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A ALCA e o fim do MERCOSUL

Samuel Pinheiro Guimarães


Para os grandes Estados da periferia a formação de blocos econômicos e políticos é um dos fenômenos mais importantes do cenário internacional. O Brasil participa do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e das negociações de formação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), estando ambos os processos envoltos em véus de ilusão, retórica e insensibilidade política.

A ALCA faz parte de uma operação estratégica americana de amplo alcance, com objetivos políticos, econômicos e militares de longo prazo, cuja implementação se inicia com a Cúpula de Miami - Reunião dos Presidentes das Democracias do Hemisfério, em dezembro de 1994 - com a significativa exclusão de Cuba, em uma primeira vitória dessa operação.

Os principais objetivos políticos do que se poderia chamar de "estratégia de Miami" seriam, do ângulo externo, consolidar a influência norte-americana sobre os maiores Estados da região, garantindo seu apoio em disputas dos EUA com outras potências, tais como a Rússia, a União Européia e a China; com Estados "renegados", como o Iraque, a Líbia e a Síria; e para suas estratégias específicas de combate às "novas ameaças", como o narcotráfico, o terrorismo e as migrações Sul-Norte e Leste-Oeste.

Do ângulo interno, seu objetivo seria consolidar vínculos de dependência jurídica. Tais vínculos impediriam modificações súbitas de política econômica e a adoção de políticas disciplinadoras dos fluxos de bens e de capital e promoveriam a adaptação da legislação e das instituições aos modelos norte-americanos, para facilitar a atuação das mega-empresas multinacionais americanas. A promoção das regras de good governance e da democracia formal, com a reeleição de dirigentes simpáticos a essa estratégia, contribuiria para alcançar este objetivo.

Do ângulo militar, essa estratégia visa a colocar sob "protetorado" militar americano os Estados da América Latina, por meio de acordos que dificultem ou impossibilitem o desenvolvimento de tecnologias avançadas, que são muitas vezes pela sua natureza duais (com uso militar e civil), que reduzam seus armamentos convencionais e, por último, que confiem às suas Forças Armadas apenas o papel de guardiães da ordem interna, transformando-as em forças policiais.

Na área econômica, os principais instrumentos da "estratégia de Miami" são a pressão pela adoção de políticas neoliberais de reorganização econômica, que "reduzam" (e enfraqueçam) os Estados e desregulamentem as economias e, finalmente, pela cristalização jurídica da abertura comercial e financeira, por meio de um tratado de criação de uma área de livre comércio das Américas, a ALCA.

O objetivo econômico norte-americano é estabelecer um território econômico único nas Américas, com livre circulação de bens, serviços e capitais, porém sem livre circulação da mão-de-obra, em especial aquela de menor qualificação, e, gradualmente, fazer adotar o dólar como moeda hemisférica, cuja emissão e circulação ficariam sob exclusivo controle norte-americano, ao contrário do euro, em que o controle da moeda é exercido de forma coletiva, pelos Estados da União Européia. Alguns dos objetivos intermediários ou parciais na execução da estratégia americana e que poderiam ser visados gradualmente, seriam:

  1. consagrar a abertura externa feita pelos Estados latino-americanos, aprofundá-la e torná-la definitiva ao comprometer os Estados com acordos parciais, setoriais e eventualmente gerais de liberalização;
  2. abrir setores ainda relativamente fechados das economias latino-americanas;
  3. melhorar a competitividade comercial dos bens e serviços americanos nos mercados sul-americanos diante das empresas européias e em especial das brasileiras;
  4. evitar o "retrocesso" em direção ao protecionismo e à estatização, que ocorre periodicamente quando das crises de pagamento das economias maiores como a brasileira;
  5. obter concessões, antecipando o que seria objeto de negociação comercial na futura Rodada do Milênio da OMC, e nas negociações sobre capitais do acordo multilateral de investimentos, ora em elaboração na OCDE;
  6. promover, aproveitando as crises de pagamentos, a vinculação entre o dólar e cada moeda nacional tornando assim todos os sistemas monetários latino-americanos "dolarizados", como já ocorre com a Argentina.
O Brasil é o único país, devido às suas dimensões e ao seu potencial, que pode competir política e economicamente com os Estados Unidos na América do Sul. Assim, é preciso encarar a ALCA como um projeto essencialmente entre o Brasil e os EUA, tendo em vista os parques industriais muito limitados dos demais países, com exceção do México e da Argentina; e os vínculos políticos e jurídicos existentes entre os EUA e a América Central e entre os EUA e diversos países sul-americanos, altamente dependentes do mercado e dos investimentos americanos, como é o caso da Venezuela e da Colômbia. O México e o Canadá participam do North American Free Trade Association (NAFTA) e portanto se encontram entrelaçados com a economia norte-americana. Por outro lado, a eliminação de tarifas aduaneiras e a criação de um território único entre o Brasil e os pequenos e mesmo os países médios da América Latina não acarretaria maiores conseqüências para os empresários e trabalhadores brasileiros. A notória assimetria em termos de diversificação industrial, de serviços e de competitividade, como os balanços comerciais bilaterais revelam, e o próprio fato de que já existe um território único com a segunda principal economia de região, a Argentina, indicam que os impactos não seriam negativos ou extraordinários. A questão que se coloca para o Brasil de um território único nas Américas se refere não aos demais países subdesenvolvidos de região, mas sim ao que ocorreria com a economia, a sociedade e o Estado brasileiros como resultado da criação de uma área de livre comércio com a principal potência econômica, política, tecnológica e militar do mundo, que são os Estados Unidos.

