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A NÃO- EXTRADIÇÃO DEVIDO A NATUREZA POLÍTICA DO DELITO
Ana Paula Scóz Silvestre

SUMÁRIO

1) Introdução, 2) Da extradição, 2.1) Generalidades, 2.2) Asilo político, 3) Quando o fato delituoso constitui crime político, 3.1) Antecedentes históricos, 3.2) Motivos de exclusão do rol dos crimes que ensejam a extradição, 3.3) Qualificação de crime político, 3.4) Bem jurídico tutelado, 3.5) Crimes conexos, crimes complexos, 4) Conclusão, 5) Bibliografia.

1) INTRODUÇÃO

Nosso contexto mundial mostra uma interdependência crescente entre os países. Os avanços tecnológicos proporcionaram um maior contato entre os povos; além do aumento do comércio internacional, também intensificaram-se as relações sociais, políticas, culturais. Não se verifica uma sobrevivência isolada; hoje, o que acontece na órbita de um Estado repercute em outro. Entretanto, para que esta coexistência se desenvolva de forma harmônica, é necessário a colaboração dos membros da comunidade internacional. Neste intuito que se celebram tratados e acordos de assistência mútua. Os Estados, além das prerrogativas inerentes à personalidade jurídica internacional, possuem também deveres recíprocos. Talvez um dos mais importantes se situe na colaboração para uma administração eficaz da justiça na repressão à criminalidade. Um instituto de direito processual penal internacional, muito utilizado neste aspecto, que envolve dois ou mais países, é a extradição.

A extradição é um dever jurídico, de cooperação judicial internacional, e não afeta a soberania de um Estado: primeiro porque é um dever recíproco, segundo porque permite a atuação da jurisdição penal do Estado que possui mais motivo para exercê-la. Apesar de ser um dever de colaboração penal internacional, sua execução nem sempre pode ser exigida. Ademais, um país não pode, arbitrariamente, entregar ou deixar de entregar os criminosos que, dentro de suas fronteiras, se refugiam.

Vários tratados e leis excluem da extradição certas categorias de delitos. A mais comumente excluída é a categoria dos crimes políticos. Esta será a questão abordada no paper: a não-extradição quando verificada a ocorrência de crime político.

Procurar-se-á esclarecer a definição de crime político, enfoque principal, com o auxílio de doutrinas, artigos e jurisprudências, visto que é um conceito vago e nenhuma lei, tratado ou convenção cuidou de tal assunto, deixando a tarefa ao Estado requerido. Também será abordado os motivos que excluem o crime político da extradição, bem como a questão do asilo político. E, por fim, os critério para a verificar se os crimes complexos e conexos se revestem ou não de natureza política.

2) DA EXTRADIÇÃO

"Extradição é o ato pelo qual um Estado faz a entrega, para fins de ser processado ou para a execução de uma pena, de um indivíduo acusado ou reconhecido culpável de uma infração cometida fora de seu território, a outro Estado que o reclama e que é competente para julgá-lo e puní-lo" (CAHALI, 1993, p.295).

A extradição não constitui pena, é um meio processual internacional de possibilitar a sua aplicação; "...não é menos evidente que o processo de extradição dispõe de clara função instrumental, pois objetiva viabilizar, ou a execução de pena já imposta em processo penal condenatório, ou a submissão do extraditando a processo de índole persecutória perante o órgão competente do Estado requerente".

2.1) GENERALIDADES

O tratado internacional é a fonte mais comum e abundante do instituto da extradição; ele fixa as condições dentro das quais as partes contratantes se comprometem, a priori, à recíproca extradição. Mas, na falta ou deficiência de um tratado, a declaração de reciprocidade é também fonte conhecida do "direito de extradição". Há alguns princípios observados pelo instituto da extradição e presente nos tratados, que visam assegurar uma proteção maior ao extraditado e garantir que a utilização da extradição, como meio de repressão da criminalidade, não se desvirtue de sua finalidade:

a) Princípio da especialidade: o Estado requerente não poderá julgar o extraditado por motivo diferente daquele que fundamentou o pedido de extradição. Conhecido também como efeito limitativo da extradição (ACCIOLY, 1998, p. 370).

