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O processo penal português e a convenção européia dos direitos do homem

Germano Marques Da Silva

RESUMO

Analisa o sistema processual penal português, destacando as reformas empreendidas no Código de Processo Penal daquele país em 1998 e confronta esse sistema com as normas da Convenção Européia dos Direitos do Homem.

Refere-se à autonomia do Ministério Público e à independência dos juízes e suas delimitações como tópicos centrais do processo penal português.

Descreve as questões que, no Direito positivo português, têm-se mostrado controvertidas perante o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: a imparcialidade do juiz penal e a participação pessoal do argüido na fase de julgamento.

Destaca, ainda, como alteração trazida pela reforma do Código de Processo Penal português, a possibilidade de registro integral da prova produzida em audiência como fundamento à decisão condenatória ou absolutória e a intervenção simultânea do tribunal coletivo para o julgamento dos agentes, em crimes puníveis com penas de prisão de máximo superior a cinco anos, caso o Ministério Público não se manifeste em contrário.

Discorre, por fim, sobre a controvertida questão do segredo de justiça.

 

ABSTRACT

It analysis the Portuguese penal processual system, emphasizing the reforms which were carried out in the Penal Process Code of that country in 1998, and it compares that system with the rules of the Human Rights European Convention.

It refers to the authonomy of the District Attorney Office and the judge’s independence and their limitations as main topics of the portuguese penal process.

It describes the issues that, in the Portuguese positive Law, have showed themselves controversial before the Human Rights European Court: the impartiality of the penal judge and the personal participation of the individual who is being questioned in the judgement phase.

It still emphasizes, as an alteration brought by the reformulation of the Portuguese PPC, the possibility of the complete registration of the evidence produced as basis to the condemnatory or exculpatory decision and the simultaneous intervention of the collective court for the judgment of the agents, in crimes which are punished with jail penalties of a maximum superior to five year, in case the District Attorney Office does not manifest itself in contrary.

 

Estou plenamente convencido de que o sistema processual penal português é, na perspectiva de defesa dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, o mais avançado dos sistemas europeus, e não só por os seus textos básicos serem dos mais modernos no contexto regional, mas também porque há efetivamente em Portugal uma cultura democrática que passa naturalmente pela defesa intransigente dos direitos e liberdades fundamentais. Pode facilmente constatar-se que nunca em Portugal se estudou tanto o processo penal e isso não acontece por acaso, mas pela sincera preocupação de aprofundar os valores democráticos, que encontram no culto da liberdade, ao lado da soberania do povo e do reconhecimento dos princípios dos direitos do homem, os elementos essenciais da própria democracia1.

À guisa de intróito parece-me útil dar conta das soluções do Direito positivo português nas matérias mais controversas no âmbito europeu, naquelas que mais têm ocupado o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

As questões que com mais freqüência têm sido submetidas ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no âmbito processual, respeitam à privação da liberdade anterior ao julgamento, a questões relativas ao próprio julgamento, à imparcialidade dos juízes e à assistência de advogado. Completarei esta exposição introdutória com uma referência à discussão, que hoje é viva em Portugal, quanto à delimitação das funções de julgar e de acusar e começarei precisamente por esta questão que em minha opinião constitui o cerne da estrutura acusatória do processo penal.

1 AS RELAÇÕES ENTRE O MINISTÉRIO PÚBLICO E OS TRIBUNAIS E A INDEPENDÊNCIA DOS JUÍZES

Uma das questões que tem sofrido mais profunda evolução em Portugal, após a Revolução de Abril, é a das funções e estatuto do Ministério Público e sua caracterização em face dos restantes poderes do Estado, nomeadamente do Poder Executivo e do Poder Judicial, matéria que tem sido tema de polêmica constante, quer numa perspectiva de feição marcadamente política, quer na delimitação das suas atribuições e competência no processo criminal.

Não vou agora referir-me à problemática das relações entre Ministério Público e Polícia Criminal2, mas à das relações entre Ministério Público e juiz.

O Ministério Público é hoje em Portugal indubitavelmente um órgão autônomo de administração judiciária, cujos agentes são organizados hierarquicamente e subordinados ao Procurador-Geral da República, cuja legitimidade democrática lhe resulta da nomeação pelo Presidente da República sob proposta do governo e, em matéria administrativa e disciplinar, ao Conselho Superior do Ministério Público, em cuja composição participam membros eleitos pela Assembléia da República, outros designados pelo governo e magistrados eleitos pelos seus pares.

A posição institucional do Ministério Público não tem sido pacífica ao longo destes últimos anos e à medida que se tem vindo a enfraquecer a sua dependência do Poder Executivo, pela sua afirmação como órgão autônomo da administração judiciária, e a afirmar-se na prática processual essa mesma autonomia no exercício da ação penal, têm também aumentado as posições críticas sobre a sua legitimidade democrática por parte da magistratura judicial e de alguns setores da sociedade portuguesa quanto ao reforço das suas competências.

