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 Teoria geral da integração e sistemas jurídicos comunitários

Heber Arbuet Vignali

 

RESUMO

Inicia com uma avaliação do século XX, em especial de sua significação para as relações internacionais, caracterizando-o como o século em que essas relações se intensificam e fazem surgir, por um lado, desintegrações de Estados, como as que ocorreram na Iugoslávia, e por outro lado, integrações internacionais. Afirma que a soberania dos Estados participantes de uma integração supranacional não se perde, mas se compartilha, sem que as identidades nacionais se anulem. Classifica diferentes tipos de integração: a heterogênea, a de baixa intensidade, a de média intensidade e a integração profunda ou comunitária. Esse último tipo é regulado por um novo sistema jurídico, o Direito Comunitário, independente tanto do Direito Interno quanto do Direito Internacional. Resgata historicamente o conceito de soberania para argumentar que, da mesma forma que o soberano delega poderes internamente, pode fazê-lo com relação a um órgão internacional, sem com isso perder soberania. Observa que há uma forte vontade política de que o processo de integração do Mercosul avance. Conclui que o próximo passo a ser dado pelo Mercosul em direção a uma integração profunda é a criação de uma Corte supranacional.

 

O século XX está sendo chamado pelos estudiosos da política como o século curto e também tem sido qualificado como século cambalacho, problemático e fatal. E na realidade, se é um século que possui zonas cinzas, caracterizou-se por seus aspectos radiantemente luminosos e, noutros momentos, por uma profunda e aterradora escuridão. Dessas circunstâncias, não são desconhecidas as relações internacionais e, para ficarmos com o positivo, com o luminoso, basta apenas lembrar que é o século em que aparecem as organizações internacionais em nível mundial, então muda quase tudo. Século em que se começa a transitar do princípio da autotutela ao da segurança coletiva, o século do auge da solução pacífica de controvérsias, no qual aparece a mudança radical na proteção internacional dos Direitos Humanos, inclusive diante do Estado, não somente da residência como também da nacionalidade.

Dentro desse marco, é o século da integração, não porque essa integração existisse anteriormente como fenômeno internacional, mas porque toma uma nova dimensão. O conceito de soberania não muda, porém se reformula e aparecem alguns novos conceitos como o de supranacionalidade, com suas conseqüências que vêm reformular a seqüência da integração. Há um fenômeno dentro do qual se inserem todas essas coisas e que, se não o considerarmos presente, não conseguiremos vê-lo com suficiente claridade.

É o século da tendência à fragmentação, conjunta e simultânea a uma tendência à integração internacional. O século das desintegrações positivas, da década de 60, que consolidou a descolonização. Também é o século das desintegrações ou absurdas ou pouco compreensíveis, como o fenômeno da Iugoslávia, ou o fenômeno da União Soviética; e é o século de algumas desintegrações muito penetrantes, como a pretensão de todos os nacionalismos que desejam separar-se de um Estado maior.

Porém também é o século da integração, das distintas formas de integração . Quando se fala de integração, pensa-se geralmente num fenômeno econômico, protagonizado pelos Estados, os quais perdem ou dividem soberania, procurando vantagens materiais individuais e regulados pelo sistema do Direito Internacional Público.

Tomando como paradigma a integração profunda, a integração comunitária, da qual é o nosso modelo o fenômeno atual europeu, este tipo de integração é de natureza essencialmente política, protagonizado por Estados, porém também possui outro protagonista de igual importância, as organizações internacionais supra-nacionais ou supra-estatais. Esse fenômeno não faz perdermos soberania, mas ampara a soberania com a supra-nacionalidade, porque creio eu que o grande invento do pensamento europeu atual é ter achado uma forma para que as identidades profundas - meu "tango" ou o "samba" ou a "guarânia" - sejam defendidas, a soberania se mantenha e não se desfaça em retalhos de poder que apenas se podem compartilhar. Essa soberania, que deve manter o perfil de identificação dos povos, os quais se diferenciam dos demais, está ameaçada de perder-se num mundo perversamente globalizado, baseado em idéias materialistas e econômicas.