A ALCA se denominaria assim mais apropriadamente Área de Livre Comércio Brasil - Estados Unidos (ALCBREU) e a partir deste ângulo é que deveria ser analisada pelos estrategistas brasileiros quanto a suas conseqüências econômicas e políticas para o Brasil, e para o MERCOSUL.

A ALCA e o comércio no MERCOSUL

As preferências tarifárias, e não a maior competitividade de suas empresas, explicam a extraordinária expansão do comércio entre os países do MERCOSUL, desde 1991.

A principal vantagem econômica de curto e médio prazo do MERCOSUL para cada um dos quatro Estados membros é o acesso preferencial, sem pagamento de direitos aduaneiros e livre de barreiras não-tarifárias, ao mercado dos outros três países, o que lhe permite melhor concorrer com as empresas exportadoras, mais poderosas em termos financeiros, organizacionais e tecnológicos, dos países mais desenvolvidos, em especial os Estados Unidos.

Na medida em que, devido à ALCA, as empresas americanas e canadenses passem a desfrutar do mesmo tratamento de tarifa zero nos mercados do MERCOSUL deverão se reduzir as exportações do Brasil e da Argentina intra-MERCOSUL e os produtores brasileiros e argentinos, hoje protegidos da maior capacidade competitiva daquelas empresas pela Tarifa Externa Comum (TEC), sofrerão uma renovada e forte competição direta em seus próprios mercados nacionais. Assim, os atuais superávites americanos com os países do Mercosul se ampliariam, inclusive devido ao fato de que sendo a tarifa média americana mais baixa do que o nível médio da TEC, a redução a zero de ambas certamente ocasionaria um aumento mais do que proporcional das exportações americanas (e canadenses) para o Mercosul, não importa o que ocorresse com as barreiras não-tarifárias.

Nos outros países sul-americanos que, além dos Estados Unidos, constituem os principais mercados para as exportações de manufaturados brasileiros (setor dinâmico de nossa pauta, único que pode se expandir de forma consistente a longo prazo) passarão os produtos dos países do MERCOSUL, e aí principalmente os brasileiros, a sofrer a competição americana e canadense, pois desapareceriam as preferências a eles hoje concedidas pelos acordos de alcance parcial da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI).

O ganho para as exportações brasileiras, em decorrência da redução a zero das tarifas norte-americanas e mesmo da derrubada das barreiras não-tarifárias não seria significativo, tendo em vista a menor competitividade dos manufaturados brasileiros diante da produção local americana, européia e asiática no mercado interno dos Estados Unidos e dos produtos agrícolas brasileiros diante da maior eficiência da agricultura americana.

Assim, do ponto de vista do comércio exterior, a ALCA significaria um provável aumento do déficit com os Estados Unidos e uma redução das exportações brasileiras para a América do Sul, com o resultado final de um aumento do déficit global da balança comercial brasileira.

A ALCA e a formação de capital

Um dos principais estímulos ao investimento direto estrangeiro em qualquer região do mundo tem sido a "vantagem" que deriva de saltar as barreiras que protegem os mercados nacionais e assim, dentro deles, produzir o que antes não se podia, ou era difícil, exportar, inclusive gozando agora de maior estabilidade de regras. Haverá uma tendência à redução da formação de capital industrial no Brasil e na Argentina (únicos países com estrutura industrial avançada na região) devido à redução do estímulo aos investimentos diretos americanos que hoje se fazem para aproveitar a "preferência MERCOSUL", isto é, a tarifa zero entre os quatro mercados, consolidada juridicamente, "defendida" pela TEC, e que inclusive pode vir a se alterar para cima em certas circunstâncias, dificultando as exportações.