A magistratura judicial, que se arroga a qualidade de único órgão de soberania a quem é reservada a função jurisdicional, contesta os poderes que a lei atribui ao Ministério Público de conformação da ação penal, nomeadamente quanto às tímidas manifestações do princípio da oportunidade que o Código de Processo Penal consagra, e ao poder de, finda a fase processual da investigação pré-acusatória, decidir, autonomamente, pela verificação dos pressupostos processuais necessários à prossecução do processo mediante a formulação da acusação. Alguns setores da sociedade não entendem ou não aceitam essa crescente autonomia no exercício da ação penal, preferindo politicamente um órgão de promoção da ação na dependência direta do Poder Executivo, para que a sua ação seja também fiscalizada politicamente.

Pensamos que muito haverá ainda que caminhar no sentido da clarificação dogmática da posição institucional do Ministério Público, mas tudo nos parece apontar para o reconhecimento da componente política da responsabilidade do Procurador-Geral da República e para o conseqüente reforço da organização hierárquica dos agentes do Ministério Público, na clara e rígida subordinação ao Procurador-Geral da República no que tange ao exercício da ação penal. Também a clarificação dogmática da função jurisdicional reservada aos tribunais, no sentido do reforço da independência dos juízes, segundo a idéia de que não lhes cabe a direta responsabilidade de promover o melhoramento efetivo da situação de fato quanto ao respeito pelas leis e à manutenção dos valores fundamentais da ordem jurídica3, não tendo, por isso, responsabilidade direta no combate à criminalidade, que este combate pressupõe necessariamente a responsabilização política, orientação que desde há muito venho entendendo como a mais ajustada aos valores do nosso tempo e aos fins prosseguidos com a Justiça Criminal.

No entrecruzamento dessas duas perspectivas será possível avançar para um crescente reforço da autonomia do Ministério Público no exercício da ação penal e não menor reforço da independência dos juízes, permitindo, como parece impor-se, uma mais ampla consagração do princípio da oportunidade no exercício da ação, sem o que, na sociedade dos nossos dias, não há sistema judiciário que resista nem hierarquia de valores que possa suportar-se no sistema.

Questão é reconhecer que a justificação da autonomia e a legitimidade do Ministério Público residem na vinculação dos magistrados aos interesses e diretivas do povo soberano e que a lei legítima e devidamente promulgada é a expressão temporal do ideal de justiça e constitui, na contingência humana, a condição da liberdade. E forçoso é reconhecer também que a função dos juízes no processo penal é essencialmente a de garantir juridicamente os direitos dos cidadãos, nomeadamente os do argüido, que a defesa da sociedade é de natureza essencialmente política ou, se quisermos, predominantemente política pela necessária disponibilidade de meios que pressupõe e está por isso confiada a órgãos conformados por essa componente.

2 A IMPARCIALIDADE DO JUIZ PENAL

Ligada à questão anterior da independência dos juízes, mas mais ampla, é a questão da sua imparcialidade, matéria que tem sido muito discutida na doutrina e até na jurisprudência portuguesa do Tribunal Constitucional, também pelo Tribunal de Estrasburgo.

Referimo-nos agora à imparcialidade objetiva, que a problemática da imparcialidade subjetiva não tem sido suscitada na jurisprudência do TEDH e na ordem interna portuguesa tem sido colocada sobretudo a propósito dos pressupostos probatórios, ou seja, do direito probatório, matéria que não podemos tratar agora4.

A problemática da imparcialidade objetiva do juiz penal não respeita tanto à conduta subjetiva do juiz, mas às circunstâncias em que este se encontra e que objetivamente podem suscitar a suspeita sobre a sua imparcialidade.

Para além de outras causas geradoras de impedimento, que são indiscutíveis5, tem sido discutida pela doutrina e jurisprudência a intervenção do juiz no próprio processo como causa de impedimento.

O art. 40 do CPP português, na sua redação originária, dispunha que:

Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado, ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido.

Na vigência desse preceito foram muitas as decisões dos tribunais portugueses no sentido limitativo, restringindo o impedimento aos casos em que o juiz interviera anteriormente no debate instrutório, mas notava-se uma certa inquietude e desconforto da própria jurisprudência, justificada sobretudo por razões de economia na organização judiciária. Também a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem não é firme, antes procura encontrar um razoável equilíbrio entre a eficácia da organização judiciária e o interesse da confiança na imparcialidade do juiz.

A Comissão de Revisão do Código de Processo Penal a que tive a honra de presidir propôs a seguinte redação para o art. 40:

1 Não pode intervir no julgamento de um processo nenhum juiz que tiver praticado atos nas respectivas fases de inquérito e de instrução, salvo tratando-se de despachos de mero expediente.

2 Não pode intervir em recurso ou pedido de revisão nenhum juiz que tiver participado no julgamento do processo ou tiver praticado qualquer dos atos referidos no número anterior.

A Assembléia da República procurou conciliar as soluções da redação originária e da proposta da Comissão de Revisão e aprovou o seguinte texto, que é o do atual art. 40 do CPP português:

Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado, ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do argüido.

