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TRATADOS DO MERCOSUL E EXECUTORIEDADE
Carlos Eduardo Caputo Bastos
 

A propósito de recente artigo subscrito pelo embaixador da Argentina no Brasil, sob o título ‘‘A vigência dos tratados do Mercosul’’, julgamos oportuno tecer algumas considerações sobre as críticas apontadas, bem como, sucintamente, fazer uma pequena reflexão sobre o tema contido no despacho proferido nos autos da Carta Rogatória nº 8.279-4, da República Argentina.

Desde a celebração do Tratado de Assunção, em março de 1991, os estados-partes do Mercosul têm envidado significativos esforços no sentido de implementar o processo de integração com vistas à constituição de um mercado comum, que possibilite o livre fluxo de pessoas, bens, serviços e capitais.

Para tanto, sucedem-se protocolos que disciplinam questões específicas, registrando-se que, no campo da cooperação judiciária, já foram negociados e assinados os protocolos de Las Leías, de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa; protocolo de Buenos Aires, sobre Jurisdição Internacional em Matéria Contratual; Protocolo sobre Medidas Cautelares e o Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais.

E aqui surge o primeiro problema, que é a questão da incorporação desses protocolos nos ordenamentos jurídicos internos. Tem sido comum perceber que alguns setores seguem, equivocadamente, não compreendendo que o acervo normativo produzido no âmbito Mercosul não tem, ainda, o condão de produzir efeitos diretos e imediatos sobre as ordens jurídicas nacionais, à semelhança do que ocorre na União Européia.

Não menos perceptível tem sido a confusão conceitual que exsurge dos debates quando se trata de distinguir a norma de Direito Internacional e a norma de Direito Comunitário. Aquela, como se sabe, é produzida bilateral ou multilateralmente, no âmbito da cooperação clássica entre estados soberanos, enquanto esta é produzida por órgãos, ditos supranacionais, nos quais os agentes e servidores têm representação distinta (não representam) de seus Estados de origem, e exercem competências e atribuições antes reservadas exclusivamente aos estados soberanos.

Esta é, precisamente, a distinção que se deve ter presente entre intergovernabilidade ou governabilidade compartida e supranacionalidade, pois, naquela os estados negociam na plenitude de sua soberania, e recepcionam as normas internacionais segundo as suas conveniências políticas e sob a observância de seu particular regime constitucional. No sistema comunitário, ao revés, as normas não demandam recepção do complexo normativo produzido pelos órgãos da comunidade e, muito menos, os Estados membros podem invocar seus respectivos ordenamentos jurídicos internos, inclusive no que respeita às normas constitucionais, como obstáculo à executoriedade das chamadas normas comunitárias.

É óbvio que essas perplexidades jurídicas introduzidas a partir dos processos de integração regional têm causado incompreensões e até, em alguns casos, desairosas críticas, especialmente no que concerne à mitigação do conceito clássico de soberania.

Pois bem, no contexto do processo de integração do Mercosul a aplicação e executoriedade das normas jurídicas têm, também, produzido estupefação em alguns segmentos. Referimo-nos, mais precisamente, à inconformação do embaixador da Argentina, por exemplo, quando dirigiu severas críticas ao despacho proferido pelo ministro-presidente do Supremo Tribunal Federal, no que respeita às razões que fundamentaram a denegação de exequatur à Carta Rogatória nº 8.279-4, da República Argentina.

A par do comportamento ao menos inconveniente para um diplomata, que não deveria estar opinando sobre assuntos internos que não lhe dizem respeito, é de se assinalar que as críticas são rigorosamente infundadas, posto que o eminente magistrado bem procedeu ao denegar o exequatur requerido, observando, corretamente, a Constituição Federal do Brasil e, ainda, o protocolo de Ouro Preto, de dezembro de 1994.

O embaixador da Argentina comete, em seu artigo, diversos equívocos que permitem mesmo supor que não é versado em matéria jurídica. Há, inclusive, no cotejo entre o artigo do embaixador e a decisão do ministro-presidente, equívoco que só se pode atribuir a eventual incompreensão da língua portuguesa.

Refiro-me, por exemplo, à crítica de que a decisão do ministro-presidente teria aplicado erroneamente a doutrina dualista, que, segundo ele, ‘‘aparece como um anacronismo jurídico’’. Ora, em primeiro lugar, o despacho ressaltou, expressamente, que ‘‘a definição do momento a partir do qual as normas internacionais tornam-se vinculantes no plano interno excede, em nosso sistema jurídico, à mera discussão acadêmica em torno dos princípios que regem o monismo e o dualismo’’.

Em segundo lugar, dualistas são todos, sem exceção, os estados-partes do Mercosul, pois a República Argentina inclusive adota procedimento de aprovação congressual aos tratados internacionais (inciso 22, do artigo 75, da Constituição da Nação Argentina).

Em terceiro lugar, não há anacronismo no que respeita ao regime dualista de recepção da norma internacional, na medida em que a própria Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados — quiçá o maior esforço de codificação do Direito Internacional — reconheceu, explícita e implicitamente, a realidade de coexistência de dois ordenamentos jurídicos (interno e internacional). Aliás, é exatamente o regime dualista de recepção das normas internacionais que tanto tem atormentado o presidente Clinton na sua luta inglória no Congresso americano para obter o fast track.

Em quarto lugar, o que mais claro se evidencia das incompreensíveis críticas do embaixador é que ele não percebeu a diferença entre recepção da norma internacional e a sua hierarquia, após o procedimento de incorporação nos ordenamentos jurídicos nacionais. Convém registrar, no particular, que essa é outra questão que não constituiu o cerne da fundamentação do despacho, cuja inteligência situa-se, precisamente, na inexecutoriedade do Protocolo de Medidas Cautelares, no Brasil, à míngua de decreto presidencial de promulgação.

Em quinto lugar, é na convicção de que — de lege lata — a promulgação de decreto presidencial constitui pressuposto indispensável à aplicabilidade, no plano normativo interno, de qualquer convenção internacional celebrada pelo Estado brasileiro, que se afirma que a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados — tomada, tão-somente, como mera referência, já que esse diploma não vige no Brasil — excepciona, ela própria, no artigo 46, a postulada aplicação do artigo 27, referida pelo Embaixador.

Last but not least, perfunctória leitura do protocolo de Ouro Preto revela, à saciedade, que as normas do Mercosul deverão ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada país (artigo 42).

O que se conclui é que não são os advogados ou juízes que criam insegurança jurídica aos países que integram o Mercosul, mas, lamentavelmente, a exteriorização de opiniões desfundamentadas e descomprometidas com a Ciência do Direito. É o caso, inclusive, de se invocar a célebre expressão ‘‘Ne sutor ultra crepidam’’.
 
 

Carlos Eduardo Caputo Bastos
Advogado,
Vice-presidente da Comissão de Relações Internacionais do Conselho Federal da OAB e
Delegado brasileiro no Colégio de Advogados do Mercosul
 

retirado de: http://www.neofito.com.br/artigos/inter8.htm