b) Princípio da identidade: não será concedida a extradição quando o fato que motivar o pedido não for considerado crime no país de refúgio; ainda sob este princípio, é levado em conta que o extraditando não poderá ser submetido a uma pena que não exista no Estado requerido (CAHALI, 1983, p. 304). No Brasil, por exemplo, quando o pedido se referir a crime punido com pena de morte, somente será concedida a extradição se o Estado requerente comprometer-se a transformar a pena de morte em pena privativa de liberdade; e quando a pena for de prisão perpétua, deve ser comutada para a de trinta anos.

c) Princípio "non bis in idem": este princípio repete regra consagrada pelo Código de Direito Internacional Privado, que dispõe a impossibilidade de ser concedida a extradição "se a pessoa reclamada já tiver sido julgada e posta em liberdade ou cumprido a pena ou estiver submetida a processo no território do Estado requerido, pelo mesmo delito que motiva o pedido" .

Outra causa proibitiva da extradição são os casos em que a punibilidade do crime está extinta pela prescrição, seja segundo a lei do Estado requerente, seja segundo a lei do Estado requerido .

Toda pessoa é passível de ser extraditada; entretanto, esta regra não é absoluta. A nacionalidade e as condições pessoais podem representar, por vezes, obstáculo à extradição. É de princípio, em matéria de extradição, que nenhum país libere seus nacionais. Isto não significa que a não-extradição do nacional conduza à sua impunidade, uma vez que ele deverá ser julgado pelo país de origem.

Muito embora o instituto da extradição tivesse surgido, historicamente, tendo como causa o delito político, existe atualmente, de modo geral, um consenso entre os países, no sentido de não conceder a extradição quando o extraditando esteja sendo processado ou tenha sido condenado pela prática de delito político. A dificuldade que reside nesta questão é o fato de que o conceito de crime político não é determinado em nenhum tratado ou lei interna. Este ponto será abordado de forma detalhada em um momento mais oportuno.

Algumas legislações e vários tratados internacionais estipulam que, além do crime político, não poderá ser concedida a extradição por fato que, no país requerente, será julgado por tribunal de exceção.

Quanto ao pedido de extradição, pode acontecer que a mesma pessoa esteja sendo requerida por mais de um Estado, pelo mesmo fato ou em razão de atos diversos. No plano de direito comparado, tratando-se de pedidos de extradição relativos ao mesmo fato, alguns tratados a concedem ao Estado de origem do extraditando; outros, ao Estado em cujo território foi cometida a infração; e, ainda existem opiniões favoráveis a que o assunto fique ao arbítrio exclusivo do Estado requerido.

Tratando-se de crimes diversos, terão preferência sucessivamente: 1º. o Estado requerente em cujo território haja sido cometido o crime mais grave; 2º. o que em primeiro lugar houver pedido a entrega do extraditando, se a gravidade dos crimes for idêntica; e 3º. o Estado de origem ou, na sua falta, o do domicílio do extraditando, se os pedidos forem simultâneos.

As legislações, de modo uniforme, estabelecem as vias diplomáticas para os pedidos de extradição. Por se tratar de um ato de soberania, só pode solicitá-la ou concedê-la a autoridade que tenha o exercício da soberania em face de países estrangeiro, portanto, o Poder Executivo. Quanto ao exame do pedido em relação a sua legalidade, procedência ou regularidade, em alguns países ele é puramente administrativo; noutros, é judiciário e ainda noutros é misto (ACCIOLY, 1998, p. 368). Entretanto, a decisão de concessão ou não da extradição em todos os casos é irrecorrível. Normalmente, os tratados determinam quais devem ser os documentos que devem acompanhar o pedido.

Regra geral, a extradição é concedida em razão de infrações cometidas fora do Estado requerido e dentro da jurisdição territorial do Estado requerente; trata-se de aplicação do princípio da territorialidade. Entretanto, em casos excepcionais, o Estado requerido poderá conceder a extradição por infração cometida dentro do seu próprio território; isso acontece quando a infração afeta diretamente o Estado requerente, apesar de não ocorrer em seu território, como por exemplo, a falsificação de sua moeda feita em outro país. Não se exige que a infração em que se funda o pedido de extradição tenha sido praticada no território do Estado requerente ou requerido, bastando que sejam aplicáveis ao extraditando as leis penais deste Estado.