Aos menores investimentos diretos americanos corresponderão menores investimentos diretos de países europeus e asiáticos no MERCOSUL. Os investidores dessas regiões preferirão se instalar no maior mercado da ALCA, os Estados Unidos, ou se instalar no México, de mão-de-obra mais barata que a americana ou canadense e vizinho da Califórnia, da América Central e do norte da América do Sul, para de lá exportar para os demais países da região. O Brasil, cujo sudeste é hoje o centro econômico dinâmico do MERCOSUL, se tornará "excêntrico", distante e mais caro em relação ao território da ALCA considerado como um todo e perderá assim um dos principais estímulos de que hoje se beneficia para atrair capitais.

A partir da assinatura da ALCA, as empresas americanas instaladas no Brasil poderão importar insumos dos Estados Unidos com tarifa zero e reduzir as suas compras de fornecedores locais, brasileiros ou estrangeiros, o que afetará por um lado a produção e a balança comercial brasileira e, por outro lado, colocará as empresas americanas no Brasil em melhor posição competitiva em relação às empresas européias e asiáticas, instaladas no Brasil ou que exportam para o Brasil. Tais empresas, por sua vez, reivindicarão a negociação de acordos semelhantes de eliminação de tarifas entre o MERCOSUL e a União Européia e, eventualmente, entre o MERCOSUL e o Japão e outros países asiáticos.

A ALCA e o mercado de mão-de-obra

Uma das formas de compensar o desequilíbrio de vantagens na constituição de uma área de livre comércio de amplo escopo como viria a ser a ALCA, em que os países com excedente de capital e de bens se beneficiam da integração comercial e financeira, seria a possibilidade dos países, com escassez de capital e de bens, porém com excedente de mão-de-obra não-qualificada, poderem "exportá-la" e se beneficiar de suas remessas, como ocorreu no passado com os países europeus em relação à América do Norte e aos domínios brancos do Commonwealth. Esta hipótese não parece ter maior possibilidade de vir a ocorrer no caso da ALCA, pois os Estados latino-americanos que deveriam estar interessados em apresentar esquemas de livre circulação de mão-de-obra não os apresentam como ponto de negociação enquanto as restrições políticas e legais americanas à imigração são notórias. Assim, a criação de uma verdadeira zona econômica, como está se verificando progressivamente na Europa, não se verificaria no caso da ALCA.

Assim como o NAFTA consagrou as restrições à circulação de mão-de-obra na América do Norte, tudo indica que a política de imigração norte-americana em especial quanto a mão-de-obra não-qualificada permanecerá e que a ALCA não incluiria a possibilidade de livre movimentação de mão-de-obra no continente. Naturalmente, a mão-de-obra altamente qualificada continuará sendo benvinda ao mercado americano e seu ingresso e "enraizamento" na sociedade americana continuará a ser facilitado.

Os processos de "recrutamento" de mão-de-obra qualificada e promissora permanecerão através de um sistema integrado que inclui a difusão da língua inglesa e da cultura americana; o intercâmbio unidirecional de estudantes e professores; a concessão de bolsas de pós-graduação; a atração de executivos altamente qualificados para a direção de empresas multinacionais nos Estados Unidos e o incentivo a bolsistas altamente promissores para lá permanecerem e se integrarem ao sistema de ensino ou de produção.

Assim, os Estados da América Latina tenderão a permanecer como "depósitos" de mão-de-obra não-qualificada e barata e como geradores eventuais de pessoal altamente qualificado (uma situação semelhante ao fenômeno da biodiversidade) cujos custos de formação inicial financiariam, e que "fertilizaria" o mercado de trabalho norte-americano devido à sua criatividade e ao talento científico daqueles que se destacaram.

Respostas do MERCOSUL à ALCA

Este cenário e as conseqüências acima descritas não se materializariam integralmente no curto prazo, mas são tendências inexoráveis no médio e longo prazo na medida em que não há indícios de natureza econômica, social ou política que permitam prever que as empresas brasileiras poderão se tornar competitivas em relação às americanas de tal forma que pudessem, no médio ou longo prazo, se beneficiar da ampliação do território que resultaria da ALCA.

Governos, acadêmicos e empresários têm sugerido que seria conveniente, necessário ou até imprescindível, antes de negociar de fato o ingresso do Brasil na ALCA, fortalecer o MERCOSUL através da expansão de seus vínculos econômicos internos; da construção de políticas macroeconômicas e setoriais comuns; ou de sua ampliação geográfica, pela criação de uma Área de Livre Comércio da América do Sul – a ALCSA.

