isto tem um inegável impacto sobre as instituições dos países que participarem da ALCA (Parte I). Ademais, terá efeitos sobre a soberania, assunto que também é preciso examinar (Parte II).

Parte I - Impacto sobre as instituições

Quase sempre as mudanças históricas (como as jurídicas) são resultado de pequenos passos, que não chegam a alarmar os participantes quando se dão - isso quando não passam desapercebidos - e por isto a reação é de acomodação. Afinal, tais modificações resultam de atitudes e crenças novas da sociedade.

Podem, em outros casos, decorrer de eventos externos, como a globalização e os novos acordos em matéria econômica, mas sua implantação também é quase sempre progressiva e permite o movimento de acomodação. Além do mais, num país das dimensões do Brasil há uma tendência a valorizar o universo mais próximo, familiar e fácil de compreender. O que permite que certos acordos internacionais introduzam importantes mudanças que passam desapercebidas até que produzam resultados?. Os efeitos dessas novas regras se fazem sentir de modo difuso e constante, havendo necessidade de um feed back da sociedade que procura restaurar o equilíbrio perdido pelo sistema, adaptando-se às novas condições. Reagindo de forma modificada, o sistema com nova composição de forças busca estabilizar-se em nova organização social.

Os tratados que influenciam a atividade econômica de modo forte, como os de Bretton Woods, na primeira metade do século, e da OMC?, nesta segunda metade, como os do Mercosul, são exemplos de tratados que foram inseridos na ordem jurídica nacional com pouco debate, tanto no Parlamento, quanto na sociedade civil, apesar das grandes modificações que aportaram e vão aportar ao sistema normativo. Estas correm parelhas com alterações nas atividades econômicas, administrativas, comerciais, industriais, sociais.

Contudo, estes tratados não são causa causandi isolada, como também conseqüências de outras causas - como a mundialização financeira, a chamada revolução nas comunicações, e a ação das empresas transnacionais?.

Agora, com a possibilidade de se colocar em ação uma nova experiência integradora - a ALCA - teremos novos vetores interferindo na homeostase do sistema jurídico brasileiro.

Essa interferência tem duplo alcance - tende a diminuir o âmbito de independência do sistema, ao mesmo tempo em que o muda qualitativamente.

O impacto sobre as instituições que um tratado da amplitude do ALCA terá não se cinge ao campo legislativo. Há, com certeza, a exigência de certas alterações e modificações que ocorrerão na natureza mesma das instituições, sendo as mais afetadas os Poder Legislativo e Judiciário.

O papel desenvolvido por essas instituições será modificado pela transferência de poder que se operará.

A função legiferante escapará progressivamente dos organismos políticos nacionais para uma rede intergovernamental em expansão (a qual por ser ainda informe e num estágio ainda pouco estudado de sua evolução não é claramente percebida no âmbito jurídico ou da ciência política), à qual se associarão com poder não regulamentado e sem controles democráticos as ONGs, e o lobbies de interesses econômicos que se colocam como os novos elaboradores do direito (Seção A).

O Judiciário será também objeto de mudanças no modo de agir que lhe serão impostas, sem prejuízo do esvaziamento de suas funções, redistribuídas a organismos administrativos com poder judicante ou a órgãos supranacionais, assim como a organização do Estado deverá assumir nova forma e conteúdo (Seção B).

A - Os novos elaboradores do Direito

Os grupos de trabalho criados para a preparação dos acordos da ALCA representam a parte visível de uma ação que vem sendo desenvolvida na criação do direito, por dois tipos de atores privados - ou se preferir, não estatais - as ONGs (§1) e os grupos de interesses econômicos através da ação dos lobbies, institucionalizada (§2).

§1 – As ONGs

A carta da ONU já previa a atuação, como observadores, de certas entidades - como a cruz vermelha, por exemplo - que eram chamadas de organizações não-governamentais.

Com o correr do tempo, associações civis, nacionais, de ação internacional, passaram a se enquadrar nessa categoria, sendo as mais evidentes as denominadas organizações verdes, que se interessam pela ecologia e temas relacionados (como a proteção dos animais contra tratamento cruel) e as que cuidam dos direitos humanos.

As organizações adquiriram um poder decorrente do uso dos meios de comunicação, mas também da sua ação constante no convencimento das autoridades e nas conferências internacionais, onde descobriram um meio eficaz de introduzir normas que de outra maneira talvez não conseguissem nos seus países de origem. A vantagem ainda seria maior pela universalização das regras.

A Conferência do Rio foi um exemplo claro do poder de mobilização e da ação das ONGs.

Pelo fato de serem monocórdios, esses grupos tem uma visão deformada da realidade e tendem a ignorar tudo o que não está na esfera de suas preocupações. Na ausência de um poder que combine esses interesses - quando legítimos - com o geral, as normas que resultarem de sua atuação serão inadequadas.

A inadequação é tanto mais grave porque a modificação de um tratado é muito mais difícil que sua elaboração, criando-se uma quase camisa de força legislativa.

§2 - Os grupos de interesse e lobbies

O Foro Empresarial das Américas, em documento resultante de sua reunião de 18 a 21 de março de 1996, colocou como tema central de suas preocupações,

"crear una forma efectiva para lograr que para el año 2005 la asesoría y los intereses de la comunidad empresarial tengan una influencia efectiva en el proceso de negociación del ALCA por parte de los gobiernos;

garantizar que el sector privado esté suficientemente bien informado acerca de los objetivos de ALCA y del progreso que se puede lograr con el fin de:

analizar la implicaciones de ALCA en cuanto a los intereses comerciales y hacer los ajustes necesarios;

comprar y respaldar los objetivos de ALCA;

participar activamente en los esfuerzos de educación y apoyo, tanto dentro del sector privado como del publico en general"

A proposta é descritiva da atuação que os empresários se atribuem na criação da ALCA. Não só desejam saber, como pretendem influir, e o fazem.

Assim, tal como agem as ONGs, os grupos de interesse existentes no âmbito empresarial, representativos de vários setores se fazem ouvir através dos grupos de trabalho, da assessoria, enfim, da atividade de lobby.

Esta não tem a clareza e a transparência do processo parlamentar, e como bem indicado num editorial do jornal O Estado de S. Paulo, "é impossível distinguir precisamente a negociação e o trabalho preparatório"?.