Então, aqueles povos, ainda que com perfis diferentes e profundos, têm ao mesmo tempo com seus vizinhos, com os que estão mais próximos, características iguais, tradições iguais. As identidades da Europa provenientes do pensamento de Kant e que continuam até hoje, ou nossas identidades do cone sul-americano que todos nós conhecemos, essas têm de ser defendidas e mantidas, e poderiam se perder, se atuarmos de forma isolada. Precisamos de formas aglutinadoras que nos permitam atuar rapidamente, com eficácia, e aumentem nosso poder na equação geral do poder dos Estados e que ainda nos identifiquem, confiando a órgãos comuns algum tipo de decisão que definitivamente irá proteger nossas identidades.

Nem todos os processos de integração tendem a isso. Eu costumo qualificar a integração para fazer notórias as diversas profundidades da mesma. Há a integração dos heterogêneos, talvez de forma global a das Nações Unidas, quando procurou evitar o desastre de uma guerra termonuclear que finalizaria nossa civilização. Houve uma integração muito leve.

Há outras integrações de baixa intensidade, pouco mais que um passo à frente na cooperação interestatal, que somente somam a esta um sistema orgânico não muito definido, que procuram aperfeiçoar a cooperação, incrementar o comércio, melhorar o desenvolvimento.

Há outras, que chamaríamos de média intensidade, com institucionalização orgânica mais clara, mais aperfeiçoada e que, ademais, nelas se transmitem aos orgãos âmbitos de competência, aspectos da jurisdição, para que se exerçam em comum. Creio que, neste momento, o Mercosul situa-se nesse tipo de integração de média intensidade, porque a inspiração do Mercosul, de criar um mercado comum, ainda não se concretizou.

Para isso, tem de se transitar para um esquema que eu chamo de integração profunda ou comunitária, na qual se transferem poderes de Governo para regular e administrar âmbitos comuns de competência, se individualizam matérias para esse propósito e se criam organizações supra-nacionais ou supra-estatais. Esses são sistemas fortemente regrados e institucionalizados.

O conceito de integração geralmente se pensa sob o Direito Internacional Público. Esses processos de integração profunda são regulados por um novo sistema jurídico. O Direito Comunitário, ou como queiramos chamá-lo, que tem independência científica, tanto do Direito Interno como do Direito Internacional, possui suas próprias fontes, seu próprio sujeito, suas próprias formas de interpretação e execução, seus próprios princípios fundamentais.

Depois de adentrar-se num processo de integração profunda, podemos dar o último passo, porque a integração profunda não faz perder soberania. Porém podemos dar o último passo e passar de uma integração de Estado para sua fusão e entrar num Estado Federal. Para isso, é necessária uma decisão política dos Estados de renúncia ao direito de secessão, de renúncia ainda custosa, a voltar a atuar independentemente, e então, somente assim, mudaria juridicamente o assunto.

Todos os processos de integração, por sua natureza, são essencialmente políticos, porque respondem a um imperativo político, inclusive os heterogêneos ou os de baixa intensidade. No caso dos heterogêneos, procurou-se superar uma crise política, procurou-se salvar o mundo. Por isso, criaram-se as Nações Unidas, às quais deram alguns poderes com muita fraseologia e não muita capacidade de ação autônoma, sempre dentro do Direito Internacional Público. Nos processos de baixa intensidade, procuramos aumentar o desenvolvimento, aumentar o bem-estar, melhorar a posição dos países individualmente. Porém competindo inclusive com aqueles que se integram, se temos uma zona de livre comércio, então eu quero vender mais do que compro e há uma concorrência interna. Nos de média intensidade, ainda que o processo vá em trânsito para uma outra coisa, conservam-se também as características dos de baixa intensidade. A integração profunda ou comunitária, por sua vez, tem também uma finalidade política, e a conseqüência dessa finalidade política não é a de perder soberania.