2.2) ASILO POLÍTICO

O asilo político, quer em sua prática consuetudinária, quer em sua disciplina convencional, é de natureza tutelar, pois tem como objetivo oferecer proteção efetiva à pessoa refugiada, preservando-a do arbítrio, da perseguição e da violência de natureza política. "Poderá ser concedido tanto para quem comete crime político, quanto para quem é perseguido político" (CAHALI, 1983, p. 151).

Freqüentemente questiona-se a possibilidade da extradição quando o Estado requerente faz o pedido de extradição de um asilado político. Nestas situações devem ser analisadas as peculiaridades de cada caso. Em princípio, nada impede tal concessão, desde que observados os requisitos necessário que constam nos tratados e nas leis internas do Estado requerido.

A Convenção sobre Asilo Territorial (Caracas, 1994), reafirma uma restrição à extradição de asilado político: "Art.IV - A extradição não se aplica, quando se de pessoas que, segundo a classificação do Estado suplicado, sejam perseguidas por delitos políticos ou delitos comuns com fins políticos, nem quando a extradição for solicitada obedecendo a motivos predominantemente políticos" (ALBUQUERQUE MELLO, 1997. p. 85).

Entretanto, o pedido extradicional poderá ter suporte em outros fatos, estranhos àqueles que motivaram o deferimento do asilo. Demais disso, quem concede o asilo é o Poder Executivo, e quem analisa o pedido de extradição, na maioria dos países, é o Poder Judiciário, sendo que este não está vinculado ao juízo formulado pelo Poder Executivo na concessão administrativa daquele benefício regido pelo Direito das Gentes. Daí decorre que a condição jurídica de asilado político - trate-se de asilo diplomático ou territorial, ambos objeto das Convenções de Caracas - não suprime por si só, a possibilidade de um Estado conceder, presentes e satisfeitas as condições legais que a autorizam, a extradição que lhe haja sido requerida.

"A concessão de asilo não acarreta compromisso irrevogável. (...) 1º. podendo ser dado não somente a quem comete crime político, mas também aos perseguidos políticos, não envolve necessariamente um pronunciamento do agente diplomático sobre a natureza política do delito porventura atribuída ao asilado; 2º. a lei reserva ao STF dizer sobre a última palavra sobre a qualificação do delito para efeito de caracterizar a excludente da extradição"(Extr. 524, 31.10.90 - RTJ 134/56. p.62.)

Pode-se afirmar desde logo que a condição de asilado político do estrangeiro não constitui óbice à sua extradição: a) quando esta é solicitada por país diverso daquele do qual se afastou por motivo político; b) ou pelo mesmo país do qual se afastou, desde que por crime comum; c) quando a condição de crime político, pressuposta na concessão administrativa do asilo, não é reafirmada pelo Poder Judiciário ao ser apreciado o pedido.

3) QUANDO O FATO DELITUOSO CONSTITUI CRIME POLÍTICO

Em geral, todo o indivíduo que comete um crime é passível de extradição, a fim de ser entregue à justiça do Estado competente para julgá-lo e puní-lo (ACCIOLY, 1998, p. 358). Entretanto, a extradição passiva de estrangeiros não se reveste de caráter absoluto, não pode ser concedida de modo indiscriminado. Dependendo da natureza do delito, por exemplo, é excluída a possibilidade de extradição do acusado. Dentre os vários pressupostos legitimadores do deferimento do pedido de extradição, há um, como que universalmente aceito, de caráter negativo: quando o crime for de natureza política.

Em relação ao sistema jurídico brasileiro, a inextraditabilidade de estrangeiros por delitos políticos reflete, em favor dos súditos estrangeiros, um direito público subjetivo, oponível ao próprio Estado. Pois, temos no preceito normativo uma insuperável limitação ao poder de extraditar do Estado brasileiro.