A solução consagrada no Código, ainda que limitativa, é razoável, mas, por deficiência de redação, vai fazer correr muita tinta e causar grande perturbação no funcionamento dos tribunais. É que, por força da lei portuguesa, havendo argüidos presos preventivamente, o tribunal deve periodicamente reexaminar da subsistência dos respectivos pressupostos, o que freqüentemente sucede já na fase de julgamento e até no decorrer das audiências de julgamento, o que, levado à letra, significaria que, se o juiz de julgamento mantiver a prisão, ficará impedido de julgar. Fato é que, como reconheceu o Grupo Parlamentar do Partido Socialista na sua declaração de voto, a decisão de aplicar ou manter a prisão preventiva envolve avaliação de indícios do crime e traduz-se numa medida gravosa, suscetível de pôr em causa a imparcialidade do juiz para julgar o mesmo argüido e isso quer a aplicação ou manutenção da medida seja decretada pelo juiz de instrução ou pelo juiz de julgamento.

3 A AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO: PARTICIPAÇÃO PESSOAL DO ARGÜIDO E ASSISTÊNCIA DE DEFENSOR

Dominado pelo princípio de que a fase de julgamento é a fase nobre do processo criminal, o Código de Processo Penal português ajustou-a aos ideais democráticos da plena oralidade e publicidade, da contraditoriedade, da concentração e da participação dos sujeitos processuais, mormente do argüido, proibindo o julgamento sem a sua presença.

Ainda que, aqui e ali, se ouvissem vozes a suspirar pela comodidade do processo de tipo inquisitório, nomeadamente quanto à utilização dos elementos indiciários recolhidos nas fases do processo preliminar ou preparatório, a principal crítica — e aqui generalizada à magistratura e à advocacia — incidiu sobre a proibição do julgamento sem a presença dos argüidos e a principal dificuldade da sua aplicação na defeituosa — também por todos reconhecida — estrutura da defesa oficiosa que, confiando as defesas dos mais carentes a advogados aprendizes — os advogados estagiários — dificultava o contraditório pleno e apelava ao paternalismo da magistratura em socorro dos réus menos protegidos por uma defesa insuficiente e freqüentemente de todo incapaz.

Sem que os representantes da acusação e da defesa tenham idêntica preparação técnica, não se pode estabelecer um verdadeiro contraditório e a intervenção investigadora do juiz, ainda que em nome da verdade e para suprir deficiências da defesa técnica, acarreta, mais cedo ou mais tarde, a negação ou pelo menos graves distorções da estrutura acusatória e contraditória do processo.

Tem sido isso o que tem sucedido com a aplicação do Código vigente, não por deficiências do Código, mas antes da sua aplicação e ainda pela necessidade de proteger os que não podem socorrer-se contratualmente de um advogado qualificado para a advocacia criminal, especialidade que no passado próximo foi desprezada pelos melhores do foro português, mas que, segundo julgo interpretar pelo entusiasmo que vejo nos mais novos por essa matéria, está novamente a recuperar pelo reconhecimento da sua importância para a defesa de valores e direitos fundamentais da comunidade e dos cidadãos.

Nunca tanto como agora se estudou e escreveu sobre processo criminal em Portugal, porventura pelo reconhecimento de que é, fundamentalmente no processo penal, ou pelo menos em grande parte no processo penal, que se afere do respeito do poder pelos valores fundamentais da pessoa humana, porque o argüido, ainda que eventualmente criminoso, não perde nunca a dignidade de pessoa humana.

Aliás, sucede ainda com demasiada freqüência que o debate da audiência se limita à discussão das provas adrede recolhidas nas fases preliminares do procedimento sem que a defesa procure por sua própria iniciativa a descoberta da verdade e a recolha de novos elementos probatórios, porque o sistema o dificulta, a tradição é contrária e a estrutura deficiente da defesa, sobretudo a oficiosa e nas grandes cidades, o não consente.

A tradição é contrária porque a prática procedimental penal portuguesa, como a generalidade da prática européia, é ainda dominada pela idéia de que no processo se há de procurar a todo o custo alcançar a verdade, dita material, para a realização da justiça, quando no nosso tempo o que importa sobretudo é resolver os conflitos sociais e restabelecer a paz. Para tanto, para evitar as injustiças mais graves resultantes do pleno acusatório e contraditório e da passividade judicial que tais princípios implicam, proclama-se o princípio fundamental da presunção de inocência, nomeadamente na sua vertente do in dubio pro reo.

Nenhum juiz há de condenar quando tiver dúvidas sobre a culpabilidade do acusado e nem é tão grave assim que mais um culpado não seja condenado quando a experiência mostra que são muitos mais os culpados pela prática de crimes vários que não chegam sequer a ser processados — e se apresentam perante a sociedade como os mais honestos e com quem convivemos no dia-a-dia sem qualquer rebuço — do que aqueles que são processados e condenados.

Na sociedade do nosso tempo a função do juiz é sobretudo a de garante da liberdade dos cidadãos e não de instrumento do poder punitivo do Estado aparelho ou do Estado comunidade para a perseguição dos criminosos, com mais ou menos independência ou isenção.

O Estado moderno organiza a perseguição criminal autonomamente, recorrendo a meios poderosos e sofisticados, quase sem limites, pelo que pode finalmente proclamar a plena independência dos juízes, independência que não significa mais tão-somente a não-subordinação a quaisquer outros poderes do Estado, mas fundamentalmente o seu não-comprometimento na perseguição criminal e na realização de um ideal de Justiça que não cabe nos quadros limitados da sociedade moderna, como está subjacente aos princípios geralmente aceites da plena estrutura acusatória do processo e do contraditório na produção e discussão da prova.

