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SUPRANACIONALIDADE E DIREITO COMUNITÁRIO NO MERCOSUL
Roberto Furian Ardenghy

Uma das propostas mais polêmicas nas negociações do Mercosul é a criação de um tribunal supranacional para a solução de controvérsias. Muito se fala do exemplo europeu, onde foi gerado um direito de hierarquia superior e com aplicação direta sobre cada cidadão. No Mercosul, apesar do pomposo nome de Mercado Comum do Sul, os instrumentos previstos no Tratado de Assunção assinado em 1991 mantiveram intactas as soberanias de cada país. Foi criado um mecanismo intergovernamental (e não supranacional) de integração econômica. Assim, até o presente momento, todo o sistema de solução de controvérsias é submetido ao controle das autoridades do Poder Executivo. E o Brasil tem tido posição extremamente cautelosa quanto à criação de entidades supranacionais. Os negociadores brasileiros alegam que seria prematura a criação de um tribunal supranacional antes de um aprofundamento maior do Mercosul.

Mas todos concordam que o Mercosul é um processo de integração que, no futuro, deverá adquirir graus maiores de independência jurídica. Nesse sentido, um certo mecanismo de supranacionalidade foi incluído nos acordos assinados e está agora em vias de ser utilizado, pela primeira vez, num caso concreto. Trata-se da solução de controvérsias, via arbitragem, prevista no Protocolo de Brasília (Decreto 922, de 13/9/93). Segundo as regras do Mercosul, o recurso à arbitragem é o último passo para a decisão sobre uma disputa que não foi solucionada seja por negociações diretas, seja pela intervenção tanto da Comissão de Comércio (CCM) quanto do Grupo do Mercado Comum (GMC). Todos os casos anteriores submetidos à solução de controvérsia foram encerrados por intermédio de soluções negociadas. O caso mais recente foi o comércio de sal entre Argentina e Uruguai.

Desta vez, a Argentina apresentou uma queixa formal no órgão executivo do Mercosul (Grupo do Mercado Comum-GMC) contra a aplicação de sobretaxa pelo Uruguai a bebidas e cigarros importados do Mercosul, o chamado Imposto Específico Único — IMESI. A alegação argentina é de que haveria tratamento discriminatório a esses produtos oriundos do Mercosul, beneficiando o similar nacional. O IMESI seria incompatível, entre outros, com o art. 7º do Tratado de Assunção, que diz: ‘‘Em matéria de impostos, taxas e outros gravames, os produtos originários do território de um Estado-Parte gozarão em outros Estados-Parte do mesmo tratamento que se aplica ao produto nacional.’’

O caso arrastou-se na burocracia do Mercosul durante quase dois anos e não foi solucionado, seja por negociações diretas, seja pela intervenção dos órgãos do Mercosul. Em julho último o Grupo do Mercado Comum finalmente considerou encerrada sua intervenção no caso, sem lograr solução. Abriu-se o caminho para o recurso à última instância de solução de uma controvérsia no Mercosul: a instituição de um ‘‘Tribunal Arbitral’’, previsto no Capítulo V do Protocolo de Brasília.

Mais do que discutir o conteúdo da reclamação argentina, o importante é analisar as conseqüências internas da decisão a ser tomada pelo Tribunal Arbitral, que está sendo constituído. Diz o Protocolo de Brasília que os Estados-Parte do Mercosul devem reconhecer como obrigatória, ipso facto, e sem necessidade de acordo especial, a jurisdição do Tribunal Arbitral, cujas decisões são inapeláveis e obrigatórias. O não cumprimento da decisão poderá dar origem a medidas compensatórias, tais como a suspensão de concessões ou preferências comerciais por parte do Estado que promove a demanda. Esse procedimento, aliás, é similar ao aplicado no caso das decisões dos panels da OMC, caso aprovadas por seu órgão de solução de controvérsias.