3.1) ANTECEDENTES HISTÓRICOS

O Direito Romano conheceu a diferença entre os atos lesivos em face dos bens atingidos. Neste contexto separava com nitidez as ações em duas categorias distintas: o delito público (crimina) e o delito privado (delictum vel maleficium).

O delito privado sempre consistiu numa lesão ao indivíduo, e todos os seus efeitos vão se exaurir na órbita privada - obrigação; enquanto o delito público significava um lesão de um interesse de caráter geral, à ordem social. A repressão deste último ilícito partia da sociedade como organização social e inferia uma pena corporal ou ainda pecuniária. Por ferir a civitas era de maior gravidade que o delito privado.

Os delitos públicos registrados pelo Direito Público Romano eram condutas que tipificavam traição a Roma, como o homicídio em que a vítima era cidadão livre, o incêndio, a violência pública armada ou sem armas (que poderiam configurar, talvez, o nosso crime político), o falso testemunho,.... (CRETELLA JÚNIOR, 1999, p. 10).

No Direito Medievo, com a formação das nacionalidades, pode-se perceber sinais que começam a demarcar as características do crime político. Mas foi a partir das primeiras distinções entre Nação e Estado, com o jusnaturalismo, que os delitos contra a sociedade progrediram em sua conceituação. Em relação ao crime político, entretanto, ainda não encontramos linhas precisas de forma a conceituá-lo satisfatoriamente. Sabe-se que no Direito Romano era considerado um delito público, que ofendia a Roma . A partir daqui, tem-se um elemento para iniciar a demarcação do conceito de crime político.

3.2) MOTIVOS DE EXCLUSÃO DO ROL DOS CRIMES QUE ENSEJAM A EXTRADIÇÃO

O princípio da não-extradição por delito político insere-se no direito interno e externo. Integrando os tratados bilaterais, encontra-se também expresso no Código de Direito Internacional Privado (Código de Bustamante), no art. 355: "estão excluídos da extradição os delitos políticos e os com eles relacionados, segundo a classificação do Estado requerido"; e no art. 356: "igualmente não se concederá, se se provar que a petição de entrega foi formulada de fato com o fim de julgar ou castigar o acusado por um delito de caráter político segundo a mesma classificação".

Sabe-se que o objetivo da extradição é o interesse dos Estados em manter a ordem social e que se propague a justiça por todos os povos. Este é o motivo que explica a solidariedade dos Estados na repressão à criminalidade em relação a fatos que ocorreram além de suas fronteiras.

Mas, o crime político, pelas características que o ensejam, não justifica a concessão de extradição. A razão pode ser encontrada na diferença existente entre os crimes comuns e os crimes políticos. Enquanto nos primeiros a criminalidade é considerada absoluta, ou seja, todos os povos, no mesmo grau de civilização, consideram tais atos delituosos repugnantes na mesma proporção; nas infrações políticas a criminalidade é relativa, um país pode punir um fato que em outro é de somenos gravidade, aquilo que parece sujeitar-se a penas mais graves em determinado momento histórico transforma-se em ato de civismo em outra época . Analisando por este ângulo, a não-extradição de um criminoso político não acarretaria em um descumprimento dos deveres do Estado, enquanto membro da coletividade internacional, de colaboração para que as leis sejam respeitadas e a justiça obedecida.

A doutrina majoritária chega ao ponto de afirmar que, ao conceder a extradição do criminoso político, o Estado requerido estaria influindo na política interna do país requerente, visto que, tal natureza de infração ofende exclusivamente o Estado em que foi cometida.

Por outro lado, inversamente ao que ocorre com os delinqüentes comuns, os criminosos políticos - se são elementos perigosos para a sua pátria - não o são, via de regra, relativamente a ordem social do país que lhe deu refúgio. A presença de um refugiado culpado por delito político não é considerado um perigo ou uma razão para temor ou receio da parte do país que o recebeu como asilado.

Além disso, nas questões desta natureza, ao menos em tese, acredita-se que não existirá, pela parte do Estado requerente, a necessária e serena imparcialidade na administração da justiça. Pois, segundo Bento de Faria (apud Trat. de derecho penal, I, p. 217) "a justiça administrada pela própria vítima não é justiça, é vingança".