Em matéria de soberania há confusões que procedem das origens, do fato de que esse conceito, essencialmente político, que não nasce nos gabinetes dos investigadores e que depois de muito tempo caminha para o âmbito jurídico, tem uma contradição. Desde o princípio, em meados do século XVII, utiliza-se o atributo da soberania para que os Estados nacionais legitimem sua pretensão de que nem o Papado nem o Império sejam supremos, mas que sejam todos iguais e à sua vez. O mesmo atributo utiliza o Estado nacional para legitimar sua pretensão e sua necessidade de supremacia no âmbito interno, que desarme os testamentos feudais e dê consistência e força ao novo protagonista das relações internacionais. Esse duplo propósito, do atributo e das circunstâncias históricas em que nasce, contribui para que se confundam muitas vezes entre o titular da soberania, o depositário da soberania e o executor dos poderes que atribuem a soberania. Isso porque num primeiro momento estiveram todos juntos e muito misturados num monarca absoluto.

O titular da soberania é o Estado. Porém o Estado como um território sobre o qual existe uma população relativamente homogênea, com interesses relativamente comuns e com uma organização política. Essa organização política, que se dá através dos seres humanos, faz radicar a soberania num grupo humano.

Somente os grupos humanos podem ter decisões políticas e jurídicas. E esse grupo no qual está radicada a soberania foi, no passado, o monarca absoluto, em alguma época fora uma assembléia ou um grupo militar, e atualmente é nossa institucionalidade, é a nação ou o povo. Porém esse grupo humano não é o soberano, porque o soberano é outra coisa.

É o Estado quem decide se exerce os poderes da soberania diretamente ou se os locomove para alguns órgãos, para alguns agrupamentos que ela mesma institucionaliza e cria pela formação da norma constitucional. Geralmente o soberano se reserva o exercício direto do poder para as grandes ocasiões: no estabelecimento das bases constitucionais, de alguma regra que é fundamental para a vida da sociedade internamente e dos compromissos internacionais. Porém delega ou confia ao Poder Executivo, ao Poder Legislativo, ao Poder Judiciário, aos poderes que têm o controle eleitoral, os demais exercícios desse poder soberano, podendo retê-los a qualquer momento, porque o soberano pode perdê-los.

Não há nada de novo do ponto-de-vista das essências jurídicas em que esses poderes, o soberano lhos transfira. Porém com o sentido de empréstimo, não de doação, empréstimo não ao Legislativo, ao Executivo ou ao Judiciário internos, mas a um órgão internacional no qual irão atuar muitos Estados soberanos em conjunto.

Neste momento, essa possibilidade de transferir poderes de governo a órgãos supranacionais ou supra-estatais é aceita na constituição argentina e paraguaia por norma constitucional expressa. O Brasil, a respeito desse assunto, tem somente seu art. 4º, que não menciona expressamente admiti-lo. Porém, como se encontra no capítulo de princípios e por sua própria terminologia, poderia ser interpretado no sentido positivo em que o admitisse em alguma circunstância. A Constituição uruguaia, modelo no momento de sua aprovação, em 1967, é a mais atrasada de todas as nossas neste momento. Porém entendo, e é o que estamos procurando em nosso país junto com altas autoridades políticas, ser necessária uma interpretação autêntica do art. 6º da Contituição por parte da Assembléia Geral do Parlamento, com base nas disposições do art. 75, inciso 20, da Constituição, que dá essa faculdade ao parlamento, para, logo em seguida, a partir de uma prática do Estado e talvez de alguma interpretação jurisprudencial favorável, poder com clareza afirmar que o Uruguai também está em condições de reformar a Constituição, pondo algo similar que seria o mais saudável, como a Constituição argentina e a paraguaia.