A expansão do comércio do MERCOSUL

A acelerada redução de barreiras entre os quatro países e deles em relação ao resto do mundo, em cumprimento do calendário do Tratado de Assunção (1991), fez crescer as importações entre os quatro países de 5,3 para 20,1 bilhões de dólares e suas importações do resto do mundo de 29 para 80 bilhões de dólares, no período entre 1991 e 1997. Por outro lado, as exportações entre os quatro países cresceram de 5,1 para 19,7 bilhões de dólares e suas exportações para o resto do mundo de 41 para 62 bilhões de dólares.

O superávit global de 12 bilhões de dólares em 1991, que os países do MERCOSUL tinham em seu comércio com terceiros países, se reduziu rapidamente e passaram a ocorrer déficits crescentes a partir de 1994 que atingiram, em conjunto, 18 bilhões de dólares em 1997.

A capacidade desses países de competir no mercado mundial não tem aumentado na medida em que suas exportações, para países fora do Mercosul, passaram de 41 bilhões de dólares em 1991 para 62 bilhões de dólares em 1997, enquanto as exportações mundiais (exclusive as exportações intra-Mercosul) passaram de 3,4 trilhões de dólares para 5,2 trilhões no mesmo período. A participação de suas exportações para terceiros países (extra-Mercosul) no total das exportações mundiais passou assim de 1,20% para 1,17%.

Brasil e Argentina, que são os principais países do MERCOSUL, têm voltado gradualmente à condição de exportadores primários, com tudo o que isso significa de deterioração de termos de intercâmbio, de flutuações bruscas de preços, de aumento de concorrência de novas áreas de produção, de dificuldade de acesso aos mercados desenvolvidos e de lento crescimento da demanda. Por outro lado, contrariando as expectativas nutridas pela Rodada Uruguai, a liberalização dos mercados agrícolas ou não ocorreu ou não teve as conseqüências esperadas e o Brasil se tornou, não um grande exportador de produtos agrícolas, mas sim um dos maiores importadores mundiais de produtos agrícolas e agro-industriais.

A vulnerabilidade dos países do MERCOSUL a choques externos parece estar aumentando devido à lenta expansão de suas exportações, à redução gradual do seu valor agregado, ao aumento acelerado e indiscriminado de importações e à elevada dependência dos dois países menores, e agora também da Argentina, do mercado brasileiro.

Os déficits no comércio de bens e em outros itens do balanço de transações correntes, que foram também desregulamentados e abertos, tais como transportes, viagens, tecnologia e remessas financeiras, vêm sendo financiados pelo ingresso de capitais de curto prazo, pela venda de ativos do Estado, por investimentos diretos e por empréstimos.

As estratégias de financiamento do setor externo e de atração de capital por meio de altas taxas de juros e de câmbio "fixo" fizeram com que a dívida externa do MERCOSUL passasse de 188 bilhões, em 1991, para 303 bilhões de dólares, em 1997. A crise latente do balanço de pagamentos, em especial do brasileiro, foi assim se formando antes das crises na Ásia ou na Rússia e deriva da crescente desconfiança dos capitalistas internacionais em nossa capacidade de saldar compromissos, da corrida para realizar lucros e, no caso dos capitalistas brasileiros, da preocupação em preservar o valor de seus ativos denominados em reais.

A crise cambial latente no principal país do MERCOSUL tem natureza "estrutural" e não apenas conjuntural, que pudesse ser remediada rapidamente por uma mudança de política cambial. A mega-operação de salvamento, conduzida pelo FMI, bancos internacionais e governos credores, em 1998, se de um lado revela a dimensão da crise de outro será ineficaz para dissolvê-la. As próprias políticas que são condições para concretizar essa operação, ao estimular a desnacionalização de empresas e a abertura ao capital estrangeiro de setores de "non tradeables", como o bancário e infra-estrutura, contribuem para agravar os mecanismos que geram inexoravelmente crescentes saídas de divisas.

A estratégia de desvalorização cambial ou a adoção de uma política de câmbio flutuante, ainda que pudesse auxiliar no enfrentamento dos desequilíbrios externos, seria insuficiente. Do lado da importação, diversos setores incorporaram em seus processos produtivos insumos importados, às vezes com o desaparecimento das indústrias locais que antes os fabricavam, e a privatização, a desnacionalização de empresas e de "cadeias produtivas" tornaram essas importações "estruturais". A desvalorização cambial impulsionaria os preços dos produtos industriais importados e da produção doméstica que com ela compete e efeitos semelhantes se verificariam na área agrícola e de abastecimento, ainda que nessas áreas a recuperação da produção doméstica pudesse ser mais rápida.