3.3) QUALIFICAÇÃO DE CRIME POLÍTICO

Alguns autores consideram como crime político os delitos contra a segurança interna do Estado, com o fim de modificar a forma de seu governo ou sua constituição política. Mas, a corrente majoritária, inclui também nesta categoria de crime aqueles dirigidos contra a segurança externa do Estado, contra sua independência, contra a integridade de seu território e suas relações com outros Estados (ACCIOLY, 1998, p.363.).

Preliminarmente, podemos definir crime político como "aqueles dirigidos, subjetiva e objetivamente, de modo imediato, contra o Estado como unidade orgânica das instituições políticas e sociais" (HUNGRIA, 1958, p. 256). Não é fácil dizer do seu conteúdo e limites, no tempo e no espaço, porém, não resta dúvida que em seu conceito são incluídos os delitos que atingem a estrutura política do Estado, as suas instituições públicas, a sua independência e a sua soberania.

Há quem pretenda conceituar crime político distinguindo este dos crimes sociais. Esta distinção não se justifica, atualmente as questões políticas se dilataram e evoluíram para questões mais propriamente político-sociais. A ordem política compreende não só a específica organização do Estado, mas também a estrutura da organização social, da qual o Estado é sustentáculo. O crime político atenta diretamente contra a personalidade do Estado , enquanto o crime social é o que visa a atacar desde suas bases até a estrutura da organização social. Dito isto, nenhum alcance apresenta semelhante distinção, para o efeito de diverso tratamento dos crimes em questão, pois que entre as finalidades específicas do Estado se compreende a segurança da ordem na organização social, que diz, evidentemente, com sua própria segurança.

A noção de criminalidade política é ampla, seu conceito é variável, inexistindo no direito positivo tal definição. Costuma-se analisá-la de acordo com posições doutrinárias que reduzem a teoria do crime político a um dualismo conceitual: "de um lado, crime político puro ou absoluto e, de outro lado, crime político relativo ou misto. Aquele, traduzindo-se em ações que atingem a personalidade do Estado ou que buscam alterar-lhe ou afetar-lhe a ordem política e social; este - crime político relativo - embora revestido da motivação política de seu agente, projeta-se em comportamentos geradores de uma lesão jurídica de índole comum" (Extr. 493, 04.10.89 - RTJ 134/652, p.670 ). Na prática, consiste numa ação ou omissão contra a organização política e social do Estado ou contra o governo legalmente constituído. "... todos os fatos são políticos, e, principalmente, política é a ação de atacar o quartel, a qual teve como base a motivação política de dar sustentação ao regime vigente e, se necessário tomar o poder. E, evidentemente, à política se dedicava o ora extraditando" (Extr. 493, 04.10.89 - RTJ 132/ 652. p. 653).

Neste caso, tratava-se de uma ação armada que visava à modificação do status quo político, atingindo o Estado na sua personalidade, na sua estrutura, na sua organização, tornando-se evidente a prática do delito político.

"Hão de ser considerados crimes políticos, os praticados pelo extraditando, (...) aqueles destinados à contestação da ordem econômica e social. (...) Fatos enquadráveis na lei penal comum e atribuídos aos rebeldes - roubo de veículo utilizado na invasão do quartel, e privações de liberdade, lesões corporais, homicídios e danos materiais, perpetrados em combate aberto, no contexto da rebelião -, são absorvidos no direito brasileiro, pelo atentado violento ao regime, tipo qualificado pela ocorrência de lesões graves e de mortes (Lei de Segurança Nacional, art. 17)".(Extr. 694, 13.02.97 - RTJ 166/66. p.91) .

3.4) BEM JURÍDICO TUTELADO

Até agora, tem-se formulado como crime político "a infração que atinge a organização do Estado, como um todo, minando os fundamentos dos poderes públicos constituídos, como a conspiração, o atentado contra a segurança do Estado, a fraude eleitoral" (Forense Universitária, 1992. v.VII. p.3167).