O Código de Processo Penal português vigente procurou conciliar a estrutura acusatória do processo e o princípio da investigação judicial, o que, agravado pela estrutura muito deficiente da defesa oficiosa, faz com que nem o procedimento seja verdadeiramente acusatório e contraditório, nem o juiz verdadeiramente isento.

As propostas de reforma nesse domínio quase se limitaram ao reforço da estrutura do defensor, exigindo que seja tecnicamente reconhecido, porque só a partir da identidade técnica da acusação e da defesa e da capacidade da defesa de investigar autonomamente, será possível pretender um juiz terceiro, imparcial, não empenhado na produção da prova, quer a favor quer contra o réu.

Mas logo aqui encontramos muitas dificuldades, resultado de limitações orçamentais. Ainda que a Comissão entendesse, como entendeu por unanimidade, que não era minimamente razoável que o advogado estagiário — que não pode aceitar mandato para causas penais da competência do tribunal coletivo — possa depois ser nomeado oficiosamente para essas causas, perante os protestos de várias partes, teve de esperar por melhores dias e contentar-se em exigir pelo menos a intervenção de advogado ou advogado estagiário. É das cedências que mais me dói, porque estou ciente que, em grande parte, a crise da Justiça Criminal passa pelo atual sistema da defesa oficiosa e que sem a sua profunda alteração — aqui é mesmo necessária uma revolução — não há reforma processual que nos valha.

Antes da reforma de 1998, o Código de Processo Penal português não consentia o julgamento sem a presença do argüido, que, não comparecendo, era então declarado em situação de contumácia. O legislador, perante as pressões dos meios judiciários, teve de ceder, mas fê-lo cuidadosamente, só admitindo o julgamento à revelia do argüido quando este tenha anteriormente prestado termo de identidade e residência no processo, sendo então advertido expressamente de que a impossibilidade da sua notificação pessoal, pela sua ausência no domicílio indicado ao tribunal, ou a sua falta injustificada a julgamento implicam a audiência na sua ausência (arts. 333 e 334).

Quando o argüido seja julgado sem estar presente, nos casos em que a lei o consente, a prova produzida é obrigatoriamente registrada em ata ( art. 364, n. 3) e o argüido pode, quando notificado da sentença — quando for detido ou se apresente voluntariamente (art. 380-A):

a) interpor recurso da sentença, ou requerer novo julgamento no caso de apresentar novos meios de prova, se ao crime corresponder pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos;

b) interpor recurso da sentença ou requerer novo julgamento, se ao crime corresponder pena de prisão superior a cinco anos.

Desse modo procurou o legislador português do Código de Processo Penal cumprir com o disposto no art. 6º, §§ 1º e 3º, c e d da Convenção Européia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, matéria que tem sido objeto de muitas decisões no competente Tribunal.

4 A FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES, O REGISTRO DA PROVA, O TRIBUNAL COLETIVO E O SISTEMA DE RECURSOS

O Código de Processo Penal português ainda vigente estabelece já o dever de fundamentação, de fato e de direito, dos atos decisórios e, depois de uma longa caminhada, a jurisprudência tende a considerar que esse dever só se cumpre quando da decisão resulta com clareza o processo lógico-jurídico da decisão em matéria de fato e de direito.

A Comissão de Revisão foi um pouco mais longe e consagrou no seu projeto a possibilidade do registro integral da prova produzida em audiência que há de servir de fundamento à decisão condenatória ou absolutória.

Dessa forma, ficaria assegurado o recurso em matéria de fato, o que o regime vigente não consente quando o julgamento seja da competência de tribunal de composição plural, o que sucede sempre que ao crime seja aplicável pena de prisão de máximo superior a 5 anos.

O princípio do registro da prova foi aceite sem grandes resistências6, até porque já fora consagrado em matéria civil, mas, à semelhança do que se passa no processo civil, muitos magistrados criticaram o projeto por, permitindo o registro da prova, continuar a consagrar a competência do tribunal coletivo para os processos mais graves. Consideravam que era uma perda de tempo: ou registro e juiz singular, ou tribunal coletivo, mas então nada de registro.

Considero que uma das mais significativas inovações da reforma do CPP em 1998 é a consagração da admissibilidade do registro da prova e a intervenção simultânea do tribunal coletivo para o julgamento dos agentes dos crimes puníveis com penas de prisão de máximo superior a 5 anos, quando o Ministério Público não considere — e determine — que no caso não deve ser aplicada pena superior àquele limite.

É que, de modo muito diferente da Justiça Civil, na decisão penal não predominam as componentes técnicas do Direito, antes nelas se reflete a própria personalidade do julgador e, porque está em causa a liberdade dos cidadãos, importa que o próprio legislador seja previdente, porque a virtude da prudência, como correto discernimento do que deve ser feito em cada caso em ordem à realização do fim último que a ordem jurídica prossegue, todos julgam ter quanta baste, mas freqüentemente carece naqueles a quem mais falta faz. O coletivo é, pois, uma cautela, para a salvaguarda dos cidadãos, mas não menos para proteção dos próprios julgadores.