Quanto à exportação, de um lado as estruturas dos mercados internacionais caracterizadas pelo comércio intrafirmas, pela estratégia das empresas multinacionais de divisão de mercados e pelas dificuldades de acesso aos mercados dos países desenvolvidos, devido ao neoprotecionismo, agravado pelo desemprego naqueles mercados, e de outro lado, as dificuldades para financiar exportações, subsidiá-las ou "promovê-las", limitariam em muito a possibilidade de expansão rápida das exportações. De toda forma, a dimensão do superávit comercial que teria de ser alcançado a curto prazo, a continuidade provável de uma política de elevadas taxas de juros e o desestímulo conseqüente aos investimentos produtivos e não-especulativos indicam que a desvalorização teria um efeito menor do que o esperado por seus defensores, ainda que acompanhada por uma brutal e profunda recessão. Ademais, o impacto da desvalorização sobre a parte "dolarizada" da dívida pública interna e as dívidas das empresas privadas brasileiras em dólar são elementos dissuasivos da adoção de uma política de desvalorização cambial rápida.

É necessário lembrar que certos itens do balanço brasileiro de transações correntes são naturalmente deficitários, no curto e médio prazo, pelo menos. Os investimentos diretos brasileiros no exterior são muito menores do que os investimentos estrangeiros no Brasil assim como são diminutos os financiamentos concedidos pelo Brasil a terceiros países e portanto, as receitas de lucros e de juros tendem a ser muitíssimo inferiores às despesas. As receitas de fretes dificilmente podem crescer pela situação precária da marinha mercante e da indústria naval. O balanço da conta de tecnologia tende a ser deficitário pela reduzida geração de patentes e pelo descontrole atual sobre os contratos de tecnologia. O Brasil, finalmente, é um pólo emissor de turistas e sua infra-estrutura turística, apesar de progressos recentes, ainda não é capaz de reverter a tendência de déficit na conta de viagens internacionais.

Os déficits nesses itens de transações correntes tendem a permanecer e até a se ampliar em condições normais e sua redução dependeria de controles e restrições administrativas. Assim, qualquer redução significativa do desequilíbrio no balanço de transações correntes como um todo somente pode ocorrer, ainda que com as dificuldades apontadas, por meio da geração de superávites na balança comercial.

Assim, a probabilidade de virem a ser necessários controles rígidos sobre as transações comerciais, cambiais e outras transações correntes é cada vez mais elevada, em especial no Brasil, país que é o centro do MERCOSUL e cuja situação econômica e política tem impacto decisivo sobre a economia dos três outros Estados. Entre outras medidas, isso poderá fazer com venha a ser indispensável a elevação da Tarifa Externa Comum, o que acarretará resistências e fortes protestos da Argentina, Paraguai e Uruguai e dos países extra-MERCOSUL como os Estados Unidos, que hoje têm grandes superávites com o MERCOSUL e com o Brasil e que seriam afetados pelo aumento de tarifas em uma conjuntura internacional estagnada e marcada por um resistente desemprego.

O "aprofundamento" do MERCOSUL

A estratégia de "aprofundamento" do MERCOSUL - isto é de promover a transição de uma união aduaneira para uma comunidade econômica através da adoção de políticas comuns setoriais (indústria, agricultura, previdência, trabalho, comércio exterior) e macroeconômicas (fiscal, monetária, cambial) para enfrentar os desafios da ALCA e a ela sobreviver se defronta com a questão das assimetrias.

As assimetrias entre os quatro países do MERCOSUL são extraordinárias e constituem a dificuldade maior, ao lado da vulnerabilidade externa, para a coordenação conjuntural de políticas macroeconômicas, para a elaboração de políticas setoriais comuns e para a construção de instituições supranacionais.

O Brasil corresponde a 72% do território; a 79% da população; a 69% do PIB; a 64% do comércio exterior; a 48% do comércio intra-bloco e a 62% da dívida externa do MERCOSUL. Por outro lado, o Brasil apresenta péssimos índices sociais nas áreas de educação, saúde, habitação, concentração de renda, expectativa de vida, mortalidade infantil etc. Paraguai e Uruguai, somados, correspondem a 5% do território; a 4% da população; a 3% do produto; a 5% do comercio exterior; a 10% do comércio intra-bloco e a 2% da dívida externa dos Estados do MERCOSUL.