Dentre os grupos empresariais temos interesses não só setoriais como nacionais. Assim, Vincent McCord, Tesoureiro da Associação das Câmaras de Comércio Americanas na América Latina, num depoimento aponta o NAFTA como modelo, eis que

"its broad coverage of trade and investment issues has been seen as the model around which Hemisphere-wide free trade would be built",

e diz claramente que consumidores e líderes empresariais não adquiririam bens norte americanos,

"unless we maintain our leadership in setting the trade rules that allow them to successfully compete in these markets",

e que

"the business community wants the road map for Hemisphere-wide free trade to be built by our negotiators, under terms that are fair for our exporters and investors".

Exposição mais clara do desejo de influenciar as negociações não poderia ser encontrada. Mas não nos iludamos pensando que esse modo de pensar é exclusivo dos norte-americanos. Brasileiros, chilenos, colombianos, mexicanos etc., todos querem de algum modo influir para criar normas que os sirvam, ou pelo menos não atrapalhem suas atividades, defendendo, assim, seus interesses.

Dessa forma, temos um novo foro para a criação do Direito - Direito Internacional é certo, mas de efeitos locais pronunciados - onde os procedimentos democráticos tradicionais, previstos no modelo da representatividade e da tripartição dos poderes se vê contornado ou substituído por outro tipo de representatividade.

Com efeito, o papel do Legislativo será limitado a aprovar ou não o acordo já feito sem sua colaboração pelos funcionários do Executivo, que terão recebido informações - e sido influenciados, portanto, pelos grupos de interesse e ONGs mais eficientes.

O papel do Judiciário será de interpretá-lo e fazê-lo aplicar no âmbito da competência que lhe for assinada pelo acordo, eis que este criará seus próprios mecanismos de solução de disputas, que poderão - como ocorreu no NAFTA - esvaziá-la.

Por outro lado, como aspecto positivo, pode-se apontar para o fato de que a permeabilidade e a difusão que ocorrem na fase preparatória permitem o acesso a minorias e a grupos de interesse que talvez não tivessem representatividade no sistema tradicional, assegurando-lhes vez e voz.

Além disso, a existência de organismos de solução de disputas mais rápidos e modernos pode levar o Judiciário a sair da imobilidade e corporativismo e passar a se modernizar e tornar-se mais eficaz e eficiente.

Isso tudo pode decorrer do impacto que este tipo de negociações terá, e do desenho da ALCA, que pode vir a ser o patamar de uma nova maneira de se vir a organizar o Estado.

É o que passaremos a examinar, agora.

B - O impacto sobre o Estado

Com efeito, se o Estado brasileiro já enfrenta dificuldades na administração do país, poderá contar, com certeza com outras, maiores, se e quando as novas regulamentações, propostas pela ALCA entrarem em vigor.

Fazer funcionar eficientemente - aí teremos parceiros que cobrarão esses resultados - a complexa matriz regulamentar que surgirá será um desafio. Como em toda rede, será a malha mais fraca que se romperá. Qual será?

Não se pode, entretanto, afirmar que essas dificuldades representam um beco sem saída.

O novo ambiente não é tão inacessível e ingovernável como poderia parecer, nem se sabe exatamente como poderá ser.

O Estado não perderá completamente o poder de regulamentação, pois há áreas que escapam ao projeto da ALCA, assim como há a margem de ação que este poderia deixar (se o desenho corresponder ao do NAFTA) mas, sem sombra de dúvida, terá que proceder a modificações substanciais na sua estrutura administrativa para que possa manter a eficácia da atuação estatal.

O sistema tradicional hierárquico e em forma de pirâmide que faz parte do desenho tradicional do Estado-Nação ocidental não responde mais às necessidades desse novo desenho econômico, social e normativo que está sendo gerado pela intergovernamentabilidade e pela supranacionalidade. No caso do Estado brasileiro, menos ainda, por razões que são conhecidas de sobejo.

A coordenação vinda de cima para baixo precisaria ser substituída por uma forma mais decentralizada, com redes mais institucionalizadas de núcleos representativos de interesses que fizessem chegar até os níveis de decisão e coordenação mais amplos a informação necessária para as decisões do Estado .

Tanto da parte dos cidadãos como do Estado brasileiro há - de modo geral, embora com exceções - uma postura de auto-suficiência que os impede de ter consciência do tanto que já se delegou poderes a instâncias intergovernamentais e internacionais, o que tornou-os, de certo modo receptores e não produtores de regulamentos.

Os acordos intergovernamentais não somente colocam em jogo a responsabilidade do Estado para com os demais signatários como, também, face aos seus cidadãos. É aqui, neste último aspecto, que o impacto da ALCA pode-se fazer sentir de modo pungente. As pessoas não estão sendo informadas suficientemente do que vem sendo desenvolvido e como são elaborados os textos.

Trata-se de negociações que forçosamente se fazem num foro que não é amplo e de participação restrita, razão pela qual as opções que se oferecem não têm sido discutidas nem examinadas pelo homem comum, da rua. Sem dúvida os grupos de interesse têm acompanhado, e mesmo elaborado ou influenciado, a elaboração dos documentos de trabalho. Mas sua visão é monocórdica.

A informação seria o canal natural para a solução desse problema. O que a dificulta é o fato de que os efeitos e a percepção dos temas que se vai regulamentar variam de um para outro nível da Administração, a exemplo do que concerne à repartição dos custos.

O papel do Estado seria desempenhado, então, sobre um tripé: o da difusão da informação, da abertura e estímulo à participação de grupos de interesses diversos (procurando fazer com que aqueles que têm interesses mais conflitantes estivessem sempre presentes nas discussões preliminares) e na arbitragem final entre o interesse geral e o dos participantes dos grupos de trabalho.

É claro que o risco dessa participação diversificada é a cacofonia, a criação de um viveiro de lobbies, de onde poderia resultar o uso das regulamentações para a criação de situações monopolistas ou favorecidas, em detrimento do interesse geral da sociedade.

É preciso registrar que no estado atual das coisas, bem feito o balanço, temos uma perda concreta de controle democrático no quadro nacional, o qual pode se agravar com o advento da ALCA, pois como se viu da análise feita vem ocorrendo com a globalização do Direito uma perda do monopólio legislativo do Estado.

A avaliação dessa verdadeira peau de chagrin, será feita com base nos dados concretos da pauta que se discutirá. Essa pode nascer em breve ou se arrastar por alguns anos.

§1 - O modelo que se propõe

É importante examinar o relacionamento México-EUA no NAFTA - como modelo de laboratório do que poderia vir a acontecer na ALCA se ela sair, tal como é projetada em certos círculos dos Estados Unidos, e se o Brasil aderir a ela.