O registro da prova produzida ou discutida em audiência vai permitir o recurso em matéria de fato, o que até hoje não era viável nos julgamentos da competência do tribunal coletivo.

Para além da importância que reveste a efetiva possibilidade do recurso em matéria de fato, há uma questão simbólica que urgia remediar.

O Código de Processo Penal de 1987 estabeleceu apenas um grau de recurso, para o tribunal da relação ou para o Supremo Tribunal de Justiça, consoante o julgamento em 1ª instância seja da competência do tribunal singular ou do tribunal coletivo.

Diferentemente, no processo civil, continua a lei a admitir dois graus de recurso das decisões finais, de apelação, para os tribunais da relação, e de revista, para o Supremo, sempre que o valor da causa seja superior a 2.000 contos.

Essa diversidade de sistemas não tem, em minha opinião e na de muitos outros, justificação racional, pois no processo penal não é apenas o patrimônio que está em causa, mas também e sobretudo a honra e a liberdade. Parece-me que o sistema consagra uma inversão de valores que o nosso sistema jurídico não pode tolerar.

A Comissão propôs, por isso, que fosse restaurado o recurso de apelação para o tribunal da relação, o que mereceu geral aplauso, e acabou por ter acolhimento na lei.

Teria gostado de reformular o regime do habeas-corpus, tornando-o, como me parece dever ser, uma medida excepcional contra as situações de grave injustiça que ponham em causa a liberdade, mas a jurisprudência portuguesa vai mais no sentido de considerar esse instituto como uma espécie de recurso extraordinário, a interpor quando não caiba recurso ordinário, do que a considerar o instituto como providência extraordinária para ocorrer a situações anormais de violação da liberdade.

Porque a tradição portuguesa e também a européia tem muito pouco em comum com a tradição brasileira e com a anglo-saxônica, o Código de Processo Penal português e sobretudo a jurisprudência portuguesa continuam muito restritivos quanto ao seu âmbito, sendo este praticamente limitado às situações de prisão abusiva por excesso de prazo, quer de apresentação ao juiz do detido para validação da detenção ou prisão, quer por excesso na sua execução.

5 O DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO E INSTRUÇÃO DOS RECURSOS DAS DECISÕES QUE APLIQUEM MEDIDAS DE COAÇÃO

Veremos no número seguinte os pressupostos e a duração das medidas de coação, especialmente da detenção e da prisão preventiva. Vamos agora referir-nos ao dever de fundamentação dos despachos que as aplicam em ordem a possibilitar o recurso dessas decisões.

O que sucede agora é que a decisão de aplicação das medidas de coação é fundamentada com a simples invocação dos pressupostos dessas medidas — perigo de fuga, perigo de perturbação da investigação, perigo de continuação da atividade criminosa — e delas cabe recurso para o tribunal imediatamente superior na hierarquia, mas não há meio de o recorrente poder demonstrar que o perigo não existe em qualquer daquelas manifestações ou que nem sequer esse perigo resulta indiciado no processo.

Consagra-se o recurso, que é um remédio, mas não se facultam ao recorrente os meios para comprovar o erro do diagnóstico que a fundamentação da decisão traduz. E quantas vezes o perigo da fuga, o da perturbação da instrução ou o de continuação da atividade criminosa, que constituem os pressupostos de aplicação das medidas de coação, têm apenas como fundamento uma pretensa informação anônima (!) ou uma informação de um agente infiltrado ou de um bufo da polícia!

Nesse contexto, é também surpreendente a oposição desencadeada pelo organismo representativo da magistratura judicial contra a proposta do n. 5 do art. 194, que estabelece que durante o inquérito não pode ser aplicada medida de coação de natureza diferente ou em medida mais grave do que a indicada no requerimento do Ministério Público7.

Tendo as medidas de coação natureza estritamente processual e sendo o inquérito da responsabilidade do Ministério Público, não se alcança por que o juiz, que não o acompanha nem nele pode intervir a não ser nos casos estritos determinados pela lei — todos em ordem à garantia dos direitos fundamentais das pessoas — possa decidir por si da conveniência de aplicar medidas cautelares mais graves ou diversas das que o dominus dessa fase processual entende por necessárias. Já ouvimos que a razão é a própria tutela do argüido, mas não entendemos de todo o argumento, porque medidas privativas ou restritivas da liberdade para proteção da própria pessoa sujeita a essas medidas é solução que nem a lei nem os princípios democráticos consentem. Parece-nos que a oposição assenta exclusivamente na resistência à perda do poder, o que a ser verdade é muito grave, porque o poder funcional atribuído às magistraturas não é para benefício próprio, mas exclusivamente ao serviço dos cidadãos, a quem devem servir. E quando dizemos ao serviço dos outros, pensamos imediatamente nos argüidos, cujos direitos devem ser salvaguardados pelos magistrados, particularmente pelos judiciais, pelo que não se percebe que em lugar de defensores se arroguem a função de perseguidores.

Esse é um dos pontos fracos do nosso sistema, porque deixa inteiramente a critério do juiz a decisão sobre a verificação ou não dos necessários pressupostos legais para a aplicação em concreto de uma medida de coação, mormente privativa da liberdade.