As diferenças de características, de problemas, de disparidades regionais e sociais e de potencial indicam que as políticas econômicas e sociais adequadas e aplicáveis ao principal país do MERCOSUL – o Brasil – tem de incorporar estratégias e instrumentos essencialmente distintos daqueles que seriam recomendáveis aos demais Estados membros. Ademais, as diferenças periódicas de "momento" (expansão ou retração) no ciclo econômico, de etapa de desenvolvimento, de potencial e perspectivas dos países do MERCOSUL na esfera internacional dificultam até mesmo o exercício de imaginar como seriam definidas e implementadas políticas comuns.

Tais eventuais políticas comuns teriam de ser elaboradas e geridas por instituições comuns, supranacionais, integradas por representantes, políticos e técnicos, indicados pelos Estados-membros, ou por mecanismos intergovernamentais.

Na medida em que necessitam receber parcelas de soberania dos Estados membros, as instituições supranacionais, para serem democráticas, isto é, representativas e legítimas, devem, em sua composição, "corresponder" razoavelmente às populações dos países – dimensão política – e à importância e complexidade produtiva das suas sociedades – dimensão econômica.

As assimetrias no MERCOSUL ocorrem em tal escala que a definição da proporção da participação de cada país nessas instituições se torna quase impossível, pois o Brasil, em qualquer aspecto, corresponde a mais de 50% do conjunto dos Estados-membros, sendo que as assimetrias entre o Brasil e os dois Estados menores são extraordinárias. Se ao Brasil correspondesse menos do que a metade do número de integrantes de qualquer organismo supranacional (Comissão, Parlamento, Tribunal) a população e a economia brasileiras estariam radicalmente subrepresentadas. Por outro lado, se mais da metade dos membros fosse de brasileiros, a opinião destes sempre prevaleceria na tomada de decisões e, portanto, a instituição não seria democrática, pois os demais países estariam em uma situação de minoria sistemática.

Entre as políticas comuns está a monetária, a partir da criação de uma moeda comum, o que vem sendo apresentado recentemente como solução para "aprofundar" o MERCOSUL por alguns acadêmicos, altos funcionários e recentemente pelo próprio governo argentino. A própria organização de um Banco Central do MERCOSUL encontraria aqueles obstáculos, sendo impossível aceitar a ilusão de que seus dirigentes, após serem designados, se tornariam "neutros" e "imparciais", perdendo a sua nacionalidade e visão do mundo.

A definição e gestão, por mecanismos intergovernamentais, de políticas comuns aos quatro Estados do MERCOSUL, ainda que não esbarrasse na questão das assimetrias e da representatividade, seria uma operação de grande complexidade e que exigiria, acima de tudo e de início, uma visão razoavelmente compatível e uma política comum dos dois principais Estados diante dos desafios internacionais que tem de enfrentar, no processo assimétrico e altamente tumultuado da globalização, o que hoje, 1999, está longe de ocorrer.

Mesmo que a definição e execução de políticas comuns fosse possível, elas poderiam ser insuficientes para fortalecer, em tempo hábil e na escala necessária, o capital brasileiro ou o capital estrangeiro no Brasil frente à nova concorrência, sem limites e sem defesas, gerada pela área continental de livre comércio.

Por outro lado, as iniciativas pontuais dos países do MERCOSUL, como o reconhecimento de diplomas escolares, a criação de passaporte comum e outras, ainda que louváveis, não têm maior impacto sobre o cerne do desafio político e econômico, para o Brasil e o MERCOSUL, que coloca a estratégia americana de formação da ALCA.

A ampliação do MERCOSUL

Outra estratégia que vem sendo apresentada para enfrentar o desafio da ALCA seria de, ampliando o MERCOSUL, aumentar a capacidade de negociação com os EUA e o Canadá e tornar esta negociação mais equilibrada.

A "ampliação" do MERCOSUL, incorporando, por adesão ou associação, outros países, está vinculada à questão da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) o que torna necessário apresentar um rápido histórico daquele organismo e daquele que o antecedeu, a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC).

A frustração brasileira pela ausência de um "Plano Marshall para a América Latina" após a Segunda Guerra Mundial; a proposta da Operação Pan-Americana; o Tratado de Roma e o tratamento preferencial concedido aos Estados africanos; os estudos da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) sobre industrialização, comércio e ampliação dos mercados nacionais pela integração, levaram, em 1960, à criação da ALALC, com a participação dos países da América do Sul e do México.

Em 1969, no seio da ALALC, surgiu o Pacto Andino, uma associação entre Chile, Bolívia, Peru, Equador, Venezuela e Colômbia, com objetivos de planejamento econômico e políticas comuns nas áreas industrial e de investimentos. Seus resultados foram inicialmente modestos devido à pequena dimensão dos mercados, ao baixo nível de acumulação de capital e às rivalidades e divergências entre os seus membros – que levou, por exemplo, à saída do Chile.