Baseado nesta definição, o bem jurídico é a organização do Estado, a forma dinâmica de suas instituições. Lembrando que a organização do Estado e o Estado em

si são um só, sendo assim, o crime político tem como sujeito passivo o Estado. Entretanto, as demarcações ainda são vagas, a locução "organização do Estado" traduz uma abrangência ampla e enfraquece qualquer conceito razoável de crime político. Os crimes de lesa-humanidade, como o crime de genocídio, que fere gravemente a humanidade, devido à "Convenção para a prevenção e sanção do crime de genocídio" (realizada pela ONU), exclui tal delito do rol dos crimes políticos para efeito de extradição. No Brasil esta orientação da ONU resultou na promulgação da Lei nº 2889/56:

"Art. 1º. Quem com intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal."

Mas, apesar de ser permitida a extradição no crime de genocídio, ele não deixa de ser um crime contra a organização do Estado.

Ainda em relação ao Direito brasileiro, a Lei nº 6.815/80 atribui com exclusividade ao STF a apreciação do caráter da infração, dando-lhe a faculdade de não considerar crime político "os atentados contra Chefes do Estado ou quaisquer autoridades, assim como os atos de anarquismo, terrorismo, sabotagem, seqüestro de pessoa, ou que importem propaganda de guerra ou de processos violentos para subverter a ordem política ou social" (art. 77, parág. 2º e 3º, Estatuto do Estrangeiro). Conclui-se daí que tais crimes são de natureza política, mas, dadas as circunstâncias do fato, o STF pode reconhecer neles outra qualificação, possibilitando a extradição.

Diante disso, questiona-se se podemos ter sinais característico da tipicidade do crime político. Em busca de uma solução concreta, a primeira tarefa é delimitar o sujeito ativo, os meios e o bem jurídico tutelado pelo Direito Penal Político.

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, servidor público ou não, agente que exerça atividade política ou privada. Os meios são todos aqueles que possam lesionar o bem social.

Quanto aos bens jurídicos, numa visão primária e de acordo com o Direito Penal poderíamos dividí-los em: a) bens institucionalizados na coisa pública; b) bens da personalidade; c) bens de natureza social (TOLEDO, 1994, p. 15-20). A importância para o estudo em questão são estes últimos, pois são os bens de natureza social que o crime político fere.

Bens de natureza social, entende-se, aqueles que dizem respeito a valores fundamentais da sociedade e como tal inalienáveis: direito a um Poder constituído conforme a livre vontade popular; a ter representantes comprometidos com os interesses sociais; a ter plena liberdade de manifestação do pensamento sem lesar direito alheio; a ter direito a uma sociedade justa na distribuição dos bens e valores sociais, sem exploração de quaisquer entes, inclusive do Estado; etc. Toda a ação que tenha por objetivo negar, alterar, violar os valores da sociedade e suas necessidades fundamentais é um ato político, que, quando tipificado, configura-se como delito político.

Por fim, podemos classificar os delitos políticos em quatro categorias: 1ª. os que ofendem à vida, à integridade física e a condição natural de vida em sociedade pela lesão a seus membros: delito de genocídio, grupos de extermínio ou sonegadores de direitos de comunidades religiosas, raciais, etc.; 2ª. os que ofendem a paz (segurança) social: delitos de subversão armada ou dissimulada, levante social contra os direitos civis, insubordinação, terrorismo, etc.; 3ª. os que ofendem a valores subjetivos socias (moral e probidade): abuso e tráfego de poder político, influência e desvio do prestígio econômico e social em detrimento da sociedade, etc.: 4ª. os que ofendem a liberdade autêntica da sociedade na escolha de mandatários políticos: fraude eleitoral, compra de votos, etc.

3.5) CRIMES CONEXOS, CRIMES COMPLEXOS

Sabe-se do dualismo conceitual que classifica o crime político em absoluto ou relativo. Em matéria de não-extradição, situação complicada é a que suscita os denominados crimes políticos relativos, que são os crimes complexos ou mistos e os crimes comuns conexos a crimes políticos.