Lendo-se o texto da Declaração de Princípios, encontra-se a seguinte frase:

"Trabalharemos com base nos acordos sub-regionais e bilaterais existentes, com vistas a ampliar e aprofundar a integração econômica hemisférica e tornar esses acordos mais parecidos"

Ao procurar detalhar as regras para dar-lhe precisão, dificuldades similares às existentes quando da redação das normas do GATT aparecerão. É bem verdade que o número de países envolvidos é menor, e, talvez, sem grandes diferenças do ponto de vista ideológico. Outros fatores influenciarão a elaboração, como o peso relativo de alguns países da região, que, embora formalmente não altere os critérios de deliberação, na prática tem efeitos marcantes.

Além disso, como essas regras são aplicadas por algum setor da burocracia nacional dos países envolvidos, este poderá opor resistências pelo fato de que alguma modificação pode implicar em perda de poder.

O desenho do que poderá vir a ser dependerá em grande parcela da parte mais diligente e da sua capacidade de convencer as demais - porém não só - pois o Estado ou Estados que detiverem objetivamente o maior poder econômico, político e militar terão maior capacidade de influenciar. Terão ainda mais recursos para compor e propor um modelo.

Os norte-americanos concebem a ALCA como uma versão ampliada do NAFTA, e se propõem a desenhar a primeira de modo a que o resultado das negociações não seja muito distante daquele que laboriosamente negociaram na segunda, pois temem perder as vantagens adquiridas naquele acordo. Entretanto, quando se sentirem suficientemente fortes, procurarão modificar as regras aceitas no NAFTA para melhorar suas respectivas posições.

Os textos do GATT foram um ponto de partida para o NAFTA, e a referência às normas da OMC são constantes nos documentos das reuniões de Chefes de Estado e de Ministros da Iniciativa para as Américas. Este é outro elemento a indicar alguns parâmetros da configuração futura da ALCA.

Por isto, podemos supor que os princípios ali estabelecidos não serão mudados, entretanto, deverá haver esforços para que sejam ampliados e complementados por novas regras, em especial no que tange ao regime dos investimentos.

Haverá normas no tocante à liberalização e desenvolvimento dos mercados de capitais, à criação de uma infra-estrutura hemisférica, à comercialização e produção de energia, ao acesso ao mercado de telecomunicações e informação, ao turismo, a mecanismos de combate à corrupção, à erradicação do tráfico e produção de drogas ilícitas, à eliminação do terrorismo internacional, ao meio ambiente e biodiversidade, entre outros temas. A maior parte desses temas já foi objeto de acordos no seio do NAFTA e entre os países da área.

Os novos parceiros da ALCA terão que avaliar se as normas propostas e colocadas em discussão protegem adequadamente seus interesses, se lhes convém, e se, por isso, podem ou devem aceitá-las.

Entretanto, a sua análise no campo do direito será feita a partir da visão típica da civil law, enquanto seus parceiros do NAFTA estarão analisando as soluções sob o prisma da common Law.

Geram-se conseqüências importantes como se pode avaliar no caso dos mecanismos de solução de disputas do NAFTA, e que se repetirão, possivelmente, na ALCA. Vejamos porque.

§2 - Os mecanismos de solução de disputas

Os primeiros a sentirem o impacto das diferenças culturais serão certamente os árbitros e painelistas em eventuais mecanismos de solução de disputas.

Eles terão que confrontar-se com as diferenças apontadas, compreender os fundamentos dos dois sistemas jurídicos e saber como cada uma das sociedades que a eles se submetem, as norte-americanas e a brasileira, pensam a respeito da lei.

Segundo Woodfin Butte :

"o civilista acredita, quase como artigo de fé, que é possível que um único sistema, completo, coerente e lógico, governe todas as relações do homem (de fato, acredita que ele já existe pelo menos no sentido metafísico) e também, que a mente humana é capaz de pensar e desenvolvê-lo colocando-o no papel. Já para o advogado da common law, isto em geral não tem a menor importância. Ele está preocupado em decidir os casos com a ajuda do precedente, com ou sem a ajuda de regras estabelecidas em áreas particulares. Se a partir desse processo, os acadêmicos podem começar a ver pedaços de um sistema nascente, ele está interessado nisso como instrumento potencialmente útil; mas ele não vê a descoberta do desenvolvimento de um sistema lógico e completo como esse como essencial ou mesmo de alguma importância para ele na sua tarefa contínua de buscar justiça de uma maneira infinita e variada de casos individuais"

Num artigo instigante, um advogado dos Estados Unidos comenta como poderia ser um sistema de solução de disputas na ALCA partindo de uma reforma no NAFTA:

"A despeito da implantação do NAFTA e dos acordos do GATT em 1994, outras reformas são necessárias para criar um sistema de regras de comércio e práticas administrativas mais maleáveis e eficientes".

Ele propõe um sistema de solução de controvérsias eficiente, ou seja aquele que:

  1. "investiga as queixas rapidamente e chega a conclusões baseadas em princípios que são vinculantes e obrigatórias para as partes;
  2. previne riscos múltiplos sob forma de acionamento de várias demandas sobre práticas comerciais até que o resultado esperado pela indústria doméstica é alcançado;
  3. elimina vantagens táticas para ambas as partes de modo que as demandas não tenham início simplesmente para obter alívio ad interim, o que poderia determinar o resultado; e
  4. elimina a possibilidade de legislação comercial retaliatória, desenhada com o propósito de punir a parte mais bem sucedida e reverter os efeitos da decisão de um painel de solução de disputas."
Conclui que é inegável que:

"um mecanismo efetivo exige um certo grau de renúncia à soberania (em favor de) tribunais internacionais. Isto, com certeza é algo que Canadá e Estados Unidos têm sido relutantes em fazer e pode representar uma barreira intransponível à implementação de um sistema verdadeiramente eficiente.

O conceito de um sistema eficiente de solução de disputas será inevitavelmente definido de modos diferentes de acordo com as perspectivas nacionais, ainda que todos concordassem que o objetivo desse mecanismo é a criação de um mercado realmente eficiente. Assim, a definição canadense de um sistema de solução de disputas eficiente é de um que resista a uma nova onda de protecionismo estadunidense prevenindo a criação de novas barreira comerciais, seja através de legislação ou de outras armas do comércio dos Estados Unidos. (...) Uma visão dos Estados Unidos é diferente. Eles se vêem como um mercado aberto do qual parceiros comerciais tem-se aproveitado de modo injusto, engajando-se em práticas comerciais distorcidas que dão aos seus bens e serviços vantagens injustas. Estas teriam sido a causa dos déficit comerciais dos Estados Unidos nos anos 70"

Podemos pensar, desde logo, nas regras de direito existentes em cada um dos países por exemplo as que se aplicam aos subsídios e ao dumping.