A lei portuguesa admite o recurso da decisão que aplicar uma medida de coação, mas não garante as condições indispensáveis para que o recurso possa ser um efetivo remédio contra os erros judiciários e os abusos de poder. É que as medidas de coação são, as mais das vezes, aplicadas na fase do inquérito, quando o processo se encontra em segredo de justiça, pelo que, não constando do despacho que as aplica a indicação dos fatos que as justificam e das provas que indiciam esses fatos, o recurso não pode cumprir a sua função de remédio jurídico.

Constantemente se questiona a freqüência da aplicação da prisão preventiva e se confronta a sua aplicação com o princípio da presunção de inocência, mas não se encontrou ainda meio processual de a combater eficazmente nos casos em que a sua aplicação não seja conforme à lei, que a permite exclusivamente por razões processuais, quando o interesse público prevaleça sobre o respeito da liberdade individual, o que há de ser necessariamente excepcional.

É sempre de temer o abuso de poder e tudo deve ser feito para o prevenir, porque se o amor pela liberdade é conforme a natureza humana, o desamor pela liberdade dos outros pode resultar simplesmente de uma menor cultura democrática que faz inverter a escala dos valores.

Também nesse contexto cultural não é de estranhar que uma das mais significativas propostas da Comissão tenha merecido forte repúdio por parte de organismos representativos das magistraturas. Refiro-me ao dever de fundamentar as decisões judiciais que apliquem medidas de coação, mormente as privativas da liberdade, e de essas decisões serem instruídas com certidão das peças processuais pertinentes para efeito de fundamentação dos recursos.

6 A DETENÇÃO E A PRISÃO PREVENTIVA

Ressalvada a deficiência de fundamentação do despacho de aplicação das medidas de coação referida anteriormente, o regime português em matéria de detenção e de prisão preventiva satisfaz plenamente as normas estabelecidas pela Convenção Européia dos Direitos do Homem.

A detenção tem por finalidade:

a) a apresentação do detido a julgamento sob forma sumária, no prazo máximo de quarenta e oito horas, ou, no mesmo prazo, a apresentação ao juiz para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coação;

b) assegurar a presença imediata do detido ou, não sendo possível a apresentação imediata, no mais curto prazo, mas sem nunca exceder vinte e quatro horas, perante autoridade judiciária em ato processual.

Temos assim que o prazo máximo de detenção antes de apresentação a um juiz é de quarenta e oito horas.

A detenção pode ser efetuada por qualquer autoridade ou pessoa do povo em caso de flagrante delito, mas fora de flagrante delito só excepcionalmente ela pode ser efetuada sem prévio mandado do juiz. A detenção pode ser ordenada por mandado do Ministério Público, nos casos em que seja admissível prisão preventiva, e pelas autoridades de polícia criminal, quando não for possível, dada a situação de urgência e de perigo na demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária, desde que se trate de caso em que seja admissível a prisão preventiva e existam elementos que tornem fundado o receio de fuga (arts. 255 e 256 do CPP).

A prisão preventiva é uma medida de coação aplicável só quando as demais medidas de coação previstas na lei forem inadequadas ou insuficientes para prevenir o perigo de fuga, o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo ou o perigo de perturbação da ordem e da tranqüilidade públicas ou de continuação da atividade criminosa (arts. 202 e 204 do CPP).

A prisão preventiva está sujeita a prazos máximos de duração:

a) seis meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) dez meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) dezoito meses sem que tenha havido condenação em primeira instância;

d) dois anos sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.

Esses prazos são elevados, respectivamente, para 8 meses, 1 ano, 2 anos e 30 meses, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a oito anos ou por crimes expressamente indicados no art. 214, n. 2, do CPP; e em relação a esses casos, os prazos podem ainda ser elevados, respectivamente, para 12 meses, 16 meses, 3 anos e 4 anos, quando o procedimento se revele de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de argüidos ou de ofendidos ou ao caráter altamente organizado do crime.

Os prazos de duração da prisão preventiva em Portugal têm sido considerados como não-violadores da Convenção Européia, que, aliás, não estabelece prazos rígidos de duração máxima.

7 A DURAÇÃO DO PROCEDIMENTO PENAL E OS PROCESSOS ABREVIADOS

Se os prazos máximos da prisão preventiva não suscitam problemas em face da Convenção Européia, o mesmo já não se pode dizer da duração normal dos processos até ao seu trânsito em julgado. Trata-se de um dos mais graves problemas da Justiça Penal portuguesa. São freqüentes os julgamentos de processos com mais de 5 anos de pendência e muitos chegam aos 10 anos e até mais, o que viola claramente o disposto no art. 6º da Convenção.

Tenho defendido a necessidade de se pôr urgentemente cobro a esse estado de coisas, até porque a duração excessiva viola a Convenção, mas viola também a Constituição da República Portuguesa, que, no seu art. 32, n. 2, dispõe que todo o argüido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.

Se o processo não pode ser demasiado célere, com prejuízo das garantias de defesa, não pode ser também tão longo que prejudique ou comprometa, muitas vezes irremediavelmente, a mesma defesa.