Após um período inicial de remoção negociada de barreiras tarifárias, a ALALC não cumpriu seu ambicioso cronograma de doze anos para formação da zona de livre comércio e sofreu, a partir de 1973, os efeitos das crises do petróleo que levaram a súbitas e drásticas dificuldades de balanço comercial e à renovação de barreiras tarifárias e não-tarifárias entre os países membros.

Em 1980, a ALALC foi substituída pela ALADI, uma organização muito mais flexível, que permitiu manter os tratamentos preferenciais concedidos pela ALALC e expandi-los por meio de acordos bilaterais ou plurilaterais de preferências, com a aprovação tácita do General Agreement on Tariffs and Trade (GATT).

A ALADI não deve ser subestimada, pois o tratado que a constitui é o instrumento legal que permite aos Estados-membros conceder tratamento preferencial entre si, sem ter de obedecer ao artigo XXIV do GATT (hoje Organização Mundial do Comércio), e a suas exigências de prazo e de volume de comércio que os acordos bilaterais da ALADI estão longe de atender. A ALADI constitui assim, na prática, uma rede de acordos preferenciais entre os Estados membros, de alcance muito variado quanto ao número de produtos beneficiados e às preferências concedidas.

Em 1986, tendo em vista as limitações da ALADI, Brasil e Argentina decidiram iniciar um programa de integração e cooperação econômica bilateral que, além da formação gradual de uma zona de livre comércio e eventualmente de uma união aduaneira, previa a elaboração de políticas comuns e programas de cooperação em áreas de alta tecnologia tais como a nuclear, a aeronáutica, a informática e a biotecnologia. Esse programa tinha também objetivos políticos pois, ao contribuir para remover a histórica desconfiança entre os dois países e sua competição por influência econômica e política na América do Sul, em especial no Cone Sul, lhes permitiria uma atuação conjunta mais eficiente no cenário político internacional, nas organizações multilaterais e em suas relações bilaterais com as grandes potências.

Graças à aplicação dos princípios de gradualismo, flexibilidade, realismo e equilíbrio de vantagens, o Programa teve êxito na remoção negociada de obstáculos e na criação de um espírito de cooperação entre as administrações econômicas, políticas e militares dos dois países.

Em 1988, antes da eleição presidencial argentina, decidiram os dois governos celebrar um Tratado de Integração que, ao ser ratificado pelos Congressos dos dois países, conferisse maior legitimidade aos princípios, consolidasse os resultados do Programa e engajasse os Legislativos no processo de integração, tornando-o menos burocrático e mais democrático.

Com a eleição e a posse dos presidentes Carlos Saul Menem (1989) e Fernando Collor de Mello (1990), as políticas econômicas dos dois países sofreram radical transformação, tendo sido adotadas nos dois países filosofia e políticas econômicas neoliberais que tinham como princípio central a abertura unilateral do setor externo e, em especial, do comércio.

Assim, em 1991, com o Tratado de Assunção, as autoridades dos dois países decidiram aceitar a participação do Uruguai e do Paraguai e transformar o programa bilateral, com seus mecanismos graduais e adaptados às peculiaridades dos diferentes setores e momentos, em um esquema automático e acelerado de redução e eliminação de tarifas, com a formação de uma tarifa externa comum, como instrumento auxiliar do processo geral de redução de tarifas, em que já estavam empenhadas.

O MERCOSUL constituiu-se assim em um instrumento de lock in (de "trancamento"), a níveis baixos, da política geral de redução de tarifas e barreiras não-tarifárias, de características multilaterais, ao consagrar tal política em um tratado internacional regional, em que três dos quatro participantes tendem a favorecer uma política de tarifas aduaneiras baixas.

A leitura do Tratado de Assunção revela que seus objetivos são prioritariamente comerciais, de liberalização e abertura de mercados, sem pretensão efetiva à coordenação de políticas macroeconômicas e à formulação de políticas comuns, mencionando apenas sua conveniência, sem estabelecer compromissos ou indicar mecanismos para atingir tais fins.

A formação do MERCOSUL colocou em questão os chamados acordos de alcance parcial (AAPs), que haviam sido celebrados anteriormente entre cada país do MERCOSUL e os demais membros da ALADI.

Esses acordos "perfuravam" a Tarifa Externa Comum de forma desigual. A título de exemplo, nos AAPs entre os países do MERCOSUL e a Venezuela, o tratamento tarifário concedido pela Venezuela para um mesmo produto era desigual em relação a cada país do MERCOSUL e vice-versa, assim como era desigual o elenco de produtos incluídos em cada AAP bilateral.