Elas serão objeto, certamente, de mecanismos e instituições judiciais especiais que serão criados, por redatores que tentarão superar as dificuldades decorrentes da diversidade de pensar o direito. Podemos assistir a um diálogo de surdos, ou na melhor das hipótese a um panorama de incomprensões semânticas intermitentes ou esparsas, que afetará a concepção do texto.

O ponto de partida da reflexão sobre os subsídios e o dumping, sem sombra de dúvida, serão os textos do GATT/OMC, e o seus códigos antidumping e anti-subsídios. Entretanto, esses códigos têm as suas dificuldades de aplicação decorrentes, entre outras causas, do fato de que foram redigidos como acordos internacionais e não como normas jurídicas.

Outros problemas poderão ser encontrados no tocante à revisão judicial dos painéis ou dos atos das partes, que se poderia pretender semelhante ao do NAFTA, onde existe um processo específico de revisão das decisões dos painéis binacionais.

Entretanto, no Brasil isso poderia colocar-nos diante de problemas de ordem constitucional. O monopólio judicial e a visão tradicional de sua interpretação, associados à garantia do direito de revisão judicial de quaisquer agravos aos direitos individuais, podem impedir a adoção de mecanismos como os do NAFTA. Os juízes brasileiros, caso não se adote o modelo NAFTA, ver-se-ão diante da circunstância de decidir questões sobre deliberações dos painéis, com base em novos textos legislativos, sob um novo sistema com o qual não tiveram experiência prévia.

A arbitragem internacional é outra fórmula adotada no NAFTA para certas questões, que certamente será sugerida como necessária em quadros semelhantes, e talvez até mesmo em outros tipos de assunto, tendo em vista as críticas que se fazem internacionalmente ao Poder Judiciário na América Latina (e que não excluem o do Brasil).

O tema adquirirá importância, pois a arbitragem, muito embora historicamente seja conhecida no Brasil e muito discutida pela doutrina, é ainda, do ponto de vista da prática, uma inovação.

A resistência, que a ela se manifesta em setores do Poder Judiciário, e a resistência encarniçada que lhe opôs a OAB há algum tempo atrás, sem falar na ignorância generalizada a seu propósito, representam dificuldades operacionais. A existência de mecanismos similares aos do NAFTA mostrará desde logo a falta de painelistas e árbitros disponíveis, qualificados, e que não apresentem conflitos de interesse, além da onda de resistência que certamente alguns setores da academia oporão a esses meios de solução de disputas. A experiência do Mercosul mostra que este poderá vir a ser um problema.

Do mesmo modo, o recurso aos tribunais e juízes locais, apresenta o problema do conflito de interesses, dada a lealdade que o funcionário tem que ter face ao seu próprio Governo.

A Constituição brasileira estabelece o princípio de que a lei não subtrairá do Poder Judiciário nenhuma lesão a direito individual. Estabelece também alguns princípios relativos ao modo como o processo se desenrolará, o princípio do contencioso, e a ampla liberdade de defesa. Como os tribunais brasileiros apreciarão a existência de um sistema de decisão, por painéis e tribunais arbitrais, das disputas ocorridas entre empresas ou entre empresas e governos no quadro de um acordo de livre comércio nos moldes do NAFTA?

A Constituição mexicana - que contém princípios semelhantes aos brasileiros - suscitou dificuldades na implantação do tratado porque o sistema de painéis binacionais suplanta os tribunais locais, mas para que fosse lícito aplicar as disposições constitucionais mexicanas, as partes poderiam pedir ao Judiciário a revisão de uma decisão de qualquer painel.

No caso do Brasil, a interpretação predominante, de que o Poder Judiciário consiste unicamente dos órgãos apontados como tais na Constituição faria com que os mecanismos binacionais ou plurinacionais de solução de disputas envolvendo pessoas privadas não fossem considerados por parte do Poder Judiciário. Se isso ocorresse haveria a possibilidade de uma revisão.

Do outro lado, no México, existe o amparo; este corresponde ao nosso mandado de segurança, ainda que com efeitos mais limitados, porque a sua esfera de atuação abrange apenas o problema da constitucionalidade da lei e da legalidade das decisões judiciais.

Como trataria um juiz brasileiro, um mandado de segurança impetrado em relação a uma decisão de um painel que examinasse qualquer deliberação, por exemplo, da Comissão de Valores Mobiliários Brasileiros ou de uma agência antidumping do Brasil?

Tecnicamente, seria possível, por via de mandado de segurança, rever a decisão deste painel, o que iria contra o espirito do tratado (se fosse adotado o modelo da NAFTA).

Outro aspecto a ser discutido é o papel dos precedentes, comparado com o da jurisprudência em nosso sistema. Na common law temos a doutrina conhecida como stare decisis. Esta doutrina estatui que as decisões anteriores servirão como precedente obrigatório das decisões posteriores, visando manter a coerência do sistema, que na sua origem era predominantemente costumeiro. Assim, sempre que uma decisão fosse adotada por um painel ela teria o efeito, nos Estados Unidos e em parte do Canadá, de servir como case law e, portanto, como precedente obrigatório.

Entretanto, no caso desta decisão produzir efeitos no Brasil, esse, com certeza, não seria o mesmo. Haveria mais um caso na jurisprudência, mais um precedente que não é obrigatório, e contra cuja obrigatoriedade muitos se erguem.

No México, a dificuldade foi menor, ou quase inexistente: as decisões dos tribunais que se repetem por cinco vezes consecutivas e ininterruptas, são precedentes vinculantes para esses tribunais e para os juízes de hierarquia inferior, tendo o efeito que se pretenderia criar, aqui no Brasil, com a súmula vinculante. No Brasil, entretanto, esse ainda é "um sonho de uma noite de verão", e qualquer juíz pode decidir sem levar em conta as decisões dos tribunais superiores ou as suas próprias na mesma matéria, sendo fácil imaginar qual será a sua atitude quanto à deliberação de um painel, que para ele teria, culturalmente, menos valor que um acórdão ou sentença judicial. Como resolver este conflito?