O Mercosul, na sua atual estrutura orgânica, está esgotado em suas possibilidades. Existe uma fortíssima vontade política de integração nas bases e, nota-se cada vez mais, na cúpula da decisão política. Sem ter nenhuma instituição favorável, solucionaram-se as crises dos automotores, dos têxteis, das restrições alfandegárias e algumas mais talvez, crises importantíssimas, por quê? Porque a vontade política superior disse: temos de seguir integrando-nos.

Porém isso não é suficiente, porque se é possível seguirmos esse caminho, há um desgaste político e diplomático muito grande. Para solucionar as crises dessa maneira, devem-se tomar decisões diplomáticas muito severas, e isso desgasta, separa o processo que deveria ser de união.

Nesses processos profundos de integração, os sócios não se reúnem para procurar vantagens uns nos outros, reúnem-se para unir forças e competir melhor frente a terceiros que não pertencem ao sistema, com honestidade, como companheiros, não como rivais, não como inimigos, frente aos terceiros. Não há graça nenhuma em ganharmos vantagem entre nós mesmos, pois poucas vantagens iremos obter, temos é de nos unir para obter vantagens do mundo. Então, a essa altura, o processo Mercosul requer urgentemente algum tipo de órgão supranacional que vá ajudando a consolidar o processo e a dar-lhe a estrutura orgânica e a jurisdicidade que o seu fim último, o mercado comum, indique, e que a vontade política manifeste que existam.

O atual sistema Mercosul é intergovernamental. Os artigos 40, 41 e 42 do Protocolo de Ouro Preto e a remissão ao artigo 2º, onde se diz que todos os órgãos decisórios são intergovernamentais, redimem de qualquer outra explicação. Qual seria o primeiro passo que poderíamos dar para uma supranacionalidade? Há dois grandes problemas: um, desse raro conceito do que é a soberania e os prejuízos que pode haver nesses processos. É uma coisa para a qual as reuniões, o juntar-se, o analisar o que pensam uns do outros, o tomar confiança mútua, vão ajudar muito. Porém, existe outro tipo de problema a respeito do qual temos de ser conscientes, que são as dificuldades da ponderação na integração dos órgãos comunitários. É muito difícil que cada um dos Estados dentro dos órgãos comunitários tenha igual peso. Deve haver algum sistema de ponderação que garanta a existência de órgãos supranacionais nos quais se defendam interesses da comunidade. Também se devem manter órgãos intergovernamentais para haver o equilíbrio político necessário, e nestes é muito difícil a ponderação.

Talvez o primeiro passo, por várias razões, seja um órgão supra-nacional dentro da órbita da função jurisdicional. Por que me parece assim? Em primeiro lugar, eu nunca exerci a magistratura, nunca fui juiz, mas todo meu estudo administrativo foi no Poder Judiciário. Eu compreendo muito bem os juízes, e, dentro de qualquer função interna do Estado, a função jurisdicional é a mais internacionalizada, no sentido de que o juiz responde ao Direito e não a condicionantes políticas nem circunstanciais; toda sua formação filosófica e ética responde a buscar a justiça. É isso que faz dos juízes membros de uma função, de um poder do Estado, porque é o que está mais próximo da conformação de distintos países e distintas percepções.

Por outro lado, é imprescindível que exista um orgão que solucione os conflitos, sem chegar a causar problemas de enfrentamentos diplomáticos e que facilite, sobretudo, o ingresso rápido e simultâneo das normas no Direito interno e que interprete uniformemente o Direito Comunitário em todos os Estados. Isso permitiria a realização de empreendimentos comuns. Se não transmitirmos segurança aos operadores econômicos e financeiros externos, não teremos atingido uma verdadeira integração.

Talvez uma Corte do Mercosul contribua, com suas interpretações, para formar um Direito Comunitário distinto do Direito dos Estados. E talvez essa Corte facilite também sua integração com os mais altos estabelecimentos judiciais dos países, de forma que, em sua maioria, tenham uma responsabilidade comunitária.

Heber Arbuet Vignali é professor catedrático de Direito Internacional da Universidade da República Oriental do Uruguai.



retirado de: http://www.cfj.gov.br