A questão jurídica central aí é a existência de decisão que será obrigatória, ipso facto, independentemente de ações posteriores para todos os Estados-Parte do Mercosul. Nesse aspecto, cabe a pergunta: se a demanda fosse da Argentina contra o Brasil, por exemplo, pelas restrições não-tarifárias impostas a importações de produtos lácteos ou farmacêuticos produzidos no Mercosul, como seria a aplicação no Brasil do laudo arbitral que porventura considerasse tais restrições como incompatíveis com as regras do Mercado Comum em formação?

Vale aí o mesmo raciocínio para a implementação das decisões oriundas do sistema de solução de controvérsias da OMC. Em razão do (1) conteúdo deste tipo de decisão arbitral, (2) da regras do Direito Internacional Público e (3) da inexistência de instituições supranacionais no Mercosul, se o Brasil fosse o demandado, a decisão do Tribunal Arbitral recairia diretamente sobre o Estado brasileiro, representado internacionalmente pelo Poder Executivo, a quem caberia, conforme o caso, a adoção das medidas cabíveis para a retirada do ordenamento jurídico nacional daquele dispositivo julgado incompatível com as regras do Mercosul. Levando-se o raciocínio mais longe, caso o Brasil não adotasse as medidas cabíveis em 30 (trinta) dias (prazo previsto no Protocolo de Brasília de Solução de Controvérsias) o outro Estado poderia adotar medidas compensatórias temporárias, tais como aumento de tarifas, de modo a compensar o prejuízo já arbitrado e forçar a ação do Estado brasileiro.

Ou seja, estamos falando aqui de ações na área internacional e que não se inserem diretamente na ordem jurídica interna, como acontece no modelo adotado pela União Européia. Assim, não há incompatibilidade com dois dispositivos na Constituição Federal que, à primeira vista, conflitariam com o Mercosul caso a decisão do Tribunal Arbitral tivesse conseqüência direta sobre a ordem jurídica interna. O primeiro refere-se ao disposto no famoso art. 5º, cujo Inciso XXXV prevê que ‘‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’’. Alguns autores insistem que a expressão Poder Judiciário refere-se tão-somente ao Poder Judiciário nacional, o que impediria o Brasil de aceitar a jurisdição de Tribunal Internacional (o mesmo raciocínio valeria para o Brasil não aceitar jurisdição do Tribunal Penal Internacional recentemente criado pela ONU para julgar crimes contra a humanidade). O segundo impedimento, de ordem mais processual, é o previsto no art. 102, I, letra ‘‘h’’ da Constituição Federal que diz que toda e qualquer ‘‘sentença estrangeira’’ deve ser homologada pelo Supremo Tribunal Federal para poder valer em território nacional. Como conciliar o texto da Constituição com o disposto nos art. 8 e 21 do Protocolo de Brasília, segundo o qual os Estados-Partes do Mercosul reconhecem como obrigatória ipso facto a jurisdição do Tribunal Arbitral, cujas decisões são inapeláveis, obrigatórias e têm força de coisa julgada?

Como a decisão do Tribunal Arbitral é de caráter meramente administrativo, já que o Mercosul, como foi visto, não tem característica supranacional, a implementação da sua decisão ficará afeita ao Poder Executivo, que tomará as providências para a simples derrogação da portaria ou decreto que regula a matéria objeto da controvérsia, ou a remessa ao Congresso Nacional de Projeto de Lei específico, caso o assunto seja previsto em lei. Se não adotar as providências cabíveis, poderá o Brasil sofrer as sanções comerciais previstas nos Protocolo de Brasília. Este, aliás, é o modelo seguido no caso da internalização das decisões dos panels da OMC, um assunto que está a necessitar de uma atenção maior da comunidade jurídica brasileira.



Roberto Furian Ardenghy
Consultor internacional, professor de Direito Internacional Público do Instituto Rio Branco-Brasília e ex-chefe da Assessoria Internacional do Ministério da Justiça


retirado de: http://www.neofito.com.br/artigos/inter12.htm