Outro ponto em que as legislações conflitariam é quanto à natureza auto executória dos acordos internacionais. No direito norte-americano, a maior parte dos acordos internacionais não é auto-executória. Exige-se que o Congresso passe uma legislação contendo as suas regras para que esses tratados produzam efeito.

No Brasil, desde que o Congresso tenha aprovado o tratado e o Presidente o tenha promulgado, em princípio, ele poderá produzir efeito. Em alguns casos, o tratado exige a edição de uma norma, principalmente quando estabelece apenas princípios programáticos, noutros não. Isto nos colocará diante do problema da hierarquia das fontes quando do momento da aplicação. O tratado que colocou princípios gerais constituiria uma fonte direta ou seria apenas um princípio geral de direito? Como esse tratado se colocaria diante da lei?

Em matéria tributária temos a precedência do tratado sobre a lei em razão da disposição do Código Tributário Nacional, mas, em matéria de Direito Privado em geral, e para outras normas de Direito Público, não tributárias, isso não ocorre .

Um dos traços fundamentais do chamado Direito Romano Germânico ou da civil law é a importância das formalidades no processo. Em especial, nos países de tradição ibérica, como é o caso do Brasil, as formalidades do processo muitas vezes sobrepassam o direito substantivo.

No sistema do NAFTA, as regras de procedimento não são abordadas, como se vê no seu capítulo XVIIII. Este é muito resumido, e a regra nº 2 diz que os painéis devem adotar o procedimento a ser seguido no caso particular por analogia às regras do capítulo XVIIII, ou que ele pode referir-se, para saber como agir, aos procedimentos de um tribunal que teria jurisdição no país importador.

Assim, aplicando esta regra para situações de vácuo legal, haveria uma tendência forte dos nacionais no painel, assim como da autoridade investigadora, de preferir seus próprios procedimentos e procurar aplicá-los.

Um dos aspectos típicos desse comportamento, que certamente surgiria em algum momento, decorre da importância que se dá, no direito brasileiro, às procurações. A existência e regularidade das procurações e das formalidades a elas atinentes é uma preliminar tradicional entre os advogados brasileiros. Isto poderá ser um problema.

Outro problema, também do ponto de vista do processo, é o da compreensão do que é um conflito de interesses.

Este é um tema muito mais cultural que jurídico - embora tenha repercussões nesta órbita - em que as diferenças são marcadas. O que pode ou não ser feito pelos funcionários e magistrados durante e após a função varia de país para país. No NAFTA, foi preciso estabelecer um código de conduta que estabelece limites e regras aplicáveis à escolha e ao comportamento dos membros dos painéis. Para se ter uma amostra das diferenças basta comparar o Código de Ética da OAB com a Rules of Conduct da ABA, ou comparar o que se admite que um Presidente da República pode ou não fazer no Brasil e um Primeiro Ministro faz no Canadá.

Entretanto, além das regras aplicáveis à solução de disputas haverá outras, de caráter substantivo, que mudarão também o conteúdo do direito de cada país se a ALCA vier a se constituir e que, em razão dos vínculos econômicos que acarretarão e reforçarão a sua estabilidade, dificilmente poderão ser modificadas, representando uma redução na autonomia e na soberania do Estado brasileiro. Merecem ser estudadas, para avaliação do ganho e da perda que acarretarão, se ocorrerem, para o conjunto e para determinados setores.

§3 - Os setores que serão mais visados

A imagem tradicional que a cooperação intergovernamental evoca é de harmonização. Todavia, é enganadora, pois este fenômeno encobre outro.

O que ocorre, na realidade, é uma amplificação crescente e paralela da complexidade normativa, com a introdução de novas formas de decisão, multiplicando os atores envolvidos, e complicando a teia normativa.

Surge então um conjunto de instituições e procedimentos que estão fora do campo tradicional da administração, o que a situa diante de novas temáticas quanto à confiabilidade, coerência e coordenação de funções.

A influência da interdependência que se gesta com a globalização e regionalização das normas - do que a ALCA é um exemplo com maior impacto - ocorre não só no âmbito nacional, como no dos estados e municípios, afetando também as regiões e microregiões econômicas, independentemente da sua sujeição a uma ou outra esfera de poder.

Trata-se, não mais de criação de uma pirâmide legislativa, mas de uma matriz ou teia de aranha, onde as obrigações legais se dispersam e cruzam.

O volume e o caráter detalhado das regulamentações cresce, e a simplicidade legislativa é substituída pela prolixidade e complexidade. Isso decorre do processo de elaboração das normas intergovernamentais, e que, no caso da ALCA, atinge uma nuance diferente.

Nascem, desse modo, redes e parcerias que informalmente assumem papel legislativo, ora apresentando-se como ONGs, ora como associações de classe ou de setores industriais.

Por outro lado, o Poder Judiciário, já assediado pela chamada "crise da Justiça" (que na realidade é uma queixa generalizada contra o que se percebe como lentidão nas decisões) se verá ainda mais pressionado.

Novas matérias e uma mentalidade demandista de alguns de nossos futuros parceiros colocarão problemas de toda natureza para as empresas e para o Judiciário.

Umas terão que acudir a inúmeras demandas, inclusive no exterior, em razão de critérios diferentes no estabelecimento de competência judicial, outro terá que dar resposta rápida a situações novas e preparar seus integrantes da maneira mais eficaz para responder às novas situações, sob pena das pressões sociais levarem ao esvaziamento de sua competência.

As exigências terão o efeito benéfico de pressionar o aperfeiçoamento e modernização das nossas instituições.

A criação do novo perfil institucional incluirá operadores que ainda não desempenham papel preponderante na formação do direito em nosso sistema, e por isso não são objeto de regulamentação formal, mas que desempenharão um papel importante na criação e depois na gestão da ALCA.

Parte II - Efeitos sobre a soberania

A criação do Direito Internacional representa um paradoxo, na medida em que, sendo fruto da soberania, esta se vai esgotando à medida em que o gera. Por essa razão, o conceito de soberania não é estático, mas sim dinâmico e evolutivo.

Poderíamos comparar sua trajetória à da autonomia da vontade face ao fenômeno contratual. De um lado, os sujeitos de direito vão restringindo suas opções, fixando-se numa que no momento lhes parece mais favorável, e de outro, normas de ordem pública aparecem que, conjugadas com as obrigações já assumidas, limitam a liberdade de contratar.

Contudo, no Direito Internacional, a proporção da mescla entre coação e adesão é oposta à existente no Direito Interno.