Em Portugal ainda não se suscitou perante os tribunais a questão da violação da Convenção por excesso de duração do procedimento até a conclusão final, mas começam a dar-se sinais de que muito brevemente os tribunais terão de enfrentar essa questão que, aliás, está já a merecer a atenção da jurisprudência de outros países europeus, nomeadamente da França.

Note-se, porém, que o problema só em parte é resultado da lei, na medida em que esta não estabelece prazos peremptórios para a duração das diversas fases processuais, mas prazos meramente ordenadores. Os prazos são razoáveis — 8 meses para o inquérito e 2 meses para a instrução — mas raramente são cumpridos por insuficiência de meios.

Para obviar a esse estado das coisas, a reforma processual de 1998 criou uma nova forma de processo, denominada "processo abreviado", aplicável aos casos em que a prova indiciária seja evidente, ao crime não seja aplicável pena de prisão superior a cinco anos e desde que não tenham decorrido mais de 90 dias entre a prática do fato e a acusação (arts. 391-A a 391-E).

Não se trata verdadeiramente de uma nova forma de procedimento, mas de um instrumento que pretende dinamizar a investigação pré-acusatória, reduzindo-a ao máximo de 90 dias. A legislação portuguesa ainda não enveredou, como acontece noutros sistemas, por premiar o argüido que aceite sujeitar-se a formas de processo célere, como sucede na Itália e na Espanha. Espero bem que a preocupação de celeridade não leve o legislador a enveredar pelo direito premial no domínio do processo penal.

8 A PROBLEMÁTICA DO SEGREDO DE JUSTIÇA E A FASE PROCESSUAL DA INSTRUÇÃO

Uma questão da moda na sociedade portuguesa, mas não só, respeita à problemática do segredo de justiça.

Essa questão tem sido das mais difíceis de resolver na vigência do Código de 1987 e não se vislumbra que tenha solução satisfatória a prazo breve, porque nela convergem interesses acentuadamente divergentes e nomeadamente de conflito entre valores igualmente importantes numa sociedade livre e democrática: os da justiça, da honra das pessoas e da liberdade de informação.

O segredo de justiça é necessário para a eficácia da investigação criminal, mas em nome dessa eficácia arvora-se freqüentemente em valor final, quando não passa de mero instrumento, e os processos arrastam-se na fase da investigação pré-acusatória, protegida pelo segredo, por anos e anos — às vezes por demasiados anos — sem que o argüido tenha possibilidade de conhecer o material probatório contra ele recolhido e tantas vezes sem ter já possibilidade prática de o fazer quando sobrevier a acusação.

Entretanto e sobretudo em relação àquele tipo de criminalidade que hoje faz as manchetes da comunicação social — a criminalidade econômica e política — os jornais, televisões e rádios, invocando freqüentemente como fontes as próprias autoridades policiais e judiciárias, lá vão dando notícias sobre o processo que continua a gatinhar, enquanto com a sua dinâmica própria os media não só dão notícia do crime como o investigam ao jeito que lhes é próprio, condenam o eventual agente e executam a pena na praça pública, sem que o argüido, muitas vezes ainda simples suspeito, nada mais possa fazer senão desesperar e recorrer mais uma vez aos tribunais, cuja ineficácia nesse domínio ultrapassa todos os limites da razoabilidade, pela lentidão do sistema, mas também pelo conflito de valores que a questão congrega.

No interesse da investigação, mantém-se o segredo até à acusação; em nome da liberdade da imprensa, conspurca-se o bom nome de quem quer que seja, desde que possa ser "furo" jornalístico, e o cidadão — ainda quando eventualmente culpado, mas sempre presumido inocente até decisão condenatória dos tribunais — pouco mais pode fazer do que resignar-se, do que isolar-se na sua casa a tentar confortar pais e filhos dos enxovalhos da opinião pública conformada pelos media.

Perante esse panorama, necessariamente esquematizado, muitos entendem simplesmente que tudo ou quase tudo se resolve mantendo-se o segredo enquanto necessário à investigação e abrindo-se indistintamente a todos, logo que formulada a acusação pelo Ministério Público, esquecendo-se inteiramente do princípio da presunção de inocência, garantido ainda agora até que o argüido possa, pelo menos em fase de instrução, requerer diligências e apresentar provas para ilidir a indiciação que resultou da investigação inquisitória.

A Comissão de Revisão não transigiu nesse domínio e considerou que em relação a terceiros o processo só deveria passar a ser público a partir do início da fase do julgamento, ou seja, depois de ao argüido ter sido dada a possibilidade de contrariar os indícios recolhidos na fase de investigação pré-acusatória.

A Comissão foi, aliás, um pouco mais longe e, colhendo a lição de experiências recentes de criação de fatos políticos pela comunicação social em vésperas de eleições, propôs que o juiz de instrução, durante a instrução, e o Procurador-Geral da República, durante o inquérito, podem divulgar comunicados ou peças do processo que julguem úteis para restabelecer a verdade e compatíveis com o desenvolvimento do processo a pedido de pessoas publicamente postas em causa a propósito de processo pendente naquelas fases ou quando o considerarem necessário para a manifestação ou descoberta da verdade ou para evitar a perturbação da ordem e tranqüilidade públicas8.