Quando se trata de infrações puramente políticas, crime político absoluto, a solução dos casos de pedido de extradição é facilitada, sendo a recusa, em geral, admitida. Mas não raro acontece que a infração, do ponto de vista objetivo, viola o direito de um indivíduo e molesta o Estado como pessoa jurídica; enfim, pode acontecer que o delito comum se encontre conexo com outro delito político, ou o ato incriminado pode, a um só tempo, constituir atentado à ordem política ou social e atentado a direitos privados ou individuais.

Por longo tempo, a orientação era de que os delitos comuns, ainda que violentos, desde que praticados no curso de uma rebelião, seriam contaminados pela natureza essencialmente política desta, seguida pelos países europeus - no ano de 1872 a1876 - para recusar à França a extradição de rebeldes da Comuna, procurados por delitos objetivamente comuns.

Em 1890, o Instituto de Direito Internacional, reunido em Oxford, adotara uma resolução na qual "os fatos que reunissem todos os caracteres de crimes de direito comum não devem ser excetuados da extradição, em razão apenas da intenção política de seus autores", mas, para apreciar os fatos cometidos no curso de uma rebelião política, de uma insurreição ou de uma guerra civil, é preciso saber se eles seriam ou não necessários em tal situação.

A matéria foi revista pelo Instituto, daí concluindo-se que seriam excluídos da extradição os delitos conexos (mistos) e complexos - os delitos políticos relativos - a menos que se tratassem de crimes graves.

São delitos conexos aqueles nos quais há uma pluralidade de fatos delituosos, vinculados uns aos outros numa relação de meio e fim. Na doutrina, há vários sistemas utilizados para verificar se a conexidade é capaz de revestir de caráter político a infração comum, em condições de isentar o infrator da extradição:

- Sistema da separação: quando as infrações distintas, a despeito de sua conexidade, podem ser encaradas separadamente, deve-se conceder a extradição. Este sistema, porém, possui dificuldades de aplicação, é impossível julgar um delito comum cometido com fim político, isolado do caráter político que o marca, e ademais o sistema restringe o instituto do asilo político, que dessa forma compreenderia apenas os delitos políticos puros.

- Sistema do fim ou do motivo: a infração cujo motivo é político deve obstar a extradição, a menos que o meio empregado para executá-la tenha um caráter de atrocidade. Vários tratados de extradição, entretanto, consignam a ressalva de que a alegação de fim ou motivo político não impedirá a extradição, se o fato constitui, principalmente, um delito comum. Neste sentido, também se pronuncia o Sr. Ministro Rocha Lagoa, "a alegação do fim ou motivo político não impedirá a extradição, quando o fato constituir principalmente uma infração comum da lei penal, ou quando o crime comum, conexo ao político, constituir o fato principal" (Extr. 162, 21.06.50 - p. 24).

- Sistema da preponderância: procede-se ao exame de qual a infração que predomina, a política ou a comum; se a culpabilidade política é a mais grave, não será possível a extradição. É o mais difundido para verificar a existência de crime político relativo, mas, não é uma técnica muito perfeita, é difícil perceber se o elemento político está em situação inferior em relação ao comum ou vice-versa. Entretanto, é necessário reconhecer quando o delito, embora tenha fim político, é crudelíssimo, constitui um caso dúbio, em que o interesse afetado não é apenas o de determinada ordem social, mas, antes, o da própria humanidade. Neste caso, predomina a opinião favorável a concessão da extradição.

A Comissão Jurídica Interamericana, na XI Conferência Interamericana, sugeriu alguns critérios para a verificação da predominância política de um fato questionado:

"1) São delitos políticos as infrações contra a organização e o funcionamento do Estado;

2) São delitos políticos as infrações conexas com os mesmos. Existe conexidade quando a infração se verificar: a) para executar ou favorecer o atentado configurado no item 1; b) para obter a impunidade pelos delitos políticos;

3) Não são delitos políticos os crimes de barbaria, vandalismo e em geral todas as infrações que excedam os limites lícitos do ataque e da defesa;

4) Não é considerado delito político, para efeito de extradição, o genocídio, de acordo com a Convenção das Nações Unidas" (JSTF, Lex 206).