Chamar um Estado de sujeito é, no Direito Internacional, uma impropriedade técnica quando se pretende dizer que ele está submetido a esse Direito. Na realidade, os Estados são destinatários e autores das regras. Isso ocorre de maneira direta pelos tratados e pelos costumes, e indireta através das fontes derivadas destas.

Tal ordem jurídica, de natureza voluntarista não nasce isolada no espaço. Ela se articula com outras, de menor extensão territorial - como as ordens jurídicas regionais, nascidas de movimentos de integração - e portanto se pode dizer, sob certo ângulo, que o Direito Internacional por vezes se despoja do seu caráter universal.

Acrescente-se a esse fato a existência de forças que atuam internacionalmente (ou de modo transnacional) como ocorre com as macroempresas ou com certas ONGs, e mediante sua atuação colocam regras e são capazes de aplicar sanções (em certos casos com alto grau de eficácia), e teremos outra ordem jurídica (porque completa e capaz de sancionar) atuando. Dessa forma, há um pluralismo de ordens jurídicas que tornou obsoleta a polêmica dualismo x monismo.

Estamos num universo jurídico em que a coalescência das diferentes ordens jurídicas poderia levar a uma só, ou conduzir-nos por décadas, quiçá séculos (como aponta a história) de conflitos, compostos por várias formas, reproduzindo a situação existente na Idade Média.

As organizações regionais têm, sem sombra de dúvida, origem no direito internacional, através de um tratado, mas vão se desenvolver criando instituições próprias.

Dentre elas, adquirem singular relevo, pelos seus efeitos e pela possibilidade que têm de gerar um direito autônomo dos sistemas de solução de controvérsias.

São mecanismos destinados a fazer cumprir determinadas regras da organização (ou advindas de tratado) cujas atribuições e competência nascem de um acordo. Passam a exercê-las, na maioria dos casos, autonomamente, revestidas quanto às suas decisões, e o recurso aos mesmos, de um caráter obrigatório reforçado pela sua permanência.

Com efeito, uma das características do Direito é a sua permanência (ou estabilidade). Ela é mais importante no Direito Internacional por ser uma de suas fontes, eis que ela nasce da repetição dos atos, formadora dos costumes, podendo-se somar, também as decisões da jurisprudência, que se repetem ou tendem a se repetir, a essas fontes.

A existência de várias ordens jurídicas, concomitantes, cada qual com sua esfera de atuação, nos conduz, inevitavelmente, ao problema da delimitação de seu âmbito, seus limites, e da solução dos conflitos que inevitavelmente ocorrem entre elas. Esta ocorre pela via da coordenação ou da hierarquia das normas.

Há uma regra de sociologia do direito, segundo a qual uma ordem jurídica é tanto mais estrita e detalhada quanto menor seu âmbito. Um regulamento de condomínio tem mais regras que a lei sobre condomínios, e esta deriva de uma ou duas normas constitucionais. Assim também, nas ordens jurídicas que atuam no plano internacional temos mais detalhes nas nacionais, e nestas que nas regionais, e mais ainda nestas que na internacional.

Há também um efeito em cascata, que faz com que a norma de caráter mais amplo tenha, por imposição lógica em alguns casos, hierárquica em outros, repercussão sobre o conteúdo das de menor amplitude sobrepondo-se. Com isto, muitos dos conflitos são evitados. Outros surgem quando ocorrem antinomias entre essas regras, ou quando, oriundas de fontes de mesmo nível hierárquico focalizam a mesma conduta. Existem, então, conflitos de leis sobre vigência, resolvidos por um sistema hierárquico de normas, e outros, espaciais, resolvidos por mecanismos de coordenação.

Os acordos de Bretton Woods, os do GATT/OMC, os que criaram a ALADI, os do Mercosul e a ordem interna dos países que os firmaram interagem de modos diferentes.

Regras de Direito Internacional já dizem ao Estado brasileiro o que este poderá fazer em matéria de integração, antes que firmasse novos acordos regionais. Assim, o Tratado de Assunção, ao criar o Mercosul, teve que obedecer às regras do GATT (e depois da OMC) e da ALADI, ordens jurídicas mais amplas que o precederam, e às quais o país se sujeitara.

Com base nesses fatos, podemos desde logo dizer que o primeiro impacto da assinatura do acordo da ALCA será, sem sombra de dúvida, uma redução ainda maior na liberdade de escolhas de que ainda dispõe o Estado brasileiro.

Caberá analisar - o que fica para outra oportunidade, já que só se poderá fazê-lo diante do texto final resultante das negociações - como interagirão as normas do Mercosul e da ALADI, que pretendem reger praticamente as mesmas situações diante da ALCA.

Que alcance terá a restrição à soberania? Como ocorrerá? Como poderemos classificar seus efeitos?

A - Alcance das restrições

Numa reunião de Chefes de Estado realizada em Miami em Dezembro de 1994 - a que se denominou Cúpula das Américas, - os representantes de 34 países concordaram em dar início a negociações para construir uma zona de livre comércio que iria do Estreito de Behring ao do de Magalhães, a ter início em 2005.

Foram firmados alguns documentos, dentre os quais uma Declaração de Princípios e um Plano de Ação.

A proposta era de "buscar a prosperidade através de mercados abertos, integração hemisférica, e desenvolvimento sustentável". Para alcançar esses objetivos, preservar a democracia, garantir a segurança hemisférica, propuseram-se os signatários a "trabalhar através dos órgãos apropriados da OEA para fortalecer as instituições democráticas e promover e defender o predomínio da democracia representativa de acordo com a Carta da OEA", a "facilitar a completa participação dos nossos povos nas atividades políticas, econômicas e sociais de acordo com as legislações nacionais", assim como - e é o fulcro do discurso - "resolvemos começar a construir imediatamente a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) na qual barreiras ao comércio e ao investimento serão progressivamente eliminados. Resolvemos mais concluir as negociações até 2005, e acordamos em que progressos concretos para chegar a este objetivo devem ser alcançados até o fim deste século".

Há muitas outras afirmações, na sua maior parte retóricas ou fruto de exigências feitas pelos Chefes de Estado dos países menos desenvolvidos para consumo de seus públicos internos.

Basta ler o Plano de Ação e o Apêndice, para verificar a quem couberam as diferentes tarefas, e depois comparar com os resultados já alcançados pelos grupos de trabalho para ver quais os temas que realmente interessavam aos organizadores da reunião, e os de efeito retórico.