A Comissão pretendeu ir um pouco mais longe e até ao último momento manteve no seu projeto o direito à informação por parte do argüido quando a partir da sua constituição como tal tivessem decorrido os prazos que a lei fixa como sendo os normais para a realização do inquérito. Previa-se, com efeito, que esgotados os prazos de duração máxima do inquérito previstos nos ns. 1 a 3 do art. 276, o argüido e o assistente têm acesso ao auto, para consulta, na secretaria. O acesso é facultado mediante requerimento do interessado, no prazo de 3 meses a contar do requerimento, o qual só pode ser renovado passados 3 meses9.

A Comissão acabou abandonando esse propósito, por considerar que nem a máquina investigatória está preparada para a celeridade da investigação nem as autoridades judiciárias e de polícia criminal estão também predispostas para suportar a imposição de um prazo determinado para a investigação criminal como necessário efeito da consagração constitucional dos direitos de efetiva defesa e da presunção de inocência.

Com efeito, a verdade é que mesmo as autoridades judiciárias continuam na grande maioria a ser dominadas por um pensamento aristocrático — no mau sentido — de organização da sociedade, e a reduzir ou identificar os princípios da presunção de inocência com o princípio formal do in dubio pro reo em matéria de prova, do direito de defesa ao da discussão da prova recolhida pela polícia e nas fases para tanto estabelecidas na lei. Esquecem que o princípio democrático — pressuposto dos sistemas democráticos de organização da sociedade política — parte da idéia de que a capacidade para praticar o bem e o mal está "democraticamente" repartida, e que no meio das tentações da vida em sociedade ninguém pode ter a presunção de nunca ter praticado ou vir a praticar qualquer crime10, a que acresce o necessário reconhecimento da relatividade cultural do justo e do injusto e de que são bem mais os criminosos em liberdade considerados como pessoas de bem do que aqueles que são sujeitos a processos criminais.

Não era razoavelmente possível limitar o período do segredo de justiça para a investigação criminal, ainda que o direito à informação do argüido fosse muito limitado e apenas o imprescindível para poder organizar a sua defesa, esclarecendo as autoridades e coligindo provas, no atual contexto cultural da grande maioria da magistratura judicial e do Ministério Público e da advocacia.

Quando ainda há pessoas com responsabilidades políticas que preconizam penas quase perpétuas como meio ideal do combate à criminalidade — e penas de prisão de trinta anos são, para a maioria dos condenados, penas perpétuas —, não é de se estranhar que se pretenda que o segredo de justiça seja total como instrumento da atividade de polícia judiciária e não tenha qualquer sentido falar em segredo ou na sua quebra no interesse do próprio argüido, porque, como nos idos de seiscentos e setecentos, há de presumir-se que a autoridade judiciária é iluminada pela Providência Divina no combate ao crime, que é também pecado, quando cometido pelos outros, e que o combate à criminalidade, fatalidade de certos grupos, raças ou classes de pessoas, justifica ou pelo menos tolera que em lugar de se exigir que na investigação criminal se dê predomínio à inteligência se transija antes com a eficácia da força.

NOTAS

1 GOMES, 1980, p.7.

2 Cf. SILVA, 1997, p. 26-34.

3 SILVA, 1987/1988, p. 167.

4 Cf. SILVA, 1993. p. 107 e ss.

5 Cf. art. 39 do CPP português (Ligação pessoal do juiz ao argüido, ofendido, assistente ou parte civil; vínculos familiares entre juízes).

6 Não obstante alterada pelo governo, que entendeu não ser necessária a alteração da redação atual do art. 363, parece que, no entendimento de que todos os tribunais estão já equipados com os meios técnicos idôneos a assegurar a reprodução integral das declarações prestadas oralmente. Se fosse outro o entendimento, verificar-se-ia uma grave disfunção pois, por um lado se assegura o recurso em matéria de fato, o que pressupõe o registro da prova, e por outro se permitiria ao tribunal a sua recusa, pela recusa da documentação das declarações orais em audiência.

7 Era o seguinte o texto da proposta do n. 5 do art. 194: Durante o inquérito, não pode ser aplicada medida de coação de natureza diferente ou em medida mais grave do que a indicada no requerimento a que se refere o n. 1.

8 Art. 86, n. 8, do Projeto da Comissão de Revisão.

9 Os prazos estabelecidos nos ns. 1 a 3 do art. 276 do projeto eram de seis meses, havendo argüidos presos preventivamente, ou de oito meses não os havendo, mas esses prazos podiam ser elevados para oito ou doze meses em relação a crimes particularmente graves.

10 Direito Penal Português, I, p. 57.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GOMES, D. Antônio Ferreira. Democracia, sindicalismo, justiça e paz, Direito e Justiça, v. 1, n. 1, 1980.

SILVA, Germano Marques da. Princípios gerais do processo penal e Constituição da República Portuguesa, Direito e Justiça, v. 3, 1987/1988, p.167.

——. Curso de processo penal. II, 1993.

——. A investigação criminal e as autoridades judiciais, O Perito, ano III, n. 1, jan./jun. 1997, p. 26-34.

Germano Marques da Silva é Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, Portugal.



retirado de: http://www.cfj.gov.br