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A IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO DO ESTADO ESTRANGEIRO
Luiz Paulo Romano

Na origem das relações entre os povos estrangeiros, a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro tinha efeitos inquestionavelmente plenos. Há registros que comerciantes viajantes do Século V possuíam seus próprios magistrados no exterior. Ensina-nos Guido Soares que no fim do período medieval e a partir da instauração do Estado fortemente assentado em bases territoriais, a imunidade absoluta era explicada pelo princípio da extraterritorialidade, pelo qual ‘‘as pessoas e os lugares eram, por uma ficção, consideradas como se estivessem fora do território’’, em situação de absoluta não-submissão à lei local. Todavia, o incremento das relações comerciais entre os países e do processo de globalização em nosso século foram determinantes para a alteração da mentalidade da independência total das representações do Estado em solo estrangeiro.

Por muito tempo, acreditou-se que as regras estatuídas pelas Convenções de Viena de 1961 (serviço diplomático) e de 1963 (serviço consular), editadas para garantir o eficaz desempenho das missões diplomáticas, teriam o condão de conferir também ao próprio Estado estrangeiro imunidade total em face da jurisdição do nosso país. Sob essa ótica e nas palavras de J. F. Rezek, prevalecia a noção da costumeira regra sintetizada no aforismo par in parem non habet judicium, ou seja, ‘‘nenhum Estado soberano pode ser submetido, contra sua vontade, à condição de parte perante o foro doméstico de outro Estado.’’ Contudo, a teoria clássica da imunidade absoluta do Estado estrangeiro já não mais se sustenta com o mesmo vigor do passado, tendo sofrido inegáveis desgastes, na medida em que se tornou corriqueira a prática de atos tipicamente particulares por parte dos Estados estrangeiros. Destarte, a superação da teoria da imunidade absoluta tem como pilar o entendimento de que os privilégios de pessoas e locais diplomáticos são concedidos em virtude da função que exercem ou de sua representatividade, não tendo a imunidade a plenitude de abranger os atos praticados pelo próprio Estado estrangeiro, como se particular fosse.

Não resta dúvida de que as pessoas físicas permanecem abrangidas pelos privilégios e imunidades diplomáticas concedidas pelas Convenções de Viena, regalias essas jus scriptum e já devidamente incorporadas ao direito positivo doméstico pelos decretos nºs 56.435/65 e 61.078/67. Do outro lado, no entanto, resta a combatida existência de uma imunidade supra legem do próprio Estado estrangeiro que, na ausência de norma internacional específica, foi originada em sede jurisprudencial, com base em uma antiga e sólida regra consuetudinária. Essa tese, entretanto, foi revista a partir de recente decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, na Apelação Cível nº 9.696/SP, onde foi proferido o clássico voto do então ministro Francisco Rezek, que determinou um novo norte de orientação para o assunto, afastando a imunidade da República da Alemanha e sujeitando-a ao pólo passivo de reclamatória trabalhista. Neste julgado, a Corte Suprema concluiu pela inexistência da imunidade absoluta de jurisdição do Estado estrangeiro, com arrimo na evolução do Direito Internacional acerca do tema. É que a partir de 1972, com a edição da Convenção Européia da Basiléia sobre as imunidades do Estado, reafirmada por leis dos Estados Unidos da América, Canadá e Reino Unido, restou introduzida no campo jurídico internacional uma flexibilização na teoria da imunidade absoluta do Estado estrangeiro.

Com efeito, entendeu-se pela inexistência de suporte para a exclusão dos entes de direito público externo da jurisdição doméstica em casos que envolvam atos de pura gestão (iure gestione), abandonados que são das malhas das Convenções Internacionais, na medida em que afastados da rotina puramente diplomática e/ou consular. Nesse sentido, ensina Mello Bolson ‘‘quando um Estado exerce atividade que, por natureza, se acha aberta a todos, coloca-se ele fora de sua função, não sendo possível admitir-se que interesses unilaterais de um Estado sirvam-se da norma internacional’’. A imunidade do Estado estrangeiro, pois, só seria admitida nos casos decorrentes dos chamados atos iure imperi, ou seja, aqueles praticados em nome da soberania do Estado estrangeiro, interligados à rotina diplomática e consular.

A grande finalidade dessa distinção, nos dias de hoje, é justamente para efeitos de fixação ou não da jurisdição pátria. Isso porque existe forte tendência, impulsionada pela aludida decisão do Supremo Tribunal Federal, de se restringir a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro tão-somente para aqueles litígios que envolvam ou decorram dos chamados atos de império, devendo-se resolver as questões derivadas dos atos de gestão em conformidade com a lex fori. Aliás, um dos grandes reflexos produzidos pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal foi recentemente trazido à baila pela Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (RO nº 6, DJU 10.5.1999), no julgamento de recurso em ação de execução fiscal movida pelo Município do Rio de Janeiro contra o Japão. Em erudito e bem fundamentado voto, o ministro Garcia Vieira reiterou o entendimento de que ‘‘modernamente se tem reconhecido a imunidade ao Estado estrangeiro nos atos de império, submetendo-se à jurisdição estrangeira quando pratica atos de gestão’’. Ao assim se posicionar, o Superior Tribunal de Justiça consagrou a posição de que o Poder Judiciário brasileiro é competente e deve julgar litígio instaurado contra Estado estrangeiro por força da prática de atos de pura gestão, bastando que a ação seja originária de fato ocorrido ou ato praticado em solo pátrio (cf. art. 88 do CPC). A novidade em relação ao julgado do Supremo Tribunal Federal é que o voto acima citado se deu em lide tributária e não trabalhista, o que revela a abertura da via judicial para uma grande vala de processos envolvendo os Estados estrangeiros, decorrente do atos iuris gestione (v.g. contratos comerciais, responsabilidade civil, etc).

Como conclusão, pode-se afirmar que a jurisprudência também se sedimentou no sentido de admitir que o Estado estrangeiro, sem embargo de sua soberania, possa ser sujeito passivo nas lides oriundas de controvérsias que envolvam os chamados atos de gestão, ocasião em que lhe será aplicado o direito positivo interno, ante a inexistência de imunidade absoluta. Tal relativização da imunidade, é importante que se ressalte, em nada modifica a situação da imunidade pessoal diplomática e consular prevista nas Convenções de Viena de 1961 e 1963, regularmente incorporadas ao direito positivo brasileiro.



Luiz Paulo Romano
Advogado em Brasília


retirado de: http://www.neofito.com.br/artigos/inter21.htm