De qualquer modo, aconteceram mais reuniões, de Ministros e de Chefes de Estado, e a negociação prossegue.

No pronunciamento oficial que antecedeu a Reunião de Belo Horizonte, dizia o Ministro Luiz Felipe Lampreia:

"a ALCA constituirá o maior espaço comercialmente integrado do mundo"(...) e(...) "consolidará, também, a inserção competitiva das economias do continente nos fluxos internacionais de comércio e investimento, alterando, definitivamente, a natureza e o funcionamento dos sistemas econômicos de nossos países".

Ora, essa explicação nos dá idéia da amplitude da ALCA, e ao mesmo tempo do alcance das restrições que acarretará ao poder decisório e à capacidade de escolha do país - pois não se altera o funcionamento de sistemas econômicos sem tocar no jurídico - alcance esse amplíssimo.

Ao reunirem-se em Denver, os Ministros dos países das Américas acordaram em criar sete grupos de trabalho para focalizar as matérias que formavam o cerne da ALCA: acesso a mercados, procedimentos aduaneiros e regras de origem, investimentos, normas técnicas que constituem barreiras ao comércio, medidas sanitárias e fitosanitárias, subsídios, antidumping e medidas compensatórias, e pequenas economias.

Na reunião de Cartagena, criaram-se novos grupos, cuidando de políticas que afetam a competição, compras governamentais, serviços e propriedade intelectual.

Muitas dessas matérias já foram objeto de acordos internacionais, da OMC a tratados bilaterais, o que faz supor que a seu respeito se introduzirão preceitos especiais, aprofundando e especificando a regulamentação. Esta se fará, sem dúvida, nos limites dos acordos já existentes, de maior amplitude, e terá, por isso, que ocupar espaços até agora ainda não regulamentados internacionalmente.

Compras governamentais é um exemplo de regulamentação nova (para o Brasil), o mesmo se dirá dos serviços. Já a propriedade intelectual representou durante anos um elemento de conflito no relacionamento com os EUA que julgavam insuficiente a nossa regulamentação.

Depois, firmado o TRIPS, o contencioso praticamente se extinguiu, persistindo no tocante a certas regras preconizadas por setores específicos, como o farmacêutico, que não foram atendidos plenamente pela OMC.

A matéria ligada ao comércio de mercadorias - procedimentos aduaneiros e regras de origem, investimentos, normas técnicas que constituem barreiras ao comércio, medidas sanitárias e fitosanitárias, subsídios, antidumping e medidas compensatórias, - já foi regulamentada de um jeito ou de outro no Mercosul e na OMC. Isso nos faz imaginar que o objeto das negociações é aprofundar estas normas, especificando-as.

No geral, o que vemos é a retomada no plano regional das teses dos EUA que não prevaleceram na OMC, o que representa um esforço diplomático correto por parte desse país, mas que cabe discutir de nossa parte, caso a caso, com serenidade, tendo em vista o interesse do Brasil.

Por isso, a avaliação que se fez ao tempo da assinatura dos acordos da OMC quanto aos limites à soberania nacional poderia ser usada neste caso, como ponto de partida. Entretanto, a decisão relativa à ALCA está presa a circunstâncias geográficas, econômicas e temporais diversas, o que podee deve justificar uma nova avaliação.

Com efeito, haveria aspectos que poderiam se revelar positivos ao criar regras onde impera a ausência destas, e ao gerar mecanismos de solução de disputas que permitam escapar ao unilateralismo e à imposição dos interesses de economias mais fortes (ainda que, neste capítulo, a relatividade da força e a dinâmica do processo são importantes e exigem exame mais detalhado).

O importante é registrar que o processo pelo qual essas restrições à soberania se operarão é tão importante como seu alcance, pois faz parte do modo como elas se inserirão, de modo definitivo, no sistema.

B - Processo de introdução das regulamentações

A elaboração da ALCA está sendo precedida por reuniões preparatórias, realizadas segundo o procedimento consagrado nas conferências diplomáticas multilaterais, com a novidade de que os grupos de trabalho que estão preparando os textos que serão discutidos pelos delegados, na sua maior parte não são compostos por funcionários, mas sim pelos setores da sociedade a que os franceses se referem como les millieux d’affaires, e por organismos internacionais como a OEA e o BID.

A tarefa que esses grupos de trabalho assumiram foi a de relacionar e catalogar, sistematizando-as, todas as normas aplicáveis nas áreas de seus respectivos interesses. Essa catalogação tem por objetivo definir quais deveriam ser alteradas ou poderiam ser mantidas, sob o prisma do interesse de quem as analisa.

Como essas alterações, ou a manutenção do status quo, se cristalizariam na firma do tratado, automaticamente, cada um dos países, ao firmá-lo, estaria renunciando à soberania no tocante ao poder normativo quanto a esses itens.

No caso do Brasil, a competência legislativa, na maioria dessas matérias, é privativa da União, e, em alguns aspectos - como compras governamentais - concorrente dos Estados.

Poderemos então ter à frente algum conflito de competências que será preciso analisar bem.

A conseqüência, óbvia, é que, se de um lado ganha-se com a certeza de que a legislação das contrapartes manterá as regras estabelecidas de comum acordo, de outro, não poderemos mais mudar nossas leis nesse âmbito, a não ser nos limites que o tratado permita.

Os grupos de trabalho que foram criados para preparar os tratados da ALCA representam um esboço de institucionalização de uma prática que vem se desenvolvendo, cada vez mais, nos últimos decênios.

Trata-se da atuação crescente de atores sociais que representam interesses setoriais ou regionais e que tem a oportunidade, em razão da segmentação que ocorre na elaboração das normas decorrentes de tratados, de procurar determinar regras que lhes sejam favoráveis. A tentativa e o desejo em si mesmos não são negativos nem reprováveis - fazem mesmo parte do jogo democrático - o que é preocupante é que, pela pouca transparência, e pela complexidade das questões, os efeitos das regulamentações nem sempre podem ser percebidos pelo público e, às vezes, passam desapercebidos sob os olhos do Estado, que não pode, então arbitrar entre os diferentes interesses presentes.

C - Qualificação dos efeitos da normativa intergovernamental do ALCA

Uma avaliação da qualidade dos efeitos da normativa da ALCA seria precipitada a este passo. Sabemos apenas os objetivos que se visa, mas ignoramos o conteúdo.

Dessa forma teremos que pensar sobre os efeitos que a criação de novas normas terá nas instituições e no seu funcionamento.