No ordenamento brasileiro, o art. 77, parágrafo 1º, da Lei nº 6.815/80 implica na aplicação do critério da preponderância. Entretanto, é uma diretiva vaga, que resulta na valoração de cada caso concreto. "E a Corte tem levado em conta o critério da preponderância para afastar a extradição, ou seja, nos crimes preponderantemente políticos" (Extr. 694, 13.02.94 - RTJ 166/66. p.67).

O parágrafo 2º repete o preceito constitucional sobre a competência para o julgamento da extradição, que caberá ao Supremo Tribunal Federal, sendo ele que determinará a natureza do delito. "Toda interpretación debe estar fundada en el criterio de la legalidade y en el principio del dubio pro reu, descartando, in limini, las soluciones que intentem efectuar la calificación a través de una pretendia solidariedad pasiva" (FERNANDEZ, 1972, p. 52).

Quanto aos delitos complexos, o ato incriminado, em que se funda o pedido de extradição, pode constituir, a um só tempo, atentado à ordem política ou social e atentado a direitos privados ou individuais. Por exemplo, "o homicídio de que é acusado o extraditando teve lugar durante uma sedição. Ocorreu assim um ataque ao direito de segurança do Estado, juntamente à ofensa contra a segurança de pessoa e vida, aquele de natureza nitidamente política, e esta caracteristicamente um delito comum" (Extr.162, 21.06.50 - p.25).

A diferença entre os delitos conexos e os delitos complexos é que estes têm como característica constituirem-se de um ato único, inseparável em seus diferentes elementos. Para Accioly, da mesma forma que na hipótese da conexidade, a prática dos Estados, em geral, consagra a tese da assimilação dos delitos complexos, em que entra algum ato de natureza política, aos delitos puramente políticos.

Não é esse, porém, o critério determinado pelo legislador brasileiro, uma vez que o art. 77, parágrafo 1º, do Estatuto manda atender ao critério da preponderância (aliás, tal como ocorre no delito conexo). Também aqui "caberá, exclusivamente, ao Supremo Tribunal Federal, a apreciação do caráter da infração"(Estatuto, art. 77, parágrafo 2º).

4) CONCLUSÃO

Paralelo à crescente interdependência econômica, política, cultural, social entre os povos deve se desenvolver a solidariedade, pois existem questões de cunho universal, que afetam a todos. Sabe-se da importância da extradição na ordem mundial, que ela é um meio de combate à impunidade e que envolve a colaboração de todos os Estado.

Entretanto, para que se efetive, devem estar presentes certos requisitos, que os próprios Estados definem. Um deles foi aprofundado no paper e refere-se ao crime político. O que se verificou, em relação a tal delito, foi seu caráter de cogência em sentido negativo, ou seja, negando a extradição nos casos em que ele se apresenta. Foram encontradas algumas dificuldades no decorrer do trabalho. A princípio, a tarefa seria definir crime político baseando-se nas jurisprudências, pois seu conceito nunca foi tema de nenhum tratado, lei ou convenção. Entretanto, esgotadas as possibilidades nesta área, não se verificou uma resolução de maneira satisfatória, ou seja, um conceito que não se resumisse a um ou alguns casos concretos. As doutrinas também foram muito utilizadas, e, a partir de alguns autores, surgiu a idéia de definir crime político baseando-se no "bem jurídico tutelado".

Muitos autores nacionais e algumas jurisprudências resumem os crimes políticos aos enumerados na Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/83), entretanto, convém não esquecer que a estabilidade da ordem política e social, visada pelo Estado, também envolve a integridade física e a condição natural de vida em sociedade de seus membros.

O que é muito ressaltado no paper é que o crime político atinge a "personalidade do Estado", "suas instituições políticas e sociais". Ora, o Estado, como entidade orgânica, é composto por todos os seus membros, seu território, seu governo e sua capacidade de entrar em relação com outros Estados. Desta forma, conclui-se que, qualquer desses elementos que venha a ser lesionado ou ameaçado de lesão (a vida e a integridade física dos membros da sociedade, a paz social, os valores subjetivos sociais, a independência nacional, a integridade do território, as relações do Estado com os demais Estados, a forma de governo,...), pressupõe a prática de um crime político.

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Ana Paula Scóz Silvestre
Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina


retirado de : http://www.neofito.com.br/front.htm