A ampliação geográfica do MERCOSUL tem significado principalmente um processo da regularização do "patrimônio histórico" de concessões tarifárias, através de sua "multilateralização".

O acordo com o Chile – que é um acordo de associação, pois o Chile não se tornou membro do MERCOSUL – veio a ter um caráter distinto, devido à importância dos fluxos de comércio desse país com os países do MERCOSUL, às questões políticas entre Chile, Argentina e Brasil e ao interesse de vincular o Chile ao MERCOSUL frente à sua intenção, demonstrada em certo momento, de se associar ao NAFTA.

A Bolívia, apesar de fazer parte do Pacto Andino, hoje Comunidade Andina e de ter tarifa em comum com os demais membros da Comunidade, celebrou isoladamente um acordo de associação com o MERCOSUL. A reduzida importância comercial da Bolívia como mercado, sua elevada dependência comercial em relação ao MERCOSUL (isto é, ao Brasil e à Argentina) e seu incipiente parque industrial tornaram esse acordo um exercício de harmonização dos níveis tarifários dos acordos bilaterais anteriores entre aquele país e os Estados do MERCOSUL.

As negociações com a Venezuela e demais membros da Comunidade Andina tem encontrado sérios obstáculos enquanto que a decisão argentina, em 1998, de renovar unilateralmente seu acordo bilateral com o México causa profunda preocupação, ao romper a frente de negociação do MERCOSUL com os parceiros da ALADI.

Conclusões

Assim, além das crises internas que absorvem atenções e esforços, de um lado a estratégia de "aprofundamento" do MERCOSUL esbarra na ideologia neoliberal, livre-cambista e multilateralista das autoridades econômicas argentinas e brasileiras e nas assimetrias entre os Estados, as quais dificultam a elaboração de políticas comuns através de mecanismos intergovernamentais ou de instituições supranacionais enquanto que a estratégia de ampliação geográfica não tem significado a inclusão de novos Estados no MERCOSUL, mas, principalmente, a regularização das diferenças de tratamento tarifário entre os países do MERCOSUL e os demais membros da ALADI, sem que tenham ocorrido significativas diferenças pela inclusão de grande número de novos produtos.

Por outro lado, caso a ALCA venha a se materializar, a zona de livre comércio do MERCOSUL se ampliará de quatro para trinta e quatro parceiros, restando apenas a Tarifa Externa Comum (TEC) que sofrerá forte pressão para "desaparecer" em decorrência da eventual negociação de um acordo de livre comércio entre a União Européia e o MERCOSUL. Assim, caso se implantem a ALCA e uma zona de livre comércio com a União Européia, o MERCOSUL terá desaparecido de forma definitiva como instrumento de política comercial preferencial e como embrião de união econômica.

A ALCA trará como conseqüência global o agravamento do desequilíbrio comercial entre Brasil e Estados Unidos e do desequilíbrio global do comércio exterior brasileiro. Como a parte financeira é tratada de forma estanque pelos países credores, o desequilíbrio do balanço de contas correntes se agravará, principalmente caso persistam as políticas de câmbio "fixo" e de altas taxas de juros para atrair capitais de curto prazo, com as conseqüências sobre a acumulação de capital, o nível de produção e o emprego.

Por outro lado, a criação de um território econômico comum faria com que as decisões tomadas em Washington no campo da política monetária e fiscal tivessem um impacto maior do que tem hoje sobre a atividade econômica em toda a área, sem que a população brasileira estivesse sequer representada nesse processo decisório. Naturalmente, que se a atual "âncora cambial" for transformada em "currency board" i. e. for estabelecida legalmente a paridade entre o dólar e o real, desaparecerá a possibilidade de política monetária autônoma.

O Brasil se tornará o maior e mais inerme Estado periférico pois ainda que seus governantes superem as amarras ideológicas que os tolhem e recuperem a capacidade de ação política autônoma, o Brasil enfrentaria enormes dificuldades pois veria reduzida drasticamente, com a ALCA e o acordo com a União Européia, a possibilidade legal de utilizar os mecanismos de política industrial, tecnológica e comercial para acelerar a acumulação interna de capital, necessária ao aumento da produtividade, da produção e da renda de sua população crescente.

Os desequilíbrios sociais e econômicos internos se agravarão sem que o Estado tenha os recursos, a visão ideológica, a vontade política e a possibilidade legal de intervir de forma enérgica (e não paliativa) no processo social, econômico e tecnológico, enquanto que a vulnerabilidade externa se agravará pelo descompasso entre os setores comercial e financeiro do balanço de pagamentos.
 
 

           Fonte:<http://www.mre.gov.br/ipri/salca.html>