Aí o problema se desdobra em dois aspectos: o da capacidade das instituições existentes responderem às novas exigências postas em prática pelo sistema, e o da necessidade delas se adaptarem a um desenho imposto pelas novas normas, que inclusive podem gerar a necessidade de novos órgãos do Estado, ou a reforma dos existentes.

Sem sombra de dúvida, a criação de um novo espaço econômico e comercial implica em um novo Direito da Concorrência. As instituições existentes não serão capazes de atender com a velocidade e o ímpeto necessário ao quadro que se desenhará com a ALCA. Isso porque teremos que conviver com um novo sistema jurídico, totalmente diferente quanto aos seus procedimentos, elaboração e história. A União Européia teve que conviver com o universo da common law em circunstâncias diferentes, mas que se revelaram não menos traumáticas.

O papel do formalismo jurídico é outro, deslocando-se do substantivo para o adjetivo, e o raciocínio é inverso.

A circunstância econômica e os fatos predominam na interpretação sobre a qualificação jurídica, ao contrário do que ocorre entre nós, ou em grau muito diferente.

Em matéria de Direito da Concorrência (Internacional), já temos dificuldades na organização de uma sistemática adequada a responder às situações criadas no seio da OMC e do Mercosul, e estas aumentarão quando vierem a vigir as regras da ALCA.

Se o modelo do NAFTA for adotado (e tudo indica que o será, ainda que com variantes) haverá um organismo de solução de disputas em matéria de Direito da Concorrência tal como ocorre no capítulo 19 daquele tratado. Cuida-se do dumping e das medidas compensatórias contra os subsídios. Ambas medidas de defesa comercial têm sido utilizadas abundantemente contra produtos brasileiros, tanto pelos EUA como pela União Européia. Ao revés, nossa capacidade de agir na matéria tem sido muito limitada.

É, então, um dos postos em que a reforma institucional será necessária, e poderá ter efeitos positivos, ao permitir-nos evitar medidas unilaterais ou ter um foro em que estas possam ser questionadas. Cabe lembrar, entretanto, que essa vantagem depende da obediência que os EUA tributem à letra dos acordos que celebrar. Por isso conviria examinar a experiência, nesse campo, do Canadá e do México.

No tocante aos investimentos temos outro sistema de solução de controvérsias.

Nos dois casos haverá uma instância de revisão intergovernamental que se sobreporá ao Poder Judiciário, e cujas respectivas decisões potencialmente podem conflitar.

Entretanto, tudo parece indicar que as regras da ALCA, obedecendo ao modelo do NAFTA, não cuidarão de situações específicas, mas deixarão estas para serem administradas pelos Estados Partes.

As normas da ALCA, então, estabeleceriam parâmetros ou princípios gerais, a serem observados tanto na prática do dia a dia do comércio como na edição de novas normas.

Ao contrário do Mercosul, que colocou para si, como objetivo, a harmonização do direito, no modelo da NAFTA, e provavelmente no da ALCA, essa não será visada, mas terá seu lugar ocupado pela exigência de que os comportamentos dos Estados Partes respeitem a regra do tratamento nacional e evitem a imposição de restrições comerciais novas.

Entretanto, a regra do tratamento nacional é vista numa perspectiva diferente da que foi formulada pela Doutrina Drago ou pela Cláusula Calvo. Alí, o que se deseja é a aplicação do tratamento nacional em relação às vantagens, e não aos ônus - onde imperariam, no mínimo, os standards do Direito Internacional, ou as regras do país de origem do capital.

Sem sombra de dúvida, não se aplicaria a regra do tratamento nacional no que concerne aos efeitos extra-territoriais da legislação, campo em que as empresas estrangeiras propugnarão aplicar a legislação do país de controle, e não a do hospedeiro.

Alguns temas, entretanto forçosamente serão regulados pelo tratado: regras de origem é um deles. Aí reside um perigo, pois a tentativa de criar chasses gardées para determinadas indústrias aparecerá nesse capítulo.

É com base nessas regras que nos EUA colocam obstáculos à utilização de componentes feitos no Japão ou a produtos originários do México. Então, pela diferença entre os critérios usados para definir a origem da mercadoria nos casos do NAFTA e do Mercosul, ter-se-ia que harmonizar os dois tratados, além de aprender a manejar uma nova fórmula de identificação da origem dos produtos, que será possivelmente variada e setorial e não genérica e abrangente como ocorre hoje.

Outra modificação que se pretende introduzir é a inspeção prévia nas importações - o que implicará em intromissão de funcionários de outros países no nosso território, obedecendo o modelo do NAFTA. Já se envolve, de certo modo, o aspecto institucional.

Conclusão

Estas notas, que se alongaram além do que o seu autor desejou, são reflexões sobre um esboço de projeto. Este ainda está muito indefinido para que, com precisão, se possa julgar se será benéfico, como e quanto. Isso só será possível quando houver maior definição. O paradoxal é que sendo uma elaboração normativa que nasce em meio a um processo de negociação, e não tendo tido o Brasil a oportunidade de elaborar a pauta desta, a inércia do processo pode levar a dois efeitos: um o de comprometimento, outro o de acomodação prévia.

No primeiro caso, ainda que as críticas surjam aqui e acolá, para os negociadores, na teia de compromissos que é a negociação de um grande acordo plurilateral, elas terão poucos efeitos. Sua reação será a de imaginar que os eventuais críticos não tem todos os dados do problema ou que é impossível mudar este ponto sem ter que renegociar o conjunto (e que os prazos não o permitiriam).

Na segunda hipótese, os setores da sociedade que se veriam afetados poderiam ir se prevenindo e preparando, num feed back ao fato que vislumbram no horizonte, como alguém que cobre a cabeça e ergue a lapela diante da chuva que se avizinha. Essa adaptação se faria sem reflexo crítico, como se o fato fosse inevitável como a chuva.

Assim é preciso que os textos sucessivos dos projetos que vêm sendo feitos sejam discutidos com cada setor brasileiro envolvido, passo a passo, e que sindicatos, organismos empresariais, o meio acadêmico, enfim todos os que tenham interesses e capacidade de reflexão possam apoiar e informar os negociadores para que estes tenham a oportunidade de colocar seu talento a serviço do país nas melhores condições, ou que a Nação, sentindo que as perspectivas que lhe são oferecidas não coincidem com seu projeto, as recuse.

                                        Fonte:<http://www.mre.gov.br/ipri